domingo, 8 de abril de 2018

Schumpeter, capitalismo, socialismo e democracia

O livro Capitalismo, socialismo e democracia do economista austríaco Joseph Alois Schumpeter teve sua primeira publicação em 1942 e tornou-se uma obra clássica da economia política do século XX, nele o cerne da questão está colocado na capacidade de inovação, ou na questão da "destruição criativa", quando acontece uma transformação produtiva, que demandava um realinhamento tecnológico. E, no fato de que essa demandava um certo grau de controle ou poder monopólico dentro do sistema capitalista, para que o investimento na inovação pudesse ser apropriado. Bastante crítico ao marxismo, Schumpeter acaba enveredando por um interessante debate, no qual era necessário salvar o capitalismo dos capitalistas, pois ao contrário de muitos neo-liberais contemporâneos, o autor identificava no Estado, uma construção dos capitalistas, se aproximando de Marx. Para Schumpeter, o poder do Estado era de fato usado para proteger os ricos e poderosos, enquanto em sua concepção deveria olhar pelos pobres e pelo conjunto da sociedade. Essa prática se cristalizava a partir da burocratização dos procedimentos do Estado, que visavam a proteção dos monopólios econômicos, interessados em obter rendimentos dos seus investimentos em inovação.

"Podia se haver alegado que, naquelas circunstâncias, até mesmo a mera "administração do capitalismo" era um grande passo a frente. Mesmo porque não se tratava de administrar o capitalismo no interesse capitalista, e sim de fazer um trabalho honesto no campo da reforma social e de construir um Estado que girasse em torno dos interesses do trabalhador." SCHUMPETER 2017, página492

De certa forma, essa também era posição de Marx, que considerava o Estado uma construção interessada da burguesia, mantenedor e defensor dos seus interesses, e que deveria ser dissolvido assim que o proletariado tomasse o poder. Já foi comentado aqui o livro clássico de Lênin, O Estado e a Revolução, a doutrina do marxismo e as tarefas do proletariado na revolução, texto concebido nos meses de agosto e setembro de 1917, portanto antes da tomada do poder pelos bolcheviques. No qual, Lênin defende que uma das primeiras responsabilidades da revolução era privilegiar os mecanismos de democracia direta, como os sovietes, para mudar o Estado burguês em suas práticas interessadas. De fato, essa concepção não se materializou havendo na verdade uma hipertrofia do Estado soviético, para fazer frente às guerras civis e as ameaças que se seguiram à tomada do poder pelos bolcheviques. Portanto, o livro de SCHUMPETER 2017, publicado em 1942 já desfruta da perspectiva histórica das práticas inerentes ao Estado autocrático, não apenas soviético, mas também fascista na Itália e nazista na Alemanha.

"Em terceiro lugar, enquanto os comunistas de todos os países (inclusive o próprio Lênin) acreditaram na iminência de uma revolução mundial, o exército russo significou para eles a mesma coisa que o exército do tsar Nicolau I havia significado para os grupos reacionários durante o segundo cartel do século XIX. Note-se que os comunistas abandonaram o antimilitarismo e o não intervencionismo com a mesma facilidade com que haviam abandonado a democracia. SCHUMPETER 2017, página486

É interessante constatar em SCHUMPETER 2017, apesar das profundas divergências com Marx, a presença em suas construções de um profundo respeito não apenas por algumas assertivas do pensador alemão, mas pela estrutura de sua mensagem.

"Pelo contrário, podemos acreditar que ela é um poder das trevas; podemos considera-la fundamentalmente errada e dela discordar em muitos pontos particulares. No caso do sistema marxista, esses julgamentos adversos ou mesmo a reprovação correta, pela sua própria incapacidade de ferir mortalmente, só servem para ressaltar a força de sua estrutura." SCHUMPETER 2017 página17

E, mais na frente no texto, em suas considerações sobre a caracterização de Marx, não como economista, e muito menos como profeta, mas como sociólogo considero que SCHUMPETER 2017 limita de forma correta, o problema;

"Ao perpetrar o crime e falar no Marx sociólogo depois do Marx profeta, não pretendo negar nem a presença de uma unidade de visão social que consegue dar a sua obra certa medida de unidade analítica e, mais ainda, uma aparência de unidade, nem o fato de o autor ter correlacionado cada parte dela, ainda que intrinsecamente independente, com todas as demais. Não obstante, em cada província do vasto reino, há independência bastante para possibilitar ao estudioso aceitar os frutos de seu trabalho em uma delas e rejeitá-los em outra." SCHUMPETER 2017 página25

Essa me parece uma questão central no pensamento de Marx, a partir da diversidade de suas abordagens sejam filosóficas, econômicas, ou sociológicas há uma estrutura compartilhada que lhe confere uma incrível potência. Ela me parece corretamente colocada, pelos cortes propostos por SCHUMPETER, tanto no Marx profeta, quanto no sociólogo. Pois aí, me parece estar colocado o núcleo de seu pensamento. De um lado, o profeta, expresso em sua décima primeira tese sobre o filósofo materialista Feuerbach; a filosofia se restringiu até Marx em interpretar o mundo, enquanto seu interesse era de modifica-lo. E, de outro, o sociólogo, que ao analisar o sistema de funcionamento da sociedade identificou um agente, que era o maior prejudicado - o proletário - que passa a ser investido em sua identidade, construindo sua auto estima econômica e cultural. Ambos os autores, portanto investem fortemente num sistema dinâmico de pensamento, SCUMPETER 2017 se colocava contra o modelo do equilíbrio competitivo formulado pelo economista francês Léon Walras, enquanto Marx celebrou de certa forma o capitalismo por sua capacidade de revolucionar o mundo*.

De certa forma, o equilíbrio criticado por SCHUMPETER 2017 é ainda o paradigma dominante identificado numa impossível estabilidade entre oferta e demanda, a concorrência perfeita, que era e ainda é a crença dos economistas liberais. Os ciclos ou os períodos de depressão, que historicamente se sucedem na história do capitalismo, sejam determinados pela questão da destruição criativa, que impunha a presença do monopólio, ou pelo decréscimo da taxa de lucros foram e são desconsiderados pelo pensamento liberal. SCHUMPETER 2017 vincula fortemente estrutura industrial e o ritmo de inovação tecnológica, considerando-os como forças determinantes do funcionamento do sistema concorrencial. Mas por outro lado, esse ritmo da inovação tecnológica exigia a estruturação de monopólio para que a inovação alcançasse seu justo retorno financeiro, antes de ser substituída por outra. Essa forma de operar acaba determinando que as empresas destinem recursos consideráveis para barrar tecnologias emergentes, se concentrando na criação de barreiras socialmente produtivas à tecnologia, ou ao bem comum. O caso contemporâneo da Microsoft, ou da Apple, ou mesmo, a apropriação dos avanços tecnológicos pelo sistema financeiro internacional talvez sejam a representação mais palpável do paradigma construído por SCHUMPETER 2017, em torno do monopólio ou da cristalização da prática rentista. A pergunta colocada pelo economista Joseph E. Stiglitz no prefácio do livro me parece a mais adequada para nosso mundo contemporâneo;

"Schumpeter fala nas virtudes do capitalismo ao promover a inovação. Parece menos preocupado com os monopólios - em todo caso, eles seriam temporários, já que a inovação leva um monopolista a ser substituído por outro. Mas a economia trata da escassez de recursos, e a pergunta natural de um economista é: ela aloca recursos para a inovação de maneira eficaz? Não é uma crítica a Schumpeter dizer que ele não respondeu plenamente a essa pergunta ou que as respostas que a sua discussão sugere não são totalmente corretas: ele estava lançando um "modelo" de capitalismo diferente do modelo do equilíbrio que prevalecia havia muito tempo." STIGLITZ, Joseph E. na Introdução do SCUMPETER 2017 página9, grifos meus

De qualquer maneira, o que hoje parece claro para todos é que o otimismo de SCHUMPETER 2017 com a proposição de interpretação do capitalismo como sistema dinâmico, e que ele promoveria maior benefício para todos os cidadãos, não é mais convincente, pela ausência de um elemento presente em seu tempo, que era a operação do socialismo real ou burocrático. Uma presença, que hoje pode ser a comprovação de que o sistema capitalista distribui melhor as benfeitorias, na medida em que estava ameaçado por um modelo alternativo, o socialismo real. Tal configuração pode ser observada, se nos debruçamos sobre os indices de distribuição de renda, dos países centrais do capitalismo, no período da ameaça pelo socialismo burocrático. Nos EUA, no período de 1910-20, a renda dos 10% mais ricos representava entre 45% e 50% da renda nacional. Essa porcentagem cai para 35% em 1950, chegando a 33% em 1970. A partir daí se reverte essa tendência nos anos noventa, e retorna aos níveis de 1910-20 (45% a 50%), quando alcançamos os anos entre 2000 e 2010. No Brasil, um país da semi-periferia do capital, a terrível distribuição de renda consegue ser ainda pior, segundo relatório do insuspeito Boston Consulting Group, publicado na Folha de São Paulo em 13 de janeiro de 2008, declarava que o país tinha ganhado 60 mil novos milionários em 2007, totalizando um grupo de 160 mil pessoas com patrimônio de US$675 bilhões, ou cerca de metade do PIB brasileiro, que corresponde a assustadora marca de 0,08% de nossa população, que simplesmente monopoliza a metade de nosso PIB.

É bastante interessante o desenvolvimento do raciocínio de SCHUMPETER 2017, no que se refere à teoria marxista do imperialismo e sua conexão com o declínio das taxas de lucro, que sempre foi uma tendência do sistema como um todo, constantemente negado pelos neoliberais. Aqui o autor celebra o dinamismo do sistema, assim como Marx, discordando desse apenas da sua pretensão de estabilização pela via da estatização dos empreendimentos, ou do socialismo. A expansão capitalista pelo mundo determina uma diferenciação, onde os já industrializados não defendem mais o protecionismo estatal, enquanto os periféricos e semi-periféricos precisam proteger sua produção;


"Como, por um lado, a sociedade capitalista não pode existir e o seu sistema econômico não pode funcionar sem lucros, e como, por outro, os lucros são eliminados constantemente pelo próprio funcionamento do sistema, o esforço incessante para mantê-los vivos passa a ser o objetivo central da classe capitalista. A acumulação acompanhada pela mudança qualitativa da composição do capital é, como vimos, um remédio que, embora alivie momentaneamente a situação do capitalista individual, a torna pior no fim. Assim, cedendo à pressão da taxa de lucro decrescente - recordemos que ela decresce tanto porque o capital constante aumenta relativamente ao capital variável quanto porque, se os salários tendem a subir, e as jornadas de trabalho, a diminuir, a taxa de mais valia declina - , o capital procura saída nos países em que ainda é possível explorar o trabalho à vontade e em que o processo de mecanização ainda não avançou." SCHUMPETER 2017 página77

A questão do mundo contemporâneo me parece mudou de paradigma, apesar de anunciada por SCHUMPETER 2017 na ansiedade incessante de acompanhar o progresso tecnológico, hoje em dia o lucro produtivo passou a demandar a financeirização contínua da acumulação, lançando-nos num presente contínuo, onde quem mais ganha são os que manipulam os juros. A dominância financeira acabou gerando competição entre lucro e juro, onde me parece o segundo com a desregulamentação neo liberal vem ganhando a competição, impondo também uma perigosa criminalização da política. A acumulação pela via do capital produtivo decresce claramente em sua capacidade, enquanto o investimento rentista passa cada vez mais a representar uma forma perversa de gerar mais concentração de renda. Afinal dinheiro passa a gerar dinheiro, sem passar pela produção. Enfim, a barbárie bate a nossa porta**.

NOTAS:

* Acho que o único autor que identificou de forma correta essa celebração de Marx do sistema capitalista foi Marshall Berman, na expressão "Tudo que é sólido desmancha no ar", que era o título de seu livro.

** Quando no tempo de Schumpeter, o socialismo permanecia uma opção acessível pela via democrática, houve a formulação da proposição "socialismo ou barbárie", que hoje se metamorfoseou em democracia ou barbárie, numa radicalização dos processos de participação e consulta.

BIBLIOGRAFIA:

SCHUMPETER, Joseph A - Capitalismo, socialismo e democracia - Editora UNESP São Paulo 2017

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