domingo, 6 de setembro de 2020

Apontamentos da Aula 2: Arquitetura, Cidade, Subalternidade, Filosofia


Nos dias 24 e 26 de agosto de 2020, ministrei duas aulas sobre as conexões existentes entre o espaço construído pelo homem (cidades e sua arquitetura), a filosofia contemporânea, e o termo Subalternidade, como um termo marcante da cultura brasileira. Essas anotações foram das pesquisas, da apresentação disponibilizadas para os alunos e de uma série de manuscritos que todo processo de montar uma aula disparam no seu professor. Aqui vão, as relativas a segunda aula de 26 de agosto de 2020, na série de cursos IAB Compartilha, que pretende oferecer uma formação continuada para os profissionais que militam no campo do abrigo e da cidade. As duas aulas representam a sua quinta versão, a segunda oferecida de forma remota, em função da Pandemia de Covid-19. Todas as outras aulas dessa série de cursos estão disponíveis aqui no blog e compõem um conjunto de reflexões e questionamentos sobre as formas de desenvolvimento e reprodução da cidade brasileira, que derivam de um projeto exclusivista, que está no cerne da sua própria sociedade. A acepção da Subalternidade, parte do nosso maior dramaturgo, Nelson Rodrigues, que num de seus lampejos críticos-provocativos determinou num sensível diagnóstico da alma brasileira;


“Por "complexo de vira-lata" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima.” RODRIGUES, https://pt.wikipedia.org/wiki/Complexo_de_vira-lata

O curso como um todo, parte do filósofo marxista e italiano Antônio Gramsci, que nasceu na Sardenha em 1891 e morreu em Roma em 1937, com apenas 46 anos, e, que apesar da pouca idade possui potentes reflexões para o nosso mundo contemporâneo sobre a Subalternidade, notadamente no Quaderni 25, que recebe o título; "Às Margens da História (História dos Grupos Sociais Subalternos)". Além dele apresento os desdobramentos de seu pensamento, que chegaram a nós pelas reflexões de diversos pensadores atuais, que se auto denominaram como subaltern studies, e que ancoram suas teorias nos pensamentos de Antônio Gramsci. As reflexões de Gramsci estão profundamente embasadas na filosofia da práxis, se utilizando da história como um processo dinâmico e didático de auto-esclarecimento e auto-determinação dos indivíduos subalternizados pelo sistema. Os conceitos manipulados por esse tipo de filosofia estão sempre definidos por um dinamismo dialético, aonde as determinações não estão fixas, mas oscilam entre diversificados parâmetros.

“...a filosofia da práxis, por um lado, destrói e ridiculariza todos os conceitos estaticamente unitários, por outro mantém um comportamento sempre crítico, e nunca dogmático, um comportamento em certo sentido romântico, mas de um romantismo que, conscientemente, procura seu caráter clássico. Portanto, como filosofia que se sabe expressão ideológica, de uma sociedade atravessada de contrastes... O filósofo atual pode afirmar isto, sem poder ir mais além; de fato, ele não pode se evadir do terreno atual das contradições, não pode afirmar, a não ser genericamente, um mundo sem contradições, sem com isso criar imediatamente uma utopia.”  GRAMSCI, Antonio Quaderni 25 

Na apresentação da primeira aula, apenas como recordação, nos concentramos sobre os movimentos históricos invisibilizados dos grupos sociais subalternos, destacando: em 1695 a Revolta do Quilombo de Palmares no sertão alagoano; em 1791 a Revolta dos Negros do Haiti; em 1850 os protestos durante o Risorgimento na Itália, do pregador do Monte de la Amiata na Toscana, Davide Lorenzoni (1834-1878); em 1874 a Guerra de Canudos no sertão da Bahia, comandada por Antônio Conselheiro; em 1904 a Revolta da Vacina, nas cidades de Niterói e Rio de Janeiro; de 1500 a 1888 A Escravidão no Brasil; e por último de 1500 a 1930 o Colonialismo Europeu, no âmbito do Atlântico.

“Ao analisar todos os orçamentos coloniais de 1925, por exemplo, constata-se que as colônias francesas tinham, em média, apenas dois fucionários públicos para cada mil habitantes, mas que cada um desses funcionários era remunerado cerca de dez vezes mais do que o nível de renda nacional médio por adulto nas colônias; já na metrópole, no mesmo período contavam-se cerca de dez funcionários para cada mil habitantes, com cada um ganhando o dobro da média nacional por habitante.” PIKETI, Thomas 2020 pág.253

Por outro lado, destaquei a história dos grupos hegemônicos ao longo da história, usando o livro de Giovanni Arrighi, O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo de 1996, uma síntese potente da nossa contemporaneidade, já comentada aqui no blog. A tese de ARRIGHI 1996 são as mudanças e permanências do sistema capitalista desde seu advento nas Cidades-Estado Italianas, até a hegemonia estadunidense, que nos governa nos dias atuais. Para ARRIGHI 1996, a descoberta da contabilidade cruzada e o surgimento de um grupo de banqueiros nas cidades de Veneza e Gênova determinaram uma liberdade com relação aos humores econômicos dado pelo acúmulo monetário. Essa condição, fez as elites das duas cidades serem as principais beneficiárias das descobertas da península Ibérica, Espanha e Portugal, que permaneceram presas a lógica da riqueza a partir da posse de extensões territoriais imensas. Mas, o livro também destaca uma sucessão cíclica do sistema capitalista, que se inicia com o incremento do acúmulo de mercadorias e commodities, migrando ao final para a segurança da base monetária, que passa a se reproduzir apenas por meios especulativos, o que é o primeiro sinal da decadência. Tal condição, determina a instabilidade geral do sistema, que tende inexoravelmente a produzir sua independência com relação aos processos produtivos. Assim, a segunda supremacia do sistema se instala nas cidades da Liga Hanseática, que domina com a Companhia das Índias o comércio de mercadorias no século XVII na Europa, determinando uma nova base hegemônica de operação do capitalismo. No final do século XVIII, emerge a Inglaterra com sua Revolução Industrial, que determina uma nova casa para o centro do desenvolvimento capitalista do mundo, a unidade fabril ampliada e concentrada parece passar a ser o berço de uma elite que domina o mundo. Logo se percebe, que essa elite também se defende das taxas declinantes de seus lucros, a partir dos oligopólios, mas principalmente com o acúmulo de moeda e domínio da infra-estrutura bancária do mundo. Mas uma vez, esse sinal aponta para a mudança da base hegemônica, que abandona o Reino Unido, e se Instala nos EUA, a partir do segundo pós guerra em 1945.

“Permitam-me enfatizar aquilo que me parece ser um aspecto essencial da história do capitalismo; sua flexibilidade ilimitada, sua capacidade de mudança e adaptação. Se há, segundo creio, uma certa unidade no capitalismo, da Itália do século XIII até o Ocidente dos dias atuais, é aí, acima de tudo, que essa unidade deve ser situada e observada... Em certos períodos, inclusive períodos longos, o capitalismo de fato pareceu especializar-se, como no século XIX, quando se deslocou tão espetacularmente para o novo mundo da indústria.” ARRIGHI 1996 página4

“...quando os agentes capitalistas não têm expectativa de aumentar sua própria liberdade de escolha, ou quando essa expectativa é sistematicamente frustrada, o capital tende a retornar a formas mais flexíveis de investimento – acima de tudo sua forma monetária. Em outras palavras, os agentes capitalistas passam a preferir a liquidez, e uma parcela incomumente grande de seus recursos tende a permanecer sobre forma líquida.” ARRIGHI 1996 página5

Depois desse início foi destacado a centralidade da Questão da Habitação, no contexto do desenvolvimento e da reprodução da cidade no Brasil, aonde foi trazido números mostrados pela mídia nacional, relativos ao déficit habitacional no país, no qual há necessidade da construção de 6,9 milhões de novos domicílios, mas ao mesmo tempo temos 6,05 milhões de imóveis vazios. Tal situação, mostra-nos como os instrumentos alcançados pelo Estatuto das Cidades em 2001, depois de treze anos depois da Constituição Federal de 1988, que determinou que o Direito de Propriedade não deveria se sobrepor ao seu papel social. Conquista, que apesar de lavrada em lei, ainda não foi introjetada no seio de nossa sociedade como uma regra justa, pois ainda não teve sua aplicação generalizada nas cidades brasileiras, aonde o aprisionamento do lucro imobiliário ainda não é praticado. Demonstram isso os casos do; Edifício Wilton Paes de Almeida, construído em 1960-68, projeto do arquiteto Roger Zimelkoh, um exemplar miesano do nosso modernismo, tombado em 1992 pelo CONPRESP, que fora ocupado  no centro da cidade de São Paulo, e que ruiu num incêndio em 2018; e a Ocupação Manoel Congo no edifício ao lado da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, que permanece com infraestruturas inadequadas por seu desenvolvimento em altura. Dois exemplares, que mostram o paradoxo de nossa condição urbana, que permanece sacralizando a propriedade privada na reprodução de um sociedade injusta e concentradora de renda.

Nessa segunda aula também destaquei a presença dos estudos pós-coloniais, que possuem em Gramsci uma forte referência, a partir de dois breves exemplos, de um lado a indiana, radicada nos EUA, na Universidade de Columbia, Gayatri Chakaverty Spivak (1942 – ), e por outro lado, o brasileiro Marco Del Roio (1954-) da Universidade Federal de São Paulo, do campus Marilia, que é presidente da International Gramsci Society.  De SPIVAK, fiz menção a sua intenção de pensar a teoria crítica como uma prática intervencionista, engajada e contestatória, que para mim parte da 11ª Tese de Karl Marx sobre o filósofo hegeliano, materialista e alemão Feuerbach; “Os filósofos até então pretenderam interpretar o mundo, hoje é mais importante modifica-lo.” Minha percepção de sua obra, se restringe a apenas um único livro, o que é pouco; “Pode o Subalterno falar?”, no qual, se destaca o caráter dialógico dos atos de escuta e fala, e a inevitável “...reprodução de sua submissão (do subalterno) à ideologia dominante.” Num comentário sobre um texto clássico do filósofo franco-magrebiano Jaques  Derrida (1930-2004); "A Política da Tradução", SPIVAK menciona a dificuldade de “fazer falar o texto de outrem, um processo contínuo de adiamentos, aproximações e sobretudo negociações.” Para mim, uma potente analogia com os procedimentos de plano, projeto e gestão do objeto construído a longo prazo, que são processos e não apenas produtos prontos e embalados. Na dinâmica de falar pelo outro, SPIVAK separa e distingue entre assumir o lugar do outro (falar por) e representar o outro (performance). 

“Sujeito subalterno é irredutivelmente heterogêneo..., nenhum ato de resistência pode ocorrer em nome do subalterno sem que esse ato esteja imbricado no discurso hegemônico.” SPIVAK

 O brasileiro Marcos del Roio (1954- ), crítica a segmentação da ordenação do ensino público no mundo como um todo, que enfatiza aulas técnicas para os trabalhadores, enquanto o aprendizado humanista era destinado a burguesia e pequena burguesia. De um lado atividades mecânicas e pragmáticas e de outro a preparação para a administração pública e o exercício da política e a auto expressão do seu grupo social específico. A isso ROIO 2018, contrapõe  a auto-educação e liberdade; uma escola de direção e administração dos cotidianos do precariado, transmissão de uma cultura operativa, mas nem por isso menos crítica, já manifesta, mas ainda subalterna. A experiência da revista L´Ordine Nuovo de Gramsci com Togliatti, na Turim dos anos vinte é destacada por seu esforço didático, envolvendo sociedade, política e cultura.

“A escola organizada pelo L´Ordine Nuovo começou a funcionar em fins de 1920, quando o movimento dos conselhos de fábrica começava já a declinar, vítima dos ataques convergentes do Estado.... não tinha a intenção de preparar os trabalhadores para um mundo a eles estranho. Pelo contrário, a ideia era reforçar o princípio da solidariedade... A ideia de que o educador se deixa educar..., para a autogestão da produção e para a administração pública, entendida como auto-governo.”  ROIO 2018 páginas121 e 122

A partir desse momento, procurei levantar algumas questões, que povoam a relação entre sujeito e objeto, entre a manipulação da linguagem e a humanização do homem, e seu afastamento da natureza como ente artificial, nunca inteiramente materializado, que estão presentes nas ações de plano e projeto, tão caras aos arquitetos. A linguagem surge do distanciamento entre homem e natureza, afastando-o das coisas, tornando possível a nomeação delas, como entes distintos produtores dos conceitos de subjetividade e objetividade. Os animais vivem imersos na natureza, o homem cria um mundo artificial, no qual a cidade e a arquitetura são os frutos mais visíveis da separação do real pelo homem. Três partes da experiência humana são constituídas pelo; O REAL: modo indicativo (o que existe), O ÉTICO: o modo imperativo (o que deveria existir), O POSSÍVEL: o modo subjuntivo (o que poderia existir). Portanto, nossa compreensão do mundo real é governado por complexas interações entre; o que existe, o que deveria existir, e o que pode existir. Os artefatos não agem, mas determinam nossas ações, no caso das cidades essa extra determinação é clara, a partir das imposições da sua materialidade ao cotidiano das diversas existências, dentre as quais a mais impactada é sempre a do precariado. As coisas definem como devem viver os indivíduos aos quais elas deveriam servir. Inversão entre sujeito e objeto, entre meio e fim foi caracterizado por vários filósofos como ALIENAÇÃO. Na interelação do sujeito com os objetos que produz, os conceitos de expressão e mímese são faces do mesmo processo: toda expressão é uma mimese do sujeito, e toda mimese é uma expressão do objeto.

“Todas as artes expõe a relação fundamental entre homem e mundo – a relação de inerência: o sujeito é um momento do objeto. Mas enquanto a arquitetura expõe essa relação de um ponto de vista objetivo (o mundo contém o homem), as demais artes a expõe de um ponto de vista subjetivo (o homem está contido no mundo).” PULS 2006

“A obra não manifesta apenas a consciência da classe de origem (produtora), mas também a da classe de destino (consumidora)” PULS 2006

“Não se projeta nunca para, mas sempre contra alguém ou alguma coisa” ARGAN. 

Todas essas questões reforçam a dimensão crítica do plano e do projeto, que não devem ser encarados como mera resolução de problemas expressos em programas comportados, que se constituem em demandas sociais concretas dos diferentes grupos. A cidade e a arquitetura são meros espaços e cenários para as complexidades da vida humana, essa espacialidade por si só é incapaz de promover a redenção e a felicidade dessa existência. Mas, toda classe dominante precisa atender parcialmente os interesses de algumas classes dominadas e desatender os interesses de outras, uma vez que o conflito é inerente a existência humana, e que a auto-expressão de interesses de grupos é uma forma de se auto-constituir como individualidade. Na verdade, a obra ou o objeto é um discurso no qual um sujeito coletivo pede ou exige que o outro assuma uma posição que lhe seja favorável. O primeiro apela a um interlocutor, método dialógico, buscando persuadi-lo da justeza da obra representada no plano ou no projeto. A cidade, a arquitetura e a arte não são nem universais nem singulares, elas são necessariamente particulares de um contexto material e humano. Um ente, seja a cidade, a arquitetura ou a arte serão considerados belos se agradarem a muitos indivíduos em diferentes gerações e tempos, comunicando uma capacidade de humanizar o homem. Todas essas questões envolvem complexas interelações entre contemplação e objetividade, entre juízo do gosto puro e juízo do gosto aplicado. O plano e o projeto devem ser conceituados como; "a crítica operativa do real", isto é uma formulação crítica sobre o existente, mas também uma vontade de operação, uma adequação ao existente e ao possível. Plano e projeto são basicamente processos, que ao se iniciar estão abertos disparando no seu desenvolvimento a definição do que será. Não existe plano e projeto pronto na prateleira. Inevitavelmente, plano e projeto irão disparar conflitos eternos e consensos episódicos.

Todas essas questões nos levam a problematizar a auto identidade brasileira, perpassada pelo complexo de vira-latas de Nelson Rodrigues. Há um valor imaterial na cultura brasileira, que nós não damos conta; ela está na ausência total de identidade, mas na convivência com a diversidade. Não existe um Brasil puro sangue. Não existe um povo brasileiro, mas existe uma idéia de Brasil, que se relaciona com uma capacidade de convivência de diversidades, que nos conformam. Desde cedo somos acostumados à diversidade, somos na verdade mineiros, paulistas, cariocas, paraibanos, baianos, pernambucanos, paraenses, etc.. Somos localistas e, muitas vezes como em Minas Gerais somos na verdade da Zona da Mata, do Triângulo, do Sul, do Centro ou do Jequitinhonha. Talvez a nossa constante auto ironia, o nosso complexo de vira latas seja o valor imaterial maior da cultura brasileira, que precisa se converter em auto-estima e auto-celebração vigiada. Somos na verdade uma cultura cosmopolita, pois está sempre interessada em ouvir o outro, faltando-lhe apenas se colocar numa posição de potência, sem prepotência ou arrogância. Mas, a partir da conjuntura contemporânea do Brasil percebe-se uma ansiosa adesão na cultura brasileira ao autoritarismo, como forma celebrada de supressão da diversidade de interesses inerentes a uma sociedade plural. O Brasil da Constituição de 1988 parecia estar cansado da verticalização de suas instituições, queria se transformar numa diversidade horizontal, igualmente empoderada, num país capaz de gerar uma lógica de inclusão de todos, e, não exclusivo de poucos. As ações de Plano e Projeto desempenham papel fundamental nesse novo Brasil, que parecia estar sendo e desejando passar a ser inclusivo.

A partir desse momento me dediquei a tentar empreender uma revisão histórica do campo da teoria do plano e do projeto, não como atividades exclusivas de arquitetos e urbanistas, mas como aspirações presentes em qualquer ser humano. Na verdade, como colocado por GRAMSCI, a previsibilidade é uma aspiração humana geral, que envolve o desejo legítimo de auto-determinação da sua própria existência, uma dimensão que não estava disponível para todos, mas apenas para alguns. Essa revisão histórica partia de dois momentos mais recentes, próximos a nossa contemporaneidade, que eram as manifestações de Maio de 1968, em várias partes do mundo, e o refluxo autoritário no Brasil, a partir da eleição de Jair Bolsonaro. As manifestações em Paris 1968, pelos Direitos Civis nos EUA e no Brasil contra a Ditadura Militar lançam uma certa confusão nos sistema político ideológico, embaralhando as posições de esquerda e direita expressas nos partidos; na Europa - entre Comunistas, Social Democratas e Católicos -, nos EUA - entre Democratas e Republicanos -, e no Brasil, da Ditadura Militar - entre Cultura e Contracultura. Um fenômeno, classificado por muitos como a expressão das elites multidimensionais, que envolviam complexas interações entre Patrimônio Cultural, Estado, Comum e Propriedade Privada. A luta contra a burocratização da vida no Estado Moderno e sua incapacidade de representar o interesse público geral, pelo menos das maiorias, sem ser privatizado pela elites endinheiradas de todas as partes do mundo. Emerge uma perigosa contraposição do populismo ao elitismo, emblematicamente materializado na crítica de ADORNO e HOCKHEIMER à indústria cultural de massas no livro, Dialética do Esclarecimento, que desvenda o entorpecimento das classes subalternas, que nos EUA e na Europa atingem graus de consumo inusitados, a partir da política do New Deal, entorpecendo sua capacidade de antagonismo. Os dois representantes da Escola de Frankfurt também destacam o ocorrido na Alemanha, um Estado de desenvolvimento tardio no sistema capitalista internacional, que adota em 1933 com a eleição do nazismo de Hitler, escolhido no seio da população mais alfabetizada e com maior acesso à universidade, dentro do contexto da Europa, a solução autoritária e autocrática, diante da expansão do socialismo soviético.

Por outro lado, no contexto contemporâneo brasileiro, aonde a sucessão de governos legitimamente eleitos parecia apontar para o afastamento definitivo das tradições autoritárias e autocráticas de uma história patriarcal e escravocrata, que havia promovido um dos desenvolvimentos mais espetaculares do sistema capitalista no século XX, a partir de uma inusitada e grande concentração de renda. O Brasil redemocratizado pela Constituição de 1988 aparecia como uma potência nova e inusitada, que parecia reconhecer a sua necessidade de distribuir melhor sua riqueza. A Constituição desse Estado com pretensões mais justas, que não foi decretado em 1988, mas que envolveu embates e lutas sociais importantes, que não estavam de todo consolidados, passou a ser questionado com as manifestações de 2013, e, capturado por grupos que recolocavam a necessidade das decisões monocráticas da tradição patriarcal. A partir daí no Brasil, o discurso conservador expressos pelo capital rentista, militares, policiais e milícias ganhou terreno a partir de uma série de acontecimentos desde o processo de redemocratização, que podem ser resumidos em quatro pontos;
  • as tradições estruturais do autoritarismo brasileiro,
  • a longa recusa do enfrentamento em nossa história desse mesmo autoritarismo,
  • a sacralização do direito de propriedade, e
  • a ausência de tributação do capital rentista, que apura valores exorbitantes sem produzir nada
A curta conjuntura de emergência de grupos milicianos e para militares, a partir de 2013, que endemonizaram a política dos direitos humanos, que começam a ser alcançados pós constituinte de 1988, foram muitas vezes apontados por uma ausência de reflexões mais aprofundadas sobre o Monopólio da Violência num Estado dominado por uma elite atrasada e incapaz de formulação autônoma de um projeto próprio. Tais pontos estão de certa forma naturalizados em nossa sociedade, em uma série de comportamentos e atitudes cotidianas. Na verdade, a aspiração a sua transformação em algo diverso do existente decorre de uma diversidade de visões e narrativas, que disputam o metabolismo social, todas almejando ser compartilhada pela maior parcela, que podem ser sintetizadas em dois lados;
  • Lado progressista: luta contra a manutenção de sua forma operativa inercial; alienada, competitiva e repetitiva, bloqueadora da felicidade e do bem estar, buscando alcançar formas de solidariedade, cooperação e inclusão.
  • Lado conservador: a reafirmação da forma de funcionar inercial da sociedade competitiva como adequada, e que, não deve ser questionada, pois sua própria reprodução permitirá alcançar a felicidade e o bem estar.
Na verdade, essa disputa de narrativas que se sobrepôs de forma confusa, a partir de 2013, dando a impressão de que o lado conservador representava uma mudança, repetindo e celebrando nossa tradição autoritária como melhor forma de superar nossa condição. Tal situação parece estar emblematicamente representada pela promoção na atual Pandemia de Covid-19, daquilo que será nosso "novo normal". Num claro paradoxo, presente nessa expressão "novo normal“, pois se for verdadeiramente "novo", não deveria ser "normal". Será, que essa difusão tão ampla entre nós, já seria um direcionamento em favor do conservadorismo? Ou a maioria silenciosa, que não se manifesta nem nas redes sociais abraçou o conservadorismo mais atrasado, diante da disseminação do medo, que desde tempos imemoráveis trabalha ronda o imaginário coletivo. A penetração do discurso neo liberal conservador é um fato, aonde só se condena as organizações estatais, se celebra a iniciativa privada e o empreendedorismo, e se proclama o equilíbrio fiscal como clausula pétrea.

“O “brasileiro médio” gosta de hierarquia, ama a autoridade e a família patriarcal, condena a homossexualidade, vê mulheres, negros e índios como inferiores e menos capazes, tem nojo de pobre, embora seja incapaz de perceber que é tão pobre quanto os que condena. Vê a pobreza e o desemprego dos outros como falta de fibra moral, mas percebe a própria miséria e falta de dinheiro como culpa dos outros e falta de oportunidade. Exige do governo benefícios de toda ordem que a lei lhe assegura, mas acha absurdo quando outros, principalmente mais pobres, têm o mesmo benefício.” LAGO, Ivann – O Jair que há em nós - 2020

A partir desses dois momentos, mais próximos de nossa contemporaneidade procurei compreender nosso tempo no campo da arquitetura e do urbanismo, localizando em meados do século XIX o inicio da transformação humana, de rural para urbana. Um processo, que no Brasil foi efetivado na década de setenta do século XX, e no mundo foi materializado na década de noventa do século passado, quando a população chinesa impõe essa mudança de perfil. A Revolução Industrial, no início do século XIX possibilitou essa transformação, que teve profundos impactos sobre nosso campo, transformando as cidades de comunidades coesas e identificáveis, em imensas diversidades sem coesão e despersonalizadas. A cidade de Manchester passa de um aglomerado de 12 mil habitantes em 1760, para 400 mil em 1850, São Paulo tinha em 1930, 900 mil habitantes, chegando em 2011 a 20 milhões, na China está previsto nos próximos dez anos um êxodo para as cidades da ordem de 200 milhões de chineses. O fenômeno da urbanização ganhou uma dimensão imensa, que colocou a humanidade, diante de uma perspectiva, de ampliação da expectativa de vida, do acesso a educação, da melhor distribuição de oportunidades, que no entanto no último quarto do século XX começou  a demonstrar tendências de concentração de renda, que na passagem do século XIX para o XX já haviam ocorrido. A crise de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York e a 2a Guerra Mundial foram na verdade consequências dessa concentração de renda da Belle Epoché, que pareciam ter sido corrigidas, ao final da grande guerra, pela presença da União Soviética e pelo concomitante alcance do Estado de Bem Estar Social nos países mais desenvolvidos. A crise do fordismo e do keynesianismo, que se manifesta no final dos anos setenta, com o declínio dos lucros, a emergência inicial de uma sociedade pós industrial, aonde o maior empregador passam a ser os serviços.

Em 1979 Margareth Thatcher assume como primeira ministra britânica. Em 1980 Ronald Reagan assume a presidência dos EUA, desenvolvendo-se uma enorme desregulamentação do capital, uma enorme celebração do empresariamento e uma endemonização do Estado. O wellfare state ou Estado de bem estar social começam a  desmoronar de forma contínua, colocando pela primeira vez desde de meados do século XIX o movimento conservador como interessado em mudanças no status quo. Uma transformação que esvaziou o uso industrial e fez emergir um contínuo de serviços financeiros principalmente, aonde a massa do precariado não encontrava mais um solo identitário e de reunião, mas se dispresava numa série de unidades. As empresas de serviços financeiros e seguros passaram a representar no mundo anglo saxão, um terço do emprego disponível, ,iniciando-se uma forte hegemonia do capital rentista e especulativo no mundo. As questões da solidariedade da classe trabalhadora, que se constituiram como principais bandeiras identitárias do século XX perdem força, dando lugar a uma ideologia da luta do indivíduo contra todos, expressa  na máxima de Thatcher;

“Não existe essa coisa de sociedade, o que há e sempre haverá são apenas indivíduos e suas famílias.“ THATCHER, Margareth 

A eficiência empresarial passa a regular todas as relações, como se a financeirização e a montetarização de tudo fossem capazes de dar conta da complexidade das necessidades humanas. O Estado burocrático e controlador passa a ser visto a partir de uma lógica arrecadatória, aonde é pecado promover políticas anti-cíclicas de impulsionamento do desenvolvimento. O regime de austeridade fiscal passa a ser sacralizado com a repetição ad infinitum de que não se pode gastar mais do que se arrecada, ou  de que "não existe almoço de graça".  As posições de esquerda e direita, que organizaram as identidades políticas desde a Revolução Francesa começam a entrar em crise, passando a esquerda a defender um estatismo inusitado, enquanto a direita celebra o livre empreendedorismo. A distinção clássica entre esquerda promotora da igualdade, e direita impulsionadora da liberdade individual é recalcada em nome da esquerda burocrática e estatal, e da direita livre empreendedora. 

“Antes de tudo, é preciso salientar que as coalizões redistributivas de tipo social democrata que se impuseram em meados do século XX tinham não apenas uma dimensão eleitoral, institucional e partidária, mas sobretudo intelectual e ideológica... Em outras palavras, a decomposição da estrutura direita-esquerda do pós-guerra, sobre a qual se apoiara a redução de desigualdade em meados do século XX” PIKETI 2020 página 45 e 47

Na década de setenta e oitenta, filósofos como Lyotard e Fukuyama decretam o fim dos discursos explicadores da modernidade como o marxismo e o iluminismo, que construiam uma ética do agir e do pensar. Começa a emergir uma lógica localista, que se rebela contra o pensamento sistêmico e estruturador do modernismo, que na sua ânsia de concatenar as forças sociais em luta acaba ganhando uma estrutura burocrática e pouco criativa. Desenvolve-se uma consciência interessada e manipuladra,  de que a utopia modernista era autoritária e congelava as aspirações e criatividade de realização das futuras gerações. As políticas Neo-Liberais implantadas a partir do final dos anos 70, com os governos Thatcher (1979) e Reagan (1980) determinam um forte aumento da concentração de renda no mundo, com o decréscimo da taxação sobre os 10% mais ricos, e a supressão de impostos sobre transmissão de heranças. Há um claro acréscimo na apropriação da renda nacional pelos 10% mais ricos, que na verdade usufruem da mobilidade dada ao seu capital frente ao descontrole dos Estados Nacionais e sua alocação em paraísos fiscais pelo mundo. A política urbana, que tradicionalmente regulava o valor da terra na cidade sofre a mesma desregulamentação determinando processos perversos de concentração de renda inusitados. A promessa dos governos, mesmo mais a esquerda, que se sucedem é de transformar o precariado em proprietário, com direito a usufruir da valorização imobiliária, que acabam impulsionando processos de gentrificação. Em meados dos anos 1990 o advento da Internet e das Tecnologias de Informação e Comunicação lançam para a humanidade a possibilidade de acessar um amplo acervo de informações, que determinam uma imensa dispersão de energias, parecendo inviabilizar a possibilidade de construção de prioridades e consensos. A política radicliza seu processo de fragmentação numa infinidade de interesses, nas políticas de identidade, que parecem irreconciliáveis, apontando para a impossibilidade da construção de consensos. Por outro lado, essas mesmas tecnologias impulsionam a independência dos investidores da realidade produtiva efetiva, tornando o mercado especulativo abstrato e descolado da realidade.

Também em meados dos anos 1990 o filósofo alemão da Escola de Frankfurt, Jürgen Habermas decreta num texto, Arquitetura Moderna e Pós Moderna, no qual ironiza a tendência contemporânea de se utilizar do prefixo pós para caracterização do nosso tempo. O texto de Habermas distingue a modernidade do modernismo, dizendo que a pretensão humana de desígnio do seu futuro, que as revoluções americana, francesa e russa tinham expressado permanecia inalcançado, sendo essa uma pretensão da modernidade. Enquanto, o modernismo com seu positivismo técnico havia sido superado, a partir das bombas de Hiroshima e Nagasaki no Japão, que determinaram uma profunda desconfiança frente as promessas redentoras do aparato tecnológico. Habermas constroe e reforça sua teoria da racionalidade comunicativa, que se contrapõe a racionalidade meramente individual e instrumental, determinando que a razão não deve estar carregada de personalismos, mas construída a partir de consensos coletivos. Abre-se uma nova perspectiva utópica, que não mais condena as gerações futuras a uma construção congelada e fixa, mas que celebra o processo de auto-construção e de auto-determinação, comemorando a diversidade de variados grupos identitários, que na participação dos fóruns de construção da racionalidade inter-subjetiva são ouvidos e identificados. O texto também menciona os desafios aos quais o modernismo não conseguiu dar uma resposta efetiva, como no caso da produção da habitação em larga escala, para todos e o controle do lucro na cidade capitalista.

No campo específico do projeto, desde os anos 1960s, Christopher Alexander se propõe a mapear a gênese da evolução da forma no processo de desenvolvimento do projeto, com o claro interesse de impulsionar a participação do usuário na elaboração do seu ambiente construído. Os livros Ensayo sobre la Sintesis de la Forma (1964) e Una Lenguagen de Patterns (1977) pretendem abrir ao conhecimento de todos, os processos da conformação espacial da cidade e do objeto arquitetônico, objetivando a participação dos usuários. Desenvolve-se no mundo Anglo-Saxão e nos EUA o advocacy planning ou projeto participativo, no qual o processo de construção do vir a ser de comunidades específicas é celebrado como a verdadeira pulverização da democracia. As tendências de maior apuro teórico celebram o alcance da explicitação do conflito, e da possibilidade de construção de consensos episódicos. No começo da década de 60, Jane Jacobs decreta a perda da vitalidade das cidades americanas em função de um rodoviarismo exacerbado, presente no modernismo nos projetos de Le Corbusier como o Plano Voisin para Paris, ou nas intervenções de Robert Moses em Nova York. O livro The Death and the Life of American Cities de 1960 celebra a vivência como uma forma de saber e conhecimento, que deve ser extraído dos usuários.

"As cidades tem a capacidade de prover algo para alguém, somente porque, e apenas quando, são criadas por todos... Não existe melhor expert na cidade do que aqueles que vivem e experimentam seu dia a dia." JACOBS 2000 página 6

A ideologia do rodoviarismo, que domina as cidades desde a hegemonia do pneu começa a ser identificada como destruidora da vida intra-urbana, da convivência, da proximidade, determinando aglomerações de baixíssima densidade, sem efetiva urbanidade. As intervenções de Robert Moses em Nova York elegem o rodoviarismo e destroem relações de vizinhança e de comunidades, a hegemonia do automóvel determina um certo isolamento do indivíduo na grande metrópole, reduzindo o espírito de participação na cidadania. A cidade de Los Angeles, na costa oeste dos EUA emerge como paradigma do bem viver, onde o automóvel se articula com a baixa densidade, surgindo um modelo de baixa interação social e isolamento do ser humano na cidade. Ainda nos anos cinquenta, o arquiteto Loui I. Khan retoma o tema da monumentalidade e quebra a unidirecionalidade tecnológica dos materiais, retomando o tijolo como elemento pré-moldado mais potente. Kahn retoma o tema da intemporalidade do ato de construir entendendo a arquitetura como a institucionalização das organizações humanas, a materialidade e as tecnologias construtivas passam a ser entendidas como uma pluralidade que está articulada com as locais. Em 1947, Khan assume a cadeira de arquitetura em Yale, fazendo reflexões fundamentais: “O que o lugar quer ser?” “ Programa morto e vivo” “Espaços que servem e os que são servidos”, suas reflexões impactam na forma de produzir o plano e projeto, a partir de pensamentos ancoradas no local. No campo da teoria estruturalista, também nos anos 60, Kevin Lynch e Aldo Rossi apontam para a processualidade da construção da cidade, reforçando conceitos como o da Legibilidade, e o das Pré-existências, dentro do projeto das aglomerações humanas. A capacidade das aglomerações humanas sempre únicas e particulares são valoradas a partir da sua potencialidade de produzir mapas mentais. Nos anos 70, Manfredo Tafuri, um arquiteto teórico da Universidade de Veneza elabora a idéia do arquiteto como ideólogo do habitar, um formulador de conceitos e proposições que propõe o "Bem Viver" e possuem a capacidade de contaminar a sociedade para suas formas de operação e de prática. O plano e o projeto são encarados como uma atitude crítica, e ao mesmo tempo operativa frente ao real e ao existente.

No Brasil, dos anos setenta, Carlos Nelson dos Santos lança o livro A cidade como jogo de cartas, no qual celebra uma certa neutralidade do desenho da grelha, que impulsiona sua apropriação por diferentes agentes no longo prazo da cidade. O livro é motivado por uma demanda concreta para o projeto de novas cidades no norte do país para abrigar novos empreendimentos governamentais. No livro, o Plano de Nova York de 1811 é celebrado pela presença de um certo paradoxo, que decreta uma imensa homogenização do território baseado na malha xadrez, aonde os lotes e as quadras são absolutamente iguais e repetidas em todas as partes, e, que apesar disso geram no longo prazo uma imensa diversidade. Os elementos celebrados são a rua, a quadra e o lote como unidades em torno dos quais o jogo da cidade é jogado. Num paradoxo, Carlos Nelsom dos Santos aponta que apesar desse inicio homogenizador a ilha de Manhattan apresenta hoje grande diversidade de tipologias, usos e contínuos diferenciados. Se restabelece a possibilidade da construção utópica, que deixa de ser um objetivo fixo e congelado, mas a celebração de uma processualidade que restabelece a necessidade da presença contínua da criatividade das futuras gerações. O jogo pressupõe agentes e atores igualmente empoderados, que declaram suas intenções e negociam objetivos, a racionalidade abandona a subjetividade isolada e se aproxima da inter-subjetividade, proposta por Habermas. Na mesma época, na cidade de São Paulo, uma geração de arquitetos pós-Brasília, como Sérgio Ferro e Rodrigo Lefebvre fazem reflexões importantes a partir do arcaismo dos canteiros de obra no país, que produzem a face moderna dele próprio. A denuncia aproxima as tecnologias do construir da linguagem manipulada por todos, entendendo o domínio de formas de construir, como uma maneira de se expressar. As abóbodas de Lefebvre e a demanda por maior criatividade para os operários no canteiro de obras de Sérgio Ferro pretendem promover uma nova ordenação social mais inclusiva. Ainda no Brasil, no anos 80/90 se estabelece uma clara hegemonia do pensamento neo-liberal na política, a partir dos governos de Thatcher e Reagan, frente a uma tradição do país de desenvolvimento nacional e estatista, que claramente retrocede.. 

"Em suma, o neoliberalismo se tornou hegemônico como modalidade de discurso e passou a afetar tão amplamente os modos de pensamento que se incorporou às maneiras cotidianas de muitas pessoas interpretarem, viverem e compreenderem o mundo." HARVEY 2008 página 13

O país observa um claro declínio da capacidade de planejamento centralizado e vertical, uma emergência do protagonismo da sociedade civil e do planejamento estratégico, em alguns episódios há o desenvolvimento de um dualismo redutor entre plano e projeto. Há uma desregulamentação geral e algo desorganizada, que determina o declínio do projeto e do planejamento frente uma era de incertezas, onde as mudanças assumem uma grande velocidade e imprevisibilidade. A cidade assume uma dimensão simbólica importante, pois nela é que se concretiza o cotidiano efetivo das pessoas. Habitação, Mobilidade, Universalização das infraestruturas e Impacto ecológico são temas da cidade. A humanidade se transforma numa maioria urbana, fato inusitado na história. Em 2002 cria-se no Brasil o Ministério das Cidades, responsável por formular uma política urbana para o país, mas que não assume essa importância central, ficando muitas vezes na periferia do poder, apesar de mobilizar imensos recursos. O urbano é central na política de distribuição de renda, pois pretende universalizar o acesso a urbanidade. Nesse sentido, as conquistas da nossa constituição e do Estatuto da Cidade são fundamentais na gestão de um território urbano mais inclusivo, aonde a universalização das infra estruturas urbanas é direito de todos. O Estatuto das Cidades, aprovado em 2001 ainda não se generalizou nas cidades brasileiras como instrumento operativo de captura do lucro imobiliário excessivo, para investimentos públicos voltados para as populações mais precarizadas.

Em 1842, o ainda jovem Karl Marx escreveu uma série de artigos no Reinish Zeitung (A Gazeta Renana) sobre a lei que impedia a coleta de lenha nas florestas recentemente privatizadas da Renânia, que constituem a abertura do filme do diretor haitiano Raoul Peck, co-escrito pelo francês Pascal Bonitzer, que descreve o começo da vida do filósofo alemão, desse momento até a síntese do Manifesto Comunista em 1848, junto com Engels. Esses textos estão brilhantemente comentados em dois livros contemporâneos de Pierre Dardot e Christian Laval, intitulados; A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal e O Comum, ensaio sobre a revolução do século XXI, que destacam a profundidade das reflexões de Marx a partir do problema da coleta de lenha naturalmente caída no solo, com respeito a filosofia do direito, um tema também caro ao seu mestre, o filósofo Hegel. O "Comum", como um valor que o capitalismo em sua longa transição sente dificuldade em cercar, privatizar e explorar, na sua ânsia de monetarização de tudo. Os Mares e Oceanos, as Águas e Mananciais, a Arquitetura e o Patrimônio construído pela humanidade, o Meio Ambiente são exemplos de contínuos comuns, ainda não privatizados, que deveriam se constituir como principal luta das esquerdas no mundo. Nos livros, os dois filósofos franceses também apontam o declínio da capacidade das esquerdas de oferecer um projeto alternativo, tendo sido suplantada de certa forma pela nova direita e pelo neo liberalismo. Neles fica claro a problematização da relação entre Esquerda e o Estado, esse último foi considerado inicialmente pelo movimento comunista, como uma ordenação de classe, que deveria ser instinta pela conquista do poder pelos subalternos. A história do Neo liberalismo e suas estratégias de penetração no cotidiano humano, o reconhecimento de sua capacidade de persuasão e convencimento desde a década de 80 de amplas massas, embasam a conformação de uma nova estratégia de enfrentamento centrado no conceito do "Comum".

"A raiz etimológica da palavra "comum" nos dá uma indicação decisiva e uma direção de pesquisa. Émile Benveniste indica que o termo latino munus nas línguas indo-européias, pertence ao vasto registro antropológico da dádiva e designa ao mesmo tempo um fenômeno social específico; por sua raiz, remete a um tipo particular de prestações e contraprestações que dizem respeito a honras e vantagens ligadas a encargos... Encontramos nos significados do termo a dupla face da dívida e da dádiva, do dever e do reconhecimento, própria do fato social fundamental da troca simbólica... Não se trata, primordial ou principalmente, de dádivas e obrigações entre parentes e amigos, mas, na maioria das vezes, de prestações e contraprestações referentes a toda uma comunidade. É o que se encontra tanto na designação latina do espetáculo público dos gladiadores (gladiatorum munus) como no termo que exprime a estrutura política de uma cidade (municipium) formada pelos cidadãos do município (municípes)." DARDOT e LAVAL 2017, página25 



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