sábado, 29 de agosto de 2020

Apontamentos da Aula 1: Arquitetura, Cidade, Subalternidade, Filosofia no IAB Compartilha

 

A Redenção de Cam, retrata o processo de
embranquecimento da população brasileira, pintor
espanhol Modesto Broco 1895
Nos dias 24 e 26 de agosto de 2020, ministrei  duas aulas sobre as conexões existentes entre o espaço construído pelo homem (cidades e sua arquitetura), a filosofia contemporânea, e o termo Subalternidade, como um termo marcante da cultura brasileira. Essas anotações foram das pesquisas, da apresentação disponibilizadas para os alunos e de uma série de manuscritos que todo processo de montar uma aula disparam no seu professor. Aqui vão, as relativas a primeira aula de 24 de agosto de 2020, na série de cursos IAB Compartilha, que pretende oferecer uma formação continuada para os profissionais que militam no campo do abrigo e da cidade. Pretendo disponibilizar, logo em seguida a segunda aula dessa série de cursos, que representam a sua quinta versão, a segunda oferecida de forma remota, em função da Pandemia de Covid-19. Todas as outras aulas dessa série de cursos estão disponíveis aqui no blog e compõem um conjunto de reflexões e questionamentos sobre as formas de desenvolvimento e reprodução da cidade brasileira, que derivam de um projeto exclusivista, que está no cerne da sua própria sociedade. A acepção da Subalternidade, parte do nosso maior dramaturgo, Nelson Rodrigues, que num de seus lampejos críticos-provocativos determinou num sensível diagnóstico da alma brasileira;

“Por "complexo de vira-lata" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima.” RODRIGUES, https://pt.wikipedia.org/wiki/Complexo_de_vira-lata

O curso como um todo, parte do filósofo marxista e italiano Antônio Gramsci, que nasceu na Sardenha em 1891 e morreu em Roma em 1937, com apenas 46 anos, e, que apesar da pouca idade possui potentes reflexões para o nosso mundo contemporâneo sobre a Subalternidade, notadamente no Quaderni 25, que recebe o título; "Às Margens da História (História dos Grupos Sociais Subalternos)". Além dele apresento os desdobramentos de seu pensamento, que chegaram a nós pelas reflexões de diversos pensadores atuais, que se auto denominaram como subaltern studies, e que ancoram suas teorias nos pensamentos de Antônio Gramsci. Sua biografia apresenta um vínculo forte com os grupos sociais subalternos, uma vez que nasce na rural, arcaica e pobre Ilha da Sardenha, migrando em 1911 para a desenvolvida, industrializada, urbana e rica Turim, no norte da Itália. Além disso Gramsci era filho de pais muito pobres, teve de trabalhar desde criança, seu pai foi preso ainda na sua infância, tendo a família que se sustentar com os trabalhos de costura de sua mãe. Ainda muito cedo teve um problema de saúde muito sério, que foi uma tuberculosa óssea, que representou uma fragilidade física para toda sua vida. Turim era um local que concentrava fábricas como a FIAT e a LANCIA, que atraiam imensos contingentes de operários e nos primeiros anos do século XX concentrou importantes movimentos dos Conselhos de Fábrica, que lutava pela auto-gestão dessas industrias. O sistema de pensamento de Gramsci terá sempre um sentido articulador das lógicas espaciais, econômicas, sociais e culturais, que se articulam numa complexidade. Num sistema de centros hierarquicamente articulados, numa estrutura de dependências mútuas, aonde a relação entre hegemonia e subalternidade embasa e organiza processos complexos de auto-identidade, que partem de centralidades e periferias interdependentes. A subalternidade da Itália nesse sistema mundial, a minoridade da burguesia italiana frente as burguesias; inglesa, americana e francesa, sua declaração de dependência do Estado Nacional, a fraqueza do liberalismo italiano frente a essas outras três nações. A posição da Sardenha e a parte meridional da Itália agrária, católica e arcaica, frente ao norte industrializado, urbano e moderno. O marco referencial será sempre a história particular desses diferentes lugares, que a partir da transformação moderna da constituição da Unidade Nacional inclui ou exclui uma participação maior das suas populações, que assumem um caráter conformador de completude ou incompletude.

“Da Sardenha, metade agrária, camponesa e pobre do Piemonte ao Mezzogiorno todo colonizado e feito periferia do norte do reino da Itália. Mas, a rigor, toda a Itália já era periferia da França, pois o Risorgimento italiano, como revolução burguesa com participação difusa das massas, como revolução passiva, fez da Itália uma região periférica e subalterna, de resto como toda a região mediterrânea. Em outro círculo, a própria Europa corre o risco sério de se tornar um centro periférico diante da ascensão dos Estados Unidos.” ROIO, Marco del 2017 página10

Nesse desenvolvimento, a busca por um desenvolvimento justo e equilibrado, que distribua benesses de forma mais equânime entre precariados e empoderados é o objetivo da estruturação do pensamento gramsciano. Uma forma,  que entende a auto-expressão de cada cidadão como um processo de alcance da maioridade enquanto a capacidade de auto-determinação, e questiona a fórmula extratificada do status quo atual, cindido entre representantes e representados. O desenvolvimento histórico dos objetivos a serem alcançados, nesse sistema de pensamento, possui um profundo vínculo com o cotidiano prático e efetivo - filosofia da práxis - dos subalternos, que precisam ser levados a se diferenciar como os grandes prejudicados, pelo funcionamento geral da sociedade. A concentração de renda contínua na minoria da população, que desfruta da exclusividade da propriedade e a partir daí opera sua manutenção deve ser justificada por uma narrativa ou "ideologia". Para Gramsci, o termo "ideologia" assumirá um caráter mais neutro, como um sistema de pensamento que estrutura o agir de qualquer pessoa, havendo ideologias progressistas e conservadoras, que lutam pela conquista do metabolismo social, na medida em que recebem a adesão por um maior número de defensores. No entanto, não significa que ela possa ser livre das determinações e interesses sociais dos diferentes grupos sociais, que sempre desenvolverão vínculos profundos com sua forma de pensar. A perspectiva de Gramsci é a de impossibilidade de libertação de qualquer agente das amarras ideológicas, estando todos os grupos sociais condicionados por suas determinações.

“Desse modo, toda época produz um conjunto de discursos e ideologias contraditórios que visam legitimar a desigualdade tal como ela existe ou deveria existir e descrever as regras econômicas, sociais e políticas que permitem estruturar o todo.” PIKETI, 2020 pág.11

Esse tipo de pensamento, que não se conforma com a forma de operar do status quo, do poder instituído, produzindo de forma contínua uma massa de excluídos, que precisa ganhar consciência de sua condição de subalterno. Em 1919, Gramsci funda com Palmiro Togliatti a Revista L´Ordine Nuovo, um periódico que discute política, cultura e sociedade pretendendo o didatismo de atingir os temas e as preocupações desse mesmo precariado. Em 1926, logo após ser eleito deputado pelo Partido Comunista Italiano (PCI) pelo Vêneto é preso pela polícia de Mussolini, que havia tomado conhecimento da capacidade do jovem sardo, quando ainda militava no Partido Socialista Italiano (PSI). Gramsci ficará preso nos cárceres do fascismo, legando uma reflexão importante para nossa contemporaneidade, nos seus apontamentos nos Quaderni di Carceri. Apesar de marxista, Gramsci critica fortemente o positivismo do marxismo, que desde o advento da Revolução Russa de 1917 havia se restringido a um economicismo redutor, se aproximando muito dos questionamentos de Rosa Luxemburgo, a líder polonesa fundadora da Liga Spartakus na Alemanha, de então. O questionamento de Gramsci envolve sempre uma complexa interação dialética entre; Revolução-Ruptura, Reforma-Gradualismo, diferenças históricas entre Oriente e Ocidente, Estado e Sociedade Civil, Ideologia e Hegemonia. Por exemplo, a construção da hegemonia envolve um complexo gradualismo entre Coerção e Convencimento, aonde existiria na relação entre representados e representantes um movimento que partia da submissão unilateral até a legítima aceitação da representação. Um movimento entre a opressão supressora da identidade e a aceitação participativa da representação, nessa última condição se localizava a legitimidade efetiva da democracia. Questões como a centralidade e a subalternidade eram trespassadas por discursos, persuasão e convencimento dos diversos atores, que atingem a maioridade como representados, na medida em que controlam seus representantes. Há implicações claras nessa forma de raciocínio em todos os relacionamentos que envolvem o poder e seu exercício, aonde se concebe a História, como ciência de aprendizado contínuo. Há também no campo da conformação do plano e do projeto, uma possível analogia entre as condições de usuários e desenhistas, que na medida que se posicionam de forma equânime desenvolvem os desejos de forma madura e adequada. Na Itália, com a presença indelével da Igreja, a política como participação e construção coletiva era no tempo de Gramsci bloqueada pela orientação do abstencionismo por parte do catolicismo.

“Escreve Gramsci no Caderno25, que em seguida ao abstencionismo dos católicos da vida política, podia nascer entre os camponeses uma tendência subversiva-popular-elementar as massas rurais na ausência de partidos regulares, cercavam-se de dirigentes locais que emergiram dela própria, misturando a religião e o fanatismo ao conjunto das reinvindicações...” 
ROIO 2017 página28

A consciência de Gramsci do desenvolvimento capitalista, sempre nos remete ao confronto entre o arcaico e o moderno, o subalterno e o dominante, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar. Mas logo após sua chegada a Turim, Gramsci circulava no meio sindical, como produtor de ensaios e textos para jornais ligados ao Partido Socialista Italiano (PSI), ao mesmo tempo, era demandado pela Faculdade de Letras de Turim para temas acadêmicos, como os estudos de glotologia(1) do professor Matteo Bartolli, uma referência dos neolinguistas. Também a língua, sua evolução e seu desenvolvimento irão sempre constituir para Gramsci como um ordenamento estruturado de forma molecular e dispersa, e de baixo para cima, com transformações contínuas, que lhe permitiam analogias com a política. Além disso, a questão da língua sempre esteve nas reflexões de Gramsci relacionada à organização da cultura e à função dos intelectuais orgânicos das diferentes classes sociais. Foi exatamente essa celebração do acaso no devir histórico, que sempre mobilizou a curiosidade de Gramsci, e sua capacidade de pensar estratégico, aonde a pretensão ao controle total, já denotava sua crítica aos processos revolucionários violentos. E, as formulações posteriores da distinção entre guerra de posição e guerra de manobras, e o próprio conceito de hegemonia, que dinamiza a ideologia como instrumento efetivo de ação no cotidiano. Mas, outro professor, que incentivou também Gramsci ao ensaísmo foi Umberto Cosmo, livre-docente de Literatura Italiana, que incentivou-o a escrever sobre Maquiavel desde 1917, buscando uma ponte entre a cultura e a política, que tanto seduzia o jovem sardo. Nesse sentido, sua simpatia pela ação de ruptura das vanguardas culturais, que contaminavam o ambiente italiano do início do século XX é apontado sempre com destaque de sua vivacidade intelectual, além de um traço de pertencimento geracional. A revista La Voce de caráter burguês e L´Ordine nuovo fundado em 1919, da qual fazia parte mostram esse esforço de tentar dar agilidade e vivacidade à acadêmica e "balofa cultura italiana", nas palavras do próprio Gramsci. Percebe-se nas posições do filósofo da Sardenha, já na sua juventude um profundo vínculo com a cultura humanista italiana, que muito além da política constroe uma conexão entre vida cotidiana e estratégia de construção socialista. Uma continuidade didática, e que celebra na atividade política uma capacidade pedagógica de constante aperfeiçoamento, cada vez mais distante do idealismo, fazendo um enorme esforço em direção ao pragmatismo.

"Em 1913, nos meses de interrupção da atividade universitária, Gramsci pode assistir na sua ilha à campanha para as primeiras eleições com sufrágio semiuniversal (2) e dela retirou uma impressão muito viva da eficácia da política como fator de mobilização e transformação das massas camponesas, admitidas pela primeira vez ao exercício do voto. Em setembro, na esteira das eleições, realizou seu primeiro ato político público, aderindo ao grupo de ação e propaganda dos interesses da Sardenha, de inspiração antiprotecionista, que se constituira no verão. São particularidades de certa importância, porque nos conduzem ao tema da desprovincialização e nos ajudam a entender a natureza do processo que se realizou no espírito do jovem sardo. A inscrição de Gramsci no PSI é parte integrante de sua nacionalização; com tal ato Gramsci não cortava as raizes territoriais, mas especificava a dimensão intelectual e política na qual buscaria a explicação e perseguiria a solução para as angústias e os problemas específicos da Sardenha, lugar originário e indelével da sua tomada de consciência dos antagonismos sociais." RAPONE 2014 páginas63 e 64 

Gramsci também construirá um forte vínculo entre linguagem e forma de estruturar o pensamento, negando de forma enfática o naturalismo, o economicismo e o mecanicismo, que imperava nos meios marxista do início do século XX. Mas ao mesmo tempo valorizando de sobremaneira a forma como a linguagem se estrutura, possibilitando a criação, a reformulação e a revolução dentro de parâmetros e regulações socialmente introjetadas em cada indivíduo. Para Gramsci, o estudo e o aprofundamento no fenômeno da linguagem sempre será proveitoso, reunindo criatividade e compreensão socialmente compartilhada, que na verdade impulsionam um devir histórico real e apartado do idealismo. Na questão da lingua internacional, o Esperanto, Gramsci sem dúvida já celebrava a internacionalização da solidariedade entre despossuídos, mas reafirmava a presença da necessidade pulverizada e molecular, que criaria as condições para a emergência da nova língua a partir do cotidiano, e não por decreto. Há nas referências linguísticas de Gramsci uma constante menção às energias sociais livres, que nunca irão parar de se desenvolver, fazendo pouco caso das narrativas que pensavam num estágio último e definitivo das contradições sociais, que para ele jamais cessariam. 

Gramsci sempre irá celebrar esse caráter indomável e avesso ao autoritarismo, que a língua carrega, como no caso da unidade linguística da Itália, proposta em seu tempo a partir do dialeto da toscana, proposta por Manzoni, ou no caso da adoção do Esperanto como facilitador da comunicação internacional. O linguista e filósofo sardo irá repelir com veemência a imposição de cima para baixo, sobre o argumento de que "a linguagem, ainda antes de mecanismo comunicativo, é produto em contínuo devir." RAPONE 2014 página56. 

Assim como, a linguagem, a arquitetura, que é uma necessidade humana difundida e presente em toda a humanidade, afinal o homem em suas diversas culturas produz seu próprio abrigo, e não reconhece no planeta e no seu ambiente, tal qual está constituído, um acolhimento adequado. Afinal, existe a produção da arquitetura culta dos arquitetos, e aquela produzida pela auto construção, pela necessidade do abrigo, aonde as referências construtivas estão presentes, assim como na língua. Essa condição, de auto reprodução das técnicas de construção da sua própria sobrevivência se dissemina entre as pessoas conforme o vocabulário, que dominam, seja na materialidade disponível, ou na parcela aonde estão autorizados a realiza-la, o que vincula de forma definitiva, a linguagem à cultura do construir, que sempre tem profundos vínculos com o lugar e com o tempo. O que também está constituído na cidade, que nunca é a mesma, justamente em função das variações dessa linguagem do construir, tanto no espaço, como no tempo.

"Mas aqui quem se pronuncia não é só o discípulo de Bartoli: é também o militante político para o qual opor-se ao esperanto equivale a declarar-se 'revolucionário' e 'historicista': de fato, significa afirmar que na base do devir histórico está 'a atividade das energias sociais livres', excluindo as utopias - isto é, a pretensão de buscar projetos abstratos, ao mesmo tempo arbitrários e ilusórios, sobrepostos ao agir dos homens - e combatendo a ideia de que o movimento da vida e da história, entendido por Gramsci como perpétuo 'fluir de matéria vulcânica liquefeita', possa atingir um estágio último e definitivo, porque hipoteticamente perfeito: 'Por isso abaixo o esperanto, tal como abaixo todos os privilégios, todas as mecanizações, todas as formas definitivas e enrijecidas de vida, cadáveres que empestam e agridem a vida em devir’” RAPONE 2014 página57

Aqui há uma profunda vinculação entre espaço nacional, esforço particular e individual, construção de uma mentalidade coletiva solidária, identidade linguística e cultural, consciência e determinação, particularidades que também estarão presentes na arquitetura. Cosmopolitismo e Localismo. O sistema gramsciano de pensamento está fortemente estruturado em torno das dimensões da linguagem, do conceito de centro e de hierarquia, bem como a ideia de espacialidade e temporalidade diversificadas, que geraram especificidades, que precisam ser estudadas e entendidas. Tudo isso configura um instrumental importante para a compreensão da cidade e da arquitetura no nosso mundo contemporâneo.

"O povo italiano, há cinquenta anos, não existia, era só uma expressão retórica, Não existia nenhuma unidade social na Itália, existia uma unidade geográfica. Existiam milhões de indivíduos dispersos no território italiano, cada qual vivendo para si mesmo, preso no seu torrão particular; ninguém sabia da Itália, cada qual falava um dialeto particular, acreditava que todo mundo estava limitado ao horizonte de sua aldeia. Conhecia o coletor de impostos, conhecia o carabineiro, conhecia o juiz e o tribunal: sua Itália. E, no entanto, esse indivíduo, muitos destes milhões de indivíduos superaram este estágio particularista, formaram uma unidade social, sentiram-se cidadãos, sentiram-se colaboradores de uma vida, que saia do horizonte da sua aldeia, que se estendia por espaços cada vez mais amplos do mundo, que se estendia ao mundo inteiro.... Ele fez com que um camponês da Puglia e um operário de Biella falassem a mesma língua, passassem, tão distantes, a se expressar de modo igual em relação ao mesmo fato, a dar um juízo igual sobre um acontecimento, um homem..." RAPONE 2014 páginas 66 e 67

Assim, nessa condição de subalterno no espaço social da Itália, Gramsci construirá uma das reflexões mais potentes do nosso tempo, aonde o sistema hierárquico de dominação é uma presença indelével, mas também uma possibilidade de transformação. Sua quase veneração pelo “Americanismo” e “Fordismo”, como inovações do capitalismo nos EUA, reconhecendo ao mesmo tempo maior liberdade das amarras da história européia, e mais dominação e exploração por sua eficiência de contornar o enfrentamento de classe. A minoridade da burguesia italiana frente a inglesa, americana e francesa, sua declaração de dependência do Estado Nacional, a fraqueza do liberalismo italiano frente a essas outras três nações vem da incompletude da sua reunificação (Risorgimento), sem a participação popular, numa transformação feita por cima com as elites temendo sempre a explosão das massas. A posição da Sardenha e a parte meridional da Itália agrária, católica e arcaica, frente ao norte industrializado, urbano e moderno. A reflexão de Gramsci terá sempre esse componente histórico espacial e cultural, que identifica especificidades, mapeia suas potencialidades e problemas, buscando sempre a estratégia da transformação. Mantendo sempre um otimismo propositivo; “Pessimismo da crítica e otimismo da práxis.” Há uma consciência do desenvolvimento capitalista, que sempre nos remete ao confronto-complementariedade entre o arcaico e o moderno, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar. A questão dos intelectuais orgânicos, que nascem das condições objetivas da existência do precariado, e que conseguem superar a sobrevivência, relativizando as razões de sua existência precária. Capacidade de formulação de uma narrativa auto-descritiva; Identidade e Representação. No campo do debate dos intelectuais orgânicos e dos intelectuais tradicionais, que no Brasil podem ser representados pelas trajetórias; de Marielle Franco, uma liderança orgânica da Favela da Maré, e a de Antônio Cândido, um intelectual paulista de grande abrangência e de cultura universalista. 

“...processo histórico de formação das diversas categorias de intelectuais, que é observado em todo grupo social, por nascer na base originária de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe conferem homogeneidade e consciência de sua função no campo econômico.” GRAMSCI 1934 Q4

A questão das vivências como construtoras de narrativas, auto descritivas, das políticas de identidades do mundo contemporâneo possuem um grande vínculo com a ideia de intelectual orgânico de Gramsci. No sentido que a tarefa inicial de todo pensador seria a capacidade de se auto-representar, como uma experiência, que é também um saber a ser compartilhado por todos. Nesse sentido, o conhecimento assume uma outra dimensão, que considera as diversas vivências como saber, que ao ser compartilhado ilustra a todos. A humanidade se esclarece na medida em que toma conhecimento de sua diversidade e mistura, fazendo-nos relativizar nossos valores e crenças. Gramsci mantém viva a ideia advinda do marxismo do cosmopolitismo a ser compartilhado por todos que se ilustram com a inserção das novas narrativas, no entanto ele reconhece a presença do pensamento hegemônico, que é sempre o da classe dominante. A capacidade de superar esse estágio não é encarado como um momento único e definitivo, mas um processo contínuo de afirmação de um conflito inacabável no seio da humanidade. A auto-organização da própria cultura é função dos intelectuais orgânicos das diferentes classes sociais, que conferem a auto-construção de sua própria identidade.. 

“Mas todo grupo social ao emergir da história da estrutura econômica, encontra, ou encontrou na história que desenvolveu até então, categorias intelectuais pré existentes, as quais se apresentam como figuras de uma continuidade histórica ininterrupta, não posta em discussão nem pelas mais complexas mudanças sociais e políticas. Desde os eclesiásticos, monopolizadores por longo tempo de alguns serviços essenciais até Croce que se percebe mais ligado a Aristóteles do que a Agnelli.” GRAMSCI 1934 Q4

Gramsci entenderá como a função central do intelectual orgânico; organizar e conectar formas peculiares e historicamente determinadas nas próprias narrativas do grupo, superando a aparência dos interesses corporativos e se mimetizando com aspirações gerais humanas para ter sucesso nos processos de produção da hegemonia. A pergunta de Gramsci é; “quais são os limites máximos dentro dos quais é possível compreender e colocar a noção de intelectual?” Reconhecendo a dificuldade para se identificar um critério certo e eficaz, Gramsci identifica o erro metódico mais difuso, que busca no intrínseco da atividade do intelectual, isto é em sua qualidade de pensamento. Quando na verdade, tal caráter deve ser buscado no agrupamento que o personifica, que desvenda seus interesses práticos e objetivos, sua própria auto-construção como sujeito. Tal perspectiva aponta para a possibilidade de universalização para toda humanidade do trabalho intelectual, a qual deveria ser acessível a todos, humanizando nossas existências. O exemplo clássico foi a superação pela burguesia da argumentação instituída no mundo de então da representação da nação pelo rei, ou por uma linhagem familiar, que passa a ser substituída pela competição eleitoral, que para não representar uma mudança ampla se restringiu aos critérios de eletividade do voto, sempre bloqueando a universalização do sufrágio ( apenas para: proprietários, alfabetizados, homens, etc...).

“A relação entre intelectuais e produção não é imediata, como acontece para os grupos sociais fundamentais, mas é mediada, e é mediada por dois tipos de organização social; a) pela sociedade civil, isto é, pelo conjunto de organizações privadas da sociedade, b) pelo Estado.” GRAMSCI 1934 Q4

O Caderno 25 faz uma reflexão sobre um período da História Italiana, da sua unificação tardia no século XIX, denominado o Risorgimento da Itália, no qual Gramsci claramente compara o processo de emergência do Estado Nacional no seu país, com as revoluções na Inglaterra (1688), EUA (1775-83), e França (1789-99), identificando uma reparação conservadora entre as massas e as lideranças. Na verdade Gramsci identifica uma minoridade nas massas italianas, que ao serem simplesmente conduzidas não haviam feito o esforço de auto identificação, que ele percebera nos casos da Inglaterra, EUA e França, que portanto se auto-responsabizaram e ganharam visibilidade. Desenvolvendo uma relação complexa (histórica e geográfica) em relação ao par; hegemonia/subalternidade, não apenas econômica, mas também cultural e social.

“Nós não conhecemos a Itália. Pior ainda: faltam-nos os instrumentos adequados para conhecer a Itália como ela realmente é. Portanto, nos encontramos na quase impossibilidade de fazer previsões, de nos orientarmos...Não existe uma história da classe operária italiana. Não existe uma história da classe camponesa...” GRAMSCI 1934 Q25 

Nesse sentido, o pensamento gramsciano gera em nossa contemporaniedade uma série de pensadores atuantes, que assumem sua filiação de forma explícita, pensando a partir de periferias diversas, que produzem uma grande variedade de construções. O primeiro a ser mencionado é o historiador Indiano Ranajit Guha (1923-), que estabelece na Universidade Sussex, na Inglaterra um grupo de pesquisadores em 1959, denominado Subaltern Studies. No qual desenvolve uma abordagem anti essencialista e multi polar, claramente baseada em Gramsci. A segunda menção é a pesquisadora indiana, Gayatri Chakravorty Spivak (1942-) desenvolve nos EUA, na Universidade de Columbia, associada ao grupo do Subaltern Studies, escrevendo em “Pode o subalterno falar?” (versão em inglês 1988 e português em 2010-UFMG), usando Gramsci e o filósofo franco-magrebiano, Jaques Derrida (1930-2004). Ela é crítica literária, sendo sua tese de doutorado sobre o poeta irlandês Yeats, orientada pelo renomado Paul de Man. SPIVAK 2010 diferencia; o falar por, do representar alguém. Essas propostas partem do Caderno 25 dos Quardeni. di Carcieri de Gramsci, um dos poucos com título, que recebe clara denominação de; “Às margens da História: História dos Grupos Sociais Subalternos”

"Sua crítica [de Spivak], de base marxista, pós-estruturalista e marcadamente desconstrucionista, frequentemente se alia a posturas teóricas que abordam o feminismo contemporâneo, o pós-colonialismo e, mais recentemente, as teorias do multiculturalismo e da globalização.“ ALMEIDA, Sandra Regina Goulart (UFMG – tradutora) 

No Brasil, há uma grande diversidade de gramscianos, começando por; Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), tradutor dos Quaderni di Carceri e formulador de um dos mais importantes artigos para a esquerda brasileira; “A democracia como valor universal” no final dos anos 70, que se afastava das formas de conquista violenta do poder, e é fortemente influenciado pelas posturas do PCI de Enrico Berlinger. Outro pensador brasileiro, de vertente gramsciana é Leandro Konder (1936-2014) filósofo e professor da UFF e da PUC-Rio, escreveu a “Questão da Ideologia”, no qual percorre a abordagem de uma série de pensadores sobre a estruturação da compreensão do real, e desse tema tão complexo, que envolve a auto justificação de nossas práticas particulares. Além desses, Luiz Werneck Vianna (1938-), sociólogo e professor da Puc-Rio, que escreve a “Revolução Passiva, iberismo e americanismo” no Brasil, analisando a transformação da sociedade brasileira de escravista e agrário-exportadora, em competitiva, urbano e industrial, numa transição acomodada e articulada de forma autoritária entre as elites apenas, sem envolvimento popular. E, por último, Marcos del Roio (1954-) professor da UNESP no campus de Marília SP, que organizou o livro Gramsci, Periferia e Subalternidade em 2017 e escreveu Gramsci e Emancipação do Subalterno em 2018, destacando a identidade sarda, e seu combate ao positivismo e ao economicismo. É atuamente presidente da International Gramsci Society do Brasil, defende a tese de que o movimento operário no Brasil era americanista, e com uma visão maior de resultados para a categoria.

A partir desse momento passei a listar movimentos históricos, que estão invizibilizados, principalmente na perspectiva nacional do Brasil, mostrando como grupos sociais subalternos ainda permanecem sem identidade. O primeiro é o movimento de 1695 do Quilombo de Palmares; em 20 de novembro com a morte de Zumbi, após uma série de expedições sobre um território de 27 mil M2, 1/3 do Reino de Portugal, com 10 aldeias em permanente luta com as forças coloniais no século XVII. Houveram 17 missões (2holandesas e 15portuguesas) que pretenderam suprimir a Rebelião do Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga no Estado de Alagoas, que chegou a ter 11mil pessoas. Palmares era uma monarquia eletiva nos moldes do que existia na África de então foi dizimada pelas forças coloniais, há uma descrição sobre o Quilombo numa carta de 1687; “São muitos em número, e cada vez mais. Não lhes falta destreza nas armas, nem no coração ousadia.” GOMES 2019 página411

“Por força da lei 12.519, de 2011, a data se transformou no Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra...Em 2018, apenas 1047 municípios, de um total de 5561 optaram pelo feriado. Em alguns estados, como Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Pará e Rondonia, nenhuma cidade se animou a celebrá-lo como um dia de descanso... Os historiadores, Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira, professores da UNESP... Afirmam que traçar a biografia de Zumbi seria hoje uma tarefa impossível.” GOMES 2019 página422

O segundo, que mencionei foi o de 1791 - Revolta do Haiti; A grande revolta negra contra a escravidão se iniciou em agosto, dois anos após a Revolução Francesa, após a Cerimônia de Bois-Caiman, na Planície Norte, que contou com a participação de milhares de marrons (escravos fugitivos). O Haiti tinha 120mil escravos, 77% da população total da ilha, no Brasil em 1750, os escravos eram 50% da população. Sobre a qual destaquei uma citação de Thomas Piketi, que demonstra claramente como as narrativas centrais contemplam os grupos subalternos numa condição periférica, mesmo àquelas que defendiam a tese do abolicionismo;

“Alexandre Moreau de Jonnès – conhecido pelos muitos materiais estatísticos sobre os escravos e seus donos que compilou em diversas colônias a partir dos recenseamentos e pesquisas administrativas realizados desde o século XVII e abolicionista convicto – propõe em 1842, que os escravos ressarçam o valor total da indenização realizando “trabalhos especiais” não remunerados pelo tempo que for necessário. Ele insiste no fato de que isso também ensinará aos escravos o significado do trabalho.” PIKETI 2020 página210

É interessante mencionar como Gramsci destaca aspectos sobre as complexas interações dos movimentos sociais subalternos, que envolvem; o espontaneísmo e a direção racional. Uma tendência de considerá-los como movimentos folclóricos, aonde sua apropriação social, pela historiografia hegemônica invariavelmente como; bizarros, desequilibrados, curiosidades, localizados na periferia da cultura e da Política. Um dos movimentos destacados pelo próprio intelectual sardo foi sobre Davide Lazzaretti (1834-1878); um pregador do Monte Amiata na Toscana Itália, chamado do Cristo dell´Amiata, personagem do Teatro Pobre de Montichiello e cantatas folclóricas, republicano, anti clerical, luta pela unificação da Itália contra as forças do pontificado de Roma.

“...Este era o costume cultural do tempo: em vez de estudar as origens de um acontecimento coletivo, e as razões de sua difusão, de seu ser coletivo, isolavam o protagonista e se limitavam a fazer sua biografia patológica, muito frequentemente partindo de motivos não comprovados ou passíveis de interpretação diferente: para uma elite social, os elementos dos grupos subalternos têm sempre algo bárbaro ou patológico” GRAMSCI 1934 Q25

Outro movimento, que destaco no Brasil foi o de Antonio Conselheiro (1830-1897); um conselheirista, firma um povoado no sertão da Bahia (1874) denominado Canudos (Arraial do Bom Jesus - 5 mil domicílios e 20 mil pessoas), caixeiro viajante, órfão de mãe aos 6 anos, gostava de ler, dava aulas numa fazenda no sertão do Ceará (Quixeramobim), abandonado pela mulher. Estabelece no Arraial de Canudos uma resistência aos Coronéis do Nordeste, sendo também monarquista, anti clerical e religioso. Atualmente, há no local o Parque Estadual de Canudos, um sítio notável no sentido de deixar registrado esse movimento, que ainda não teve sua narrativa inteiramente esclarecida.

“...todo traço de iniciativa autônoma por parte dos grupos subalternos deve ser de valor inestimável para o historiador integral.” GRAMSCI 1934 Q25

Mais um momento invisível em nossa historiagrafia foi o de 1904, denominado como; A Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro e em Niterói, em 9 de novembro foi aprovada pelo Senado Federal a lei da obrigatoriedade da vacina da Febre Amarela. Em março de 1904, uma lei já havia regulamentado o serviço de profilaxia na cidade, concedendo poderes arbitrários ao Prefeito Pereira Passos nomeado pelo Presidente Rodrigues Alves, dentre eles o de demolir as edificações consideradas insalubres. Em novembro de 1904, a cidade era um verdadeiro canteiro de demolições e desalojamento do seu precariado que habitava os cortiços e outras edificações precárias, que recebiam ordem de abandonar suas habitações, nas quais eram locatários, sem qualquer compensação. As rebeliões e trincheiras se estenderam do dia 9 ao dia 15 de novembro, tendo os rebeldes se apoderado do Quartel da Polícia na Rua Frei Caneca, depredando edificações e o serviço de bondes da cidade. No dia 16, O Governo Federal decreta Estado de Sítio na cidade.
“Ela (Revolta da Vacina) sacrificou grupos subalternos em proveito dos interesses mais gerais das classes dominantes, sob a hegemonizada burguesia cafeeira paulista...Ao mesmo tempo foi proveitosa aos interesses particulares do capital privado...desde o capital bancário internacional, de onde provieram os empréstimos...passando pelas grandes companhias empreiteiras, especuladores e construtores, até as diversas frações do capital comercial, financeiro e industrial que puderam permanecer ou vieram se instalar nas áreas remodeladas.” BENCHIMOL 1992 página328

Outro movimento sobre o qual ainda existem muitas lacunas de relatos é o da Escravidão no Brasil 1500 a 1888, estruturado a partir da colonização portuguesa (1500-1822), mas mantido após a libertação do julgo colonial. O Brasil é o último país da unidade econômica do Atlântico Europeu a decretar seu fim, essa instituição marca o perfil do Brasil até hoje. Em 1808, quando a corte portuguesa se transfere para o país, o Brasil tinha cerca de 3milhões de habitantes, dos quais cerca de 50% eram escravos. No ano de 1850, a cidade do Rio de Janeiro contava 250 mil habitantes, dos quais 110mil ou 44% da sua população era escrava. Em 1865 é decretada a Lei do Sexagenário, libertando os escravos com mais de 60 anos, em 1871, a Lei do Ventre Livre, na qual os proprietários das mães dos escravos libertos, denominados “ingênuos”, deveriam cria-los até os 6 anos, para receber do Estado uma indenização, ou então mantê-los até os 21 anos fazendo-os trabalhar em troca de salários. Fato, que certamente determinava uma super exploração dessa mão de obra, beneficiando práticas patriarcais e senhoriais de nossa elite agrário-exportadora. Em 1888, na libertação se intensifica a política da imigração europeia e japonesa, o que certamente se constitui numa crueldade, numa falta de solidariedade com a massa de população negra existente no país, que então, se pautava por um claro desejo de embranquecimento de sua população, emblematicamente expresso no quadro A redenção de Cam. Em 2010, no último censo do IBGE; 48% da população se declarou branca, 43% mestiça, 8% negra, e 1% asiática e indígena.

“Não fazia muito tempo, Rui Barbosa, Ministro da Fazenda do Governo Provisório, mandara queimar toda a documentação relativa a escravidão existente no ministério, alegando que o fazia para apagar a mancha negra das páginas da nossa história.” BENCHIMOL 1992 página311

Por último, identifiquei no Colonialismo Europeu 1500-1850 um cruel movimento de subalternização de um amplo contingente populacional que habitava a América pré-colombiana. Um movimento que se pautou pela supressão da identidade local e imposição de uma identidade externa, católica ou protestante, que promoveu o maior holocausto do Ocidente. Esse movimento foi responsável pela geração de sociedades desigualitárias e de grande concentração de renda, aonde muitas vezes há uma sacralização do direito de propriedade. As sociedades pré-colombianas foram destruídas por detalhes de acesso diferenciado a tecnologias de grande poder destrutivo - a pólvora - que passam de maneira excluídora a representar a civilização. Hoje em dia já se reconhece a maior adequação de muitas culturas pré-colombianas, na sua manipulação de tecnologias agrícolas e ou de contagem do tempo, que foram soterradas e esquecidas. Há ne verdade diferenciadas matrizes e tipologias a serem estudadas e elucidadas, como; a) Ibérica (católica e patrimonialista); a.1) Portugal (miscigenada), a.2) Espanha (anti-miscigenação, grandiloquente). b) Inglesa: b.1) Norte dos EUA (ocupação, perseguição religiosa), b.2) Sul dos EUA (senhorial, escravocrata), b.3) India (minoritária, super exploração). c) Holandesa: c.1) Expansão Judaica, c.2) Eficiência Comercial. d) Francesa: d.1) Maioria escravocrata (Haiti), d.2) Maior contigente de ocupação nas Cidades (Argélia) 

Ao final, tentei contrapor a esses exemplos de estudos pós coloniais, o relato da historiografia hegemônica, usando um livro notável, já destacado aqui no blog; O Longo Século XX, de Giovanni Arrighi, que destaca as diversas supremacias que operaram no sistema capitalista. Primeiro, as Cidades Estado Italianas no século XIV, que de forma pioneira viveram o processo de descoberta de que o poder não está na posse de mercadoria-propriedade, mas na sua base monetária-financeira, da concentração de moedas. Cidades como Gênova e Veneza, que concentraram os primeiros banqueiros da história descobriram a contabilidade cruzada, se beneficiando muito mais das descobertas Ibéricas do que Espanha e Portugal, que promoveram as grandes viagens, mas acabaram endividados, com essas cidades. O segundo exemplo, foi a Holanda, ou a Liga Hanseática, que descobriu e desenvolveu, na época do capitalismo mercantil, o potencial especulativo do armazenamento de especiarias e mercadorias e sua articulação numa bolsa de valores, que promete lucros no futuro, a partir da lógica dos negócios e promessas especulativas.

“Permitam-me enfatizar aquilo que me parece ser uma aspecto essencial da história do capitalismo; sua flexibilidade ilimitada, sua capacidade de mudança e adaptação. Se há, segundo creio, uma certa unidade no capitalismo, da Itália do século XIII até o Ocidente dos dias atuais, é aí, acima de tudo, que essa unidade deve ser situada e observada... Em certos períodos, inclusive períodos longos, o capitalismo de fato pareceu especializar-se, como no século XIX, quando se deslocou tão espetacularmente para o novo mundo da indústria.” ARRIGHI 1996 página4

“...quando os agentes capitalistas não têm expectativa de aumentar sua própria liberdade de escolha, ou quando essa expectativa é sistematicamente frustrada, o capital tende a retornar a formas mais flexíveis de investimento – acima de tudo sua forma monetária. Em outras palavras, os agentes capitalistas passam a preferir a liquidez, e uma parcela incomumente grande de seus recursos tende a permanecer sobre forma líquida.” ARRIGHI 1996 página5
 
Logo depois da Liga Hanseática, a Inglaterra assume a supremacia no sistema capitalista internacional, com a retirada dos holandeses do comércio internacional para se transformarem nos banqueiros da Europa. A Inglaterra nos primeiros sinais da Revolução Industrial assume uma concentração de riqueza sem par, demonstrando inicialmente uma capacidade ímpar de super explorar seu entorno imediato (irlandeses) e depois o resto do mundo. Num segundo patamar, mas também de forma sincrônica com a Inglaterra, a França desenvolve uma forma particular de acumulação primitiva que é específica, na sua histórica beligerância com o Reino Unido, desde a guerra dos 100 anos. Sua inserção internacional será ideologicamente central com a Revolução Francesa, mas fomentará um capitalismo mais artesanal, agrário, disperso e qualitativo que investirá fortemente numa super exploração de suas colônias. 

“...as sociedades de proprietários que prosperavam na Europa no século XIX e início do século XX se caracterizavam por uma concentração extrema de propriedade. Na França, no Reino Unido e na Suécia os 10% mais ricos detinham durante a Belle Époche (1880-1914) entre 80% e 90% de tudo que havia para ser possuído (terras, imóveis, ativos profissionais e financeiros, líquidos de dívidas) e o 1% mais rico detinha, sozinho entre 60 e 70% de tudo o que havia para ser possuído.” PIKETI 2020, página247

Gráfico que mostra a apropriação da renda nacional, pelos
10% mais ricos no mundo, mostrando como Brasil e 
Índia são países desiguais

Em seguida a hegemonia inglesa emerge os EUA, uma nova base do domínio capitalista mundial, inicialmente no segundo pós-guerra, com um discurso anti-colonial no Oriente Médio, numa aparente domesticação do imperialismo inglês. Mas em seguida usando-se de expedientes de contra espionagem determina uma nova forma de dominação, realizada pelas suas grandes corporações e multi nacionais. Os EUA também hierarquizam as nações pelo mundo exercendo sua supremacia de forma diferenciada; nos paises mais desenvolvidos como na Europa e Japão a partir do soft power. E, nos países da periferia e semi-periferia do capitalismo, na América Latina, África e Oriente, a partir do hard power, ou da utilização de tropas ou promoção de golpes de Estado. Por fim, mencionei a China, nova potência mundial, que vem dominando os ativos financeiros estadunidenses, território de atração do capitalismo de acumulação primitiva, combinado com Planejamento Estatal, mas sem poder bélico para se contrapor aos EUA. Mas assim como os BRICs; Brasil, Russia, India, China e África do Sul se apresentam como promotores de um desenvolvimento de grande concentração de renda, que na verdade atraem desenvolvimento a partir de sua capacidade de super explorar seus precariados, a partir da desarticulação do fordismo-keynesianismo, que se inicia no final dos anos setenta, com as eleições de Margareth Thatcher na Inglaterra (1979) e Ronald Reagan nos EUA (1980). 

“Desde então, (final dos anos setenta) todas as nações tem estado a mercê da disciplina financeira, seja pelos efeitos da fuga de capitais, seja por pressões institucionais diretas; “Sempre houve, é claro, um equilíbrio delicado entre os poderes financeiros e estatais no capitalismo, mas a desarticulação do fordismo-keynesianismo significou uma evidente guinada para um aumento de poder do capital financeiro frente ao Estado nacional.”” ARRIGHI 1996, página03


NOTAS:

(1) Glotologia, ciência que estuda comparativamente as diversas línguas, considerando suas origens e formação. (Sin.: glossologia, glótica.)
(2) O sufrágio universal masculino foi decretado em 1912, e apenas em 1945 admitiu a participação das mulheres. 

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