quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O pensamento econômico único do Brasil

Em clima de chacota, Abilio Diniz, o juíz Sérgio Moro,
o senador Aécio Neves, logo abaixo o ministro da Economia
Henrique Meireles, o governador de São Paulo Geraldo
Alckmim e o presidente da República do Brasil Michel
Temer
"Transformam o país inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro." 
Cazuza

Vivemos momentos difíceis e complicados, estamos embricados numa dinâmica confusa e complexa que nos deixa a todos perplexos e sem capacidade de reação desde a eleição de Dilma Roussef em 2014. A justificativa para a prática de uma das maiores taxas de juros do mundo é dada pelo combate da inflação? Sem que nenhuma inteligência se manifeste contra. E, o significativo acréscimo nesse campo ocorre logo depois da eleição da presidenta, com o novo ministro liberal Joaquim Levy. Num governo que teoricamente pertencia a um partido de esquerda. Desde a eleição de Lula em 2002, o primeiro presidente eleito pelo Partido dos Trabalhadores no Brasil, que o complexo rentista-financeiro chantageia de forma mais explícita o habitus econômico do país, sempre a partir de um pressuposto muito claro; a política fiscal deve estar equilibrada. Isto é, o Estado deve gastar apenas o que arrecada, e o seu poder deve proteger as instituições financeiras a todo custo, privatizando os lucros e socializando os riscos. Ora, mas o Estado só consegue arrecadar quando a atividade econômica ocorre, portanto o incentivo a ela é função precípua dele. O jornalista Marcus Faustini em recente coluna no jornal O Globo sentenciou de forma precisa;

"As sucessivas notícias sobre os esquemas de uso pessoal das estruturas de governo, para fortalecimento de grupos privados ou até mesmo de regalias pessoais, demonstram que, no mínimo setores políticos se aproveitaram do enfraquecimento de Dilma para se fortalecer no poder e defender seus interesses. E Temer está no centro desse processo, sabemos. A novela do impeachment aconteceu em cadeia nacional com episódios televisivos e comentários nas redes sociais. Mesmo que as atuais delações que colocam Temer no centro de esquemas sejam questionáveis do ponto de vista legal, como dizem alguns, o episódio da saída de Marcelo Calero do Ministério da Cultura é didático sobre o modo de governar do grupo político de Michel Temer. Calero, que teve extrema coragem pública e de defesa de princípios republicanos, demonstrou como um dos principais homens de Temer (Geddel) agia para interesses próprios. Mesmo diante da crise política." FAUSTINI, Marcus em Diretas já O Globo 13.12.2016

Apesar das palavras esclarecedoras de Marcus Faustini, a questão do sentido da política econômica brasileira permanece obscura e mantém nossa perplexidade, uma vez que Joaquim Levy, ministro de Dilma Roussef, não pode ser visto como uma antítese de Henrique Meirelles, quadro do governo Michel Temer. Afinal, porque no campo econômico os atores permanecem os mesmos, não importando as divergências de teses entre os agentes políticos? Fica cada vez mais clara a hegemonia financeiro-rentista, ou se preferirem neo-liberal dos governos no Brasil seja qual for o governo. Pois o mesmo Henrique Meirelles, também foi presidente do Banco Central de Lula. Esse modelo permanece dispondo de grande consentimento no Brasil, apesar da grave crise econômica de 2008 ocorrida nos EUA e no mundo, que exatamente envolveu fabulosos valores e especulação rentista facilitados pelas teses neo-liberais e monetaristas. É quase um pensamento único sem alternativa crítica, que coercitivamente perpassa as mentes no Brasil, particularmente àquelas que dominam as instâncias decisórias dos governos e os meios de comunicação.

A forma neo-liberal de agir como política de governo começou a emergir como prática, a partir de meados dos anos setenta na cidade de Nova York, era ainda um tempo em que, de um lado as grandes corporações tinham o monopólio de mercados e de outro o mundo do trabalho a partir dos sindicatos impunha ganhos salariais crescentes a essas grandes corporações. Havia ainda uma identidade e solidariedade de classe entre os trabalhadores, que se diferenciavam dos gerentes e dos capitães da industria, num mundo essencialmente voltado para a produção de mercadorias. A partir dos movimentos de esquerda dos anos sessenta, que reinvidicavam maior liberdade individual e direito a maior alteridade pessoal começou a se dar ênfase ao multiculturalismo, o consumismo narcísico, e a fragmentação identitária;

"Considerava-se que poderosas corporações aliadas a um Estado intervencionista dirigiam o mundo de maneiras individualmente opressivas e socialmente injustas." HARVEY 2008 página51

A pauta das liberdades individuais, a partir de uma imensa fragmentação de identidades começou a se sobrepor aos mecanismos de solidariedade de classes, impondo uma imagem de que o Estado intervencionista e burocrático não conseguia promover a inclusão de todos. Há muito que havia uma disputa pelo direcionamento das políticas públicas, das grandes democracias ocidentais entre dois economistas de peso; John Maynard Keynes (1883-1946) e Friedrich August von Hayek (1899-1992). Keynes defendendo uma maior intervenção estatal, pautando a economia sempre que sua operação cíclica apresentasse momentos recessivos, e Hayek combatendo a intervenção estatal como incapacitada de coordenar as informações contidas nos indivíduos, que são os verdadeiros agentes econômicos. A década de setenta marca o declínio das teses de Keynes e a emergência dos pensamentos de Hayek.

O fato é que em 1975 um grupo de bancos de investimentos, liderados por Walter Wriston do Citibank se recusou a rolar a dívida da cidade de Nova York, frustrando as aspirações dos até então todo poderosos fundos de trabalhadores da cidade e sindicatos. O sistema bancário da cidade forçou os sindicatos municipais a investir seus valorosos fundos de pensão em títulos do município, resgatando as finanças públicas. Os serviços, de transporte público à produção de habitação de interesse social da cidade declinaram, reduzindo o padrão de vida da maioria da sua população, e satisfazendo os interesses dos banqueiros de investimento. Tradicionalmente nos EUA, desde os duros anos da recessão dos anos trinta o governo federal é o investidor em social housing, que era oferecida como aluguel social, onde a família fragilizada economicamente paga até 30% de sua renda, sendo complementada com recursos da união. O governo federal construía unidades nos centros urbanos, conformando grandes conjuntos habitacionais, que representavam um estoque de metros quadrados na mão do poder público.

A partir de 1974 a lei de Housing and Community Development Act decretou o fim do investimento federal direto em construção de conjuntos públicos, sob a alegação de que havia gerado grandes conjuntos, muitos dos quais dominados por gangs e marginais. A partir de então os fundos habitacionais passaram a ser transferidos para empreendedores privados que ofereciam uma porcentagem de suas unidades para locação a preços ligeiramente abaixo do mercado. Em 1977 o Community Reinvestment Act (Lei de Reinvestimento na Comunidade) obrigou os bancos a alocar recursos hipotecários nas áreas de onde provinham seus depósitos, um crédito de altíssimo risco, que passou a ser garantido por um complexo processo de securitização, denominado subprime. O sistema funcionou de forma eficiente até 1980, quando foi decretado Depository Institutions Desregulatory and Monetary Control Act (Lei de Desregulação das Instituições Depositárias e do Controle Monetário), que possibilitou a oportunidade da ciranda financeira que irá desembocar na crise de 2008. Toda essa sucessão de eventos comprovam como a habitação de interesse social era vista antes da década de setenta como um direito e não como uma mercadoria financiável, que passou a ser sua concepção com a hegemonia neo-liberal

"O governo federal fez tudo o que pôde para gerar e incentivar esse mercado secundário de hipotecas, que passou a ser uma das grandes fontes de alavancagem de crédito, inclusive para o financiamento da casa própria. A securitização incluiu também os empréstimos subprime. Já em 2007, o negócio subprime constituía 1,5 trlhão de dólares no mercado financeiro global." ROLNIK 2015 página65

No âmbito da cidade de Nova York, o banqueiro Felix Rotahin negociou em 1975 o acordo entre instituições financeiras, a cidade e o governo federal, que segundo HARVEY 2008 irá representar a restituição do poder exclusivo da classe dos financistas frente a outros grupos de pressão. A proposta substituiu o estado de bem estar social, por um ambiente favorável aos negócios, procurando fazer da cidade um centro cultural e turístico, com o lançamento da campanha "I love New York." Foi então criado um ambiente de exploração narcísica do individualismo, da excepcionalidade da personagem, e da submissão da economia ao capital financeiro, representado pelo livro de KOOLHAAS 1994, a "Nova York delirante, um manifesto retroativo". A administração da cidade passou a ser vista como empreendedora e criadora de um ambiente favorável aos negócios, a desindustrialização acelerada passou a ser uma oportunidade para os negócios imobiliários, que se instalaram no lado oeste no antigo distrito tecelão, promovendo invariavelmente a gentrificação.

No começo dos anos oitenta, com Reagan eleito, Nova York viveu uma epidemia de consumo de crack, que o prefeito Rudolf Giuliani enfrentou com a política de tolerância zero, que criminalizou as comunidades precarizadas, enfatizando o reino seguro para a classe média e para os yuppies de Wall Street. O desemprego atingiu 10% no país, e a imprensa, assim como uma parte da inteligência americana conservadora atacava o trabalho organizado, incentivando a migração de grandes corporações das regiões nordeste e do meio oeste sindicalizados, o chamado cinturão da ferrugem, para o sul americano, o México, ou o Sudeste Asiático não sindicalizados, e portanto bons para trabalhar. No campo intelectual, o monetarismo de Friedman se aliou com argumentos menos sofisticados como o de Arthur Laffer, que chegou a defender o corte de impostos para os ricos, e o aumento da carga tributária sobre os extratos médios. Reagan adorou quando Laffer defendeu que a desoneração de impostos iria produzir um aumento de arrecadação pela aceleração da atividade econômica, era a liberação da fera empreendedora capitalista, que enfim subordinava o burocratismo estatal.

Do outro lado do Atlântico, na Grã Bretanha a tradição cultural era outra, afinal o Partido Trabalhista era uma construção profundamente vinculada ao movimento sindical, e que dominava órgãos importantes da governança da cidade de Londres. O poderoso London County Council tinha como premissa básica que a habitação fazia parte do estado de Bem Estar Social desde 1930, e apesar de ter sido gerido durante os anos da segunda guerra pelo Partido Conservador, nunca abandonou essa concepção. Mas, seja à direita, quanto também à esquerda, os governos na Grã Bretanha compartilhavam que a recente decadência do velho império britânico seria compensada, mesmo pelos americanos, com a manutenção da City de Londres como principal praça financeira do mundo.

"A proteção do capital financeiro (por meio de manipulações das taxas de juro) na maioria das vezes conflitava com as necessidades do capital doméstico voltado para a produção (levando assim a uma divisão estrutural da classe capitalista) e em alguns casos inibia a expansão do mercado doméstico (ao restringir o crédito)" HARVEY 2008 página66

O discurso de endemonização do Estado e de celebração do Mercado começou a ganhar força nas colunas do Financial Times, que invariavelmente apontava os casos de inépcia dos governos e do opressivo poder sindical, contraposto as virtudes do individualismo, da liberdade de iniciativas, e a desregulação das finanças. No final dos anos sessenta, o caustico humor inglês começou a voltar suas baterias para os privilégios de classe sejam eles, dos aristocratas, dos políticos e da burocracia sindical, não se importando com os rentistas endinheirados, que começavam a dominar o consumo na City. A eleição de Margareth Thatcher em 1979, um anos antes da de Reagan nos EUA foi consequência direta de uma inflação de 26% e de um desemprego de 1 milhão de pessoas, que doutrinados pela mídia conservadora colocaram a culpa nos acordos dos governos trabalhistas com os sindicatos, notadamente os mineiros.

Já os últimos gabinetes trabalhistas, antes da Dama de Ferro, por conta da crise fiscal acabaram recorrendo ao FMI em 1975-76, sendo obrigados a promover um forte ajuste nos gastos sociais, o que determinaram uma série de greves no inverno de 1978, que foram dos médicos da saúde pública aos coveiros nos cemitérios. Em 1984 Thatcher propõe uma reordenação da estrutura do trabalho no Reino Unido, imediatamente os mineiros do carvão aprovam uma greve, que se estenderá por um ano, e que resultou no fechamento das minas de carvão no país, que passou a importar toda essa mercadoria. Apesar do apoio da opinião pública ao movimento dos mineiros, Thatcher havia ao final desse ano quebrado um símbolo do movimento sindical britânico, e num periodo mais longo no espaço de dez anos havia convertido a Inglaterra num lugar de baixos salários e força de trabalho dócil.

"O mundo capitalista mergulhou na neoliberalização como a resposta por meio de uma série de idas e vindas e de experimentos caóticos que na verdade só convergiram como uma nova ortodoxia com a articulação, nos anos 1990, do que veio a ser conhecido como o 'Consenso de Washington'." HARVEY 2008 página23

Nesse contexto, a cidade de Londres se transformará enormemente, deixando para trás aquilo que já havia sido o maior porto do mundo para se transformar num centro de serviços financeiros e de seguros, com um preço do metro quadrado mais alto do mundo. Simplesmente, um terço da força de trabalho londrina está alocada nesse setor atualmente. Entre 1980-2013 cerca de 2 milhões de moradias sociais foram vendidas. Em 1970 a moradia de locação social correspondia a 30% do estoque total da cidade, em 2007 essa porcentagem havia caído para menos de 18%. Sem esse estoque a regulação do mercado imobiliário londrino tornou-se impossível, fazendo com que os preços disparassem. Em 1981 foi criada a London Docklands Development Corporation com o intuito de tirar do poderoso Great London Council, o poder de determinar o destino da imensa área do antigo porto de Londres. A operação de Canary Wharf foi tocada por essa poderosa corporação, e também apresentou problemas especulativos e fracassos, que foram prontamente cobertos pelo dinheiro do contribuinte inglês, socializando os prejuízos.

"As Docklands representam uma fase da nova ordem social e econômica global, que é caracterizada pela polarização da distribuição de renda e da distribuição ocupacional dos trabalhadores: existem mais empregos de salário alto e de salário baixo, e em números absolutos mais destes últimos. Uma grande oferta de empregos de salário baixo, em Londres e em outros locais, ocupados muitas vezes por membros de grupos étnicos e raciais de imigrantes minoritários, sustenta os distritos residenciais e comerciais de alta renda, com as vagas para os baixos salários concentradas em restaurantes caros, butiques e lojas de alimentos finos, empresas de catering e de limpeza e outros serviços pessoais como limpeza doméstica, consertos, salões de beleza e manicures." GHIRARDO 2002 página213

Portanto, também em ambos os lados do Atlântico, as teses neo-liberais se viram vitoriosas, determinando mesmo que governos democratas e trabalhistas (Clinton e Blair) seguissem o receituário do ajuste fiscal, assim como no Brasil contemporâneo. A cidade tem sido, desde então um território de debates intensos e acalorados, que acabam pela ideologia neo-liberal gerando mais exclusão e diferenciação entre ricos e pobres. A partir de 2008 com a imensa crise das hipotecas subprime, que ainda se reflete em nosso mundo contemporâneo, começam a surgir vozes que questionam o modelo de supremacia financeira. Quando essas vozes chegarão ao Brasil?

BIBLIOGRAFIA:

FAUSTINI, Marcus - Diretas já - Jornal O Globo 13-12-2016
GHIRARDO, Diane - Arquitetura Contemporânea, uma história concisa - Editora Martins Fontes São Paulo 2002
HARVEY, David - O neoliberalismo, história e implicações - editora Loyola São Paulo 2008
KOOLHAAS, Rem - Nova York delirante, um manifesto retroativo - editora Monacelli Nova York 1994
ROLNIK, Raquel - A guerra dos lugares: a colonização e da moradia na era das finanças - editora Boitempo São Paulo 2015

Um comentário:

  1. Ainda que a questão dos sem teto, pelo menos nesse link, tb envolva a questão da saúde (mental), este é um bom exemplo, propositivo, de solução, ainda dentro do sistema vigente...
    Hay que ter a tal vontade política...
    http://brasil.elpais.com/brasil/2016/11/11/economia/1478889909_914418.html?id_externo_rsoc=fb_BR_CM
    Cynthia

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