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A Universidade da Virgínia, classicismo, cultura e a celebração das
pequenas comunidades |
Volto às particularidades do americanismo, a partir da cidade de Charlottesville no sul dos Estados Unidos, no estado da Virgínia, terra natal do terceiro presidente da república americana (1801-1809), o arquiteto iluminista Thomas Jefferson (1743-1826). Ela foi eleita recentemente (2004) como a melhor cidade para se viver no país, segundo estudo narrado no livro
Cities Ranked and Rated de Bert Sperling e Peter Sander, que avaliaram as cidades americanas a partir do custo de vida, clima, desenvolvimento e oportunidades. Recentemente, a cidade esteve estampada nas manchetes dos jornais americanos e do mundo todo pelos confrontos raciais que celebravam e condenavam a veneração à estátua do General Confederado Robert Edward Lee. As manifestações se iniciaram com grupos da supremacia branca, que condenaram a decisão da administração local de remover a estátua equestre do General Lee por ela representar valores racistas do antigo sul americano. Já havia abordado o tema no texto do dia 07 de setembro de 2017, intitulado
O fordismo e o americanismo no século XX, e o rodoviarismo e o retiro idílico da habitação unifamiliar, a partir da perspectiva de Antonio Gramsci, que no caderno 22 dos Cadernos do Cárcere aborda a questão do
Americanismo e Fordismo. A perspectiva do filósofo da Sardenha é a da crítica radical da cultura, embora recorte o problema a partir do tema do Chão da Fábrica, portanto no ambiente da comunidade urbana, e da estruturação das novas relações do capital e do trabalho na moderna unidade de produção americana. Mas, apesar do recorte do tema a construção de Gramsci é claramente cultural e se refere aos hábitos cotidianos naturalizados, como na passagem;
"Pode se dizer genericamente que o americanismo e o fordismo resultam da necessidade imanente de compor a organização de uma economia programática [1]...Registro de alguns dos problemas mais importantes ou bastante interessantes, mesmo que a primeira vista não sejam prioritários: 1.substituição da atual classe plutocrática por um novo mecanismo de acumulação e distribuição do capital financeiro baseado diretamente na produção industrial 2. A questão sexual, 3. A questão se o americanismo pode constituir uma época histórica, isto é, se pode determinar um desenvolvimento gradual como o examinado anteriormente, como o caso das revoluções passivas, [2] próprias do século passado, ou se, em vez disso, representa apenas a acumulação molecular de elementos destinados a produzir uma explosão, ou seja uma convulsão de tipo francês; ..." GRAMSCI 2008 página32
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A casa de Thomas Jeferson em Monticello |
E, aqui penso que o americanismo, ou a hegemonia cultural americana é claramente um período histórico, que ainda exerce uma certa sedução sobre o senso comum, mas que já anuncia seu declínio, principalmente no que se refere aos padrões do habitar e do bem viver. No artigo anterior abordei a questão do rodoviarismo articulado com os subúrbios habitacionais de baixa densidade a partir da residência unifamiliar das cidades americanas, e como esse padrão ainda impera no mundo contemporâneo. Nesse sentido, a cidade de Charlotesville na Virgínia concentra e representa uma outra parte do americanismo, tanto no que se refere ao retiro idílico das pequenas cidades - afinal são apenas 50mil habitantes - , mas também com a presença de uma consciência cosmopolita associada a presença na cidade, da Universidade da Virgínia. Sem dúvida as universidades americanas apresentam um padrão de excelência acima do padrão geral do mundo, e participam do que podemos chamar da doutrina americana. Fazem essa fortuna, o declarado interesse por atrair professores e alunos de todo o mundo, numa celebração clara da didática pela diferença de posicionamentos, e na constituição de acervos documentais das suas bibliotecas impressionantes. também com uma pluralidade de visões. Já publiquei aqui um texto, em 17 de janeiro de 2015, com o título
Mais um texto sobre New Heaven: a Biblioteca Bienecke da Universidade de Yale, que guarda as obras raras dessa instituição, que além dela possui um acervo invejável de livros, inclusive em português, e que se constitui numa edificação maravilhosa. Nesse sentido é elucidativo ler a matéria da escritora, tradutora e brazilianista americana, radicada no Brasil, Flora Thomson-Deveaux que é natural de Charlottesville, na última Revista Piauí;
"Minha cidade não faz parte do imaginário coletivo brasileiro, e meus novos amigos, de modo geral não sabiam nada sobre ela, nem sequer onde ela fica exatamente. A formulação vaga de que era 'uma cidadezinha no meio da Virgínia' sempre me pareceu insuficiente. Durante minha primeira estadia no Rio [de Janeiro], cheguei a carregar na carteira uma moeda de cinquenta centavos de dólar, o nickel, e mostrá-la como resposta. A cara de Thomas Jefferson, tem como coroa uma imagem de Monticello, a casa erigida por ele. A construção fica no cume de uma montanha... Logo abaixo do monte está Charlottesville...Fica no sul, eu dizia, mas não no sul de verdade. O que eu queria dizer era; é uma cidade progressista, cravada quase por acaso numa das regiões historicamente mais conservadoras dos Estados Unidos." THOMSON-DEVAUX 2017 Revista Piauí página34
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A planta da casa de Jeferson em Monticello |
A universidade foi fundada em 1819 por Thomas Jefferson, que preteriu Richmond a capital do estado da Virgínia, para segundo o ex-presidente americano, "afastar os alunos das distrações da cidade grande". Tanto a Universidade da Virginia, quanto a residência de Jefferson em Monticello, ambas atrações do patrimônio de Charlottesville são projetos do terceiro presidente dos EUA, e estão construídas segundo preceitos da arquitetura do iluminismo. Um exemplar neo clássico, aproximado ao romantismo, que mistura colunatas e arcadas clássicas brancas, contrapostas a panos de parede de tijolos aparentes, celebrando ao mesmo tempo uma racionalidade generalista e um localismo contextual e artesanal. O agrarismo e a celebração das pequenas cidades é uma das características dos posicionamentos de Thomas Jefferson, que não via com bons olhos os comportamentos suscitados pelas grandes cidades americanas. Os chamados
fouding fathers [3], que se reuniram para decretar a independência das treze colônias frente a Inglaterra, que eram; John Adams, Benjamin Franklin, Alexander Hamilton, John Jay, Thomas Jefferson, James Madison, e George Washington, nos quais se percebe a predominância de uma mentalidade de celebração das pequenas cidades e comunidades, não necessariamente agrárias. É interessante notar, que dentre os sete pais fundadores da nação se desenvolve uma clara cisão de concepções desde a independência. De um lado, os defensores de um governo central forte, onde prevalece os urbanos, e de outro os partidários de uma federação de estados autônomos, onde prevalecem os rurais. Tais cisões acabarão desembocando na guerra civil americana, entre o norte industrial e o sul agrário e escravocrata, que apontam para uma unidade conformada pela diversidade de posicionamentos, uma heterogeneidade.
"A diversificada biografia de Jefferson parecia sob medida para agradar todo mundo. Foi ele o autor da Declaração de Independência e o nosso terceiro presidente, além de ter negociado a compra do território da Lousiana - ou a maior parte do que hoje é o oeste dos Estados Unidos - de um Napoleão falido. Jefferson era um rebelde, um diplomata, um arquiteto. Foi só na esteira de #charlottesville, que anunciaram: seu memorial em Washington seria atualizado para que constasse, que o herói da Independência também tinha sido um senhor de escravos... Uma das lembranças mais fortes que tenho daquela excursão [ a casa de Jefferson] é da tarde que passamos desenterrando batatas na horta de uma das casinhas próximas a grande mansão de Thomas Jefferson. Os monitores provavelmente devem ter comentado que aquelas casinhas funcionavam como senzala... Alguns anos mais tarde, escavações descobriram um cemitério de escravos naquele terreno. Na mesma época, exames de DNA provaram que Jefferson teve filhos com uma das escravas, Sally Heninings, que era também meia irmã de sua esposa." THOMSON-DEVAUX 2017 Revista Piauí página36
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A expansão em direção ao novo em Charlottesville |
Sem dúvida, esse trecho comprova os interesses pela narrativa da história, que volta e meia des-humaniza personagens em nome de um relato, que se adeque as pretensões ideológicas da construção da grandeza das nações. Mas, muito além da celebração da possível integridade moral e psiquíca das pequenas comunidades, e do cosmopolitismo das universidades nos EUA, o americanismo também proclama uma eterna conquista de expansão, uma busca interminável pela fronteira selvagem. Tal mentalidade, tem determinado em nossas cidades pelo mundo contemporâneo, uma constante vontade de anexar novos territórios, de expandir ao invés de reocupar trechos já explorados. É interessante notar como esse posicionamento está expresso no próprio nome do país, que ao se proclamar como Estados Unidos da América, configura um agrupamento de Estados numa federação, e ao mesmo tempo abre a possibilidade contínua de expansão do território. Ao contrário de Brasil, ou Argentina, ou França, ou ainda Inglaterra, o novo país que se liberta da Grã Bretanha, afirma-se como uma federação inicial de treze colônias, literalmente sem uma identidade ou nome [4]. A própria bandeira americana assinala esse caráter expansivo e mutante da história americana, a primeira tinha 13 listras, alternando o vermelho e o branco, no canto superior esquerdo 13 estrelas sobre o fundo azul, tendo havido alguns modelos em que as estrelas delineavam um círculo. A expansão para o oeste, que caracterizou grande parte da história americana consagra uma mentalidade contínua de busca pelo novo e o inusitado, como um valor reformador. Em Charlottesville também há monumentos, que celebram esse expansionismo americano em direção ao oeste e à inovação de uma vida renovada, trazendo a sedução da ampliação contínua.
"Fora do campus da Universidade da Virgínia, espalhadas pela cidade, há algumas estátuas de homens em posição de combate, montados ou não em um cavalo, que me pareciam pouco interessantes Conforme eu ia crescendo, provavelmente por influência do feminismo da minha mãe e da minha irmã, comecei a implicar com um monumento em especial, num dos cruzamentos mais importantes do centro. Tratam-se de três figuras de bronze: em primeiro plano, varonis, estão Meriwether Lewis (1774-1809) e William Clark, os dois homens encarregados pelo já presidente Jefferson de desbravarem o oeste. Em segundo plano, quase escondida atrás deles, está Sacagawea, a intérprete indígena que acompanhava a expedição..."THOMSON-DEVAUX 2017 Revista Piauí página36
É interessante perceber que grande parte da materialização dessas estátuas, do General Lee e dos heróis da expansão para o oeste, em Charlottesville são confeccionadas na década de 1920, muito antes da batalha do Reverendo Marthin Luther King pelos direitos civis dos negros . E, que grande parte delas foi patrocinada por um milionário da cidade, que tinha sua fortuna não por conta da plantação de algodão ou fumo, mas por investimentos na Bolsa de Valores de Nova York. É também interessante destacar que os territórios das cidades são um palco para as diversas versões em disputa das narrativas históricas conformadoras de como nos vemos. E, que a cidade pode ser vista como o território do poder, e como tal é sempre o local da narrativa dos vencedores, afinal não há documento de cultura, que não seja também de barbárie, pelo menos em nossa história até aqui [5].
"Eu não sabia, por exemplo, que as estátuas da minha cidade não eram da época da guerra. Tinham sido instaladas só na década de 20, e a inauguração de algumas delas fora acompanhada de celebrações de simpatizantes do governo escravista - entre eles a famigerada Klu Klux Klan... O doador de várias delas, Paul G. McIntire, nasceu em Charlotesville em 1860, onde ainda criança, testemunhou a invasão das vitoriosas tropas federais. Chegou a matricular-se na Universidade da Virgínia, mas não chegou a concluir o curso superior, e acabou se mudando para Nova York, onde fez fortuna investindo na Bolsa de Valores. McIntire patrocinou a construção de parques e espalhou monumentos pela cidade."THOMSON-DEVAUX 2017 Revista Piauí página36
Enfim, a história me parece um campo aberto para que sejam refeitas reinterpretações daquilo que somos hoje. No patrimônio das cidades efetivamente construídas encontramos discursos celebratórios, que podem se transformar em condenatórios, o valor dos esforços estão sempre sob o julgamento das novas gerações. No meio da humanidade nunca há heróis irretocáveis, mas sempre figuras humanas permeadas por interesses e condicionamentos ideológicos, que estruturam sua atuação por esses. A arquitetura, a cidade e seus monumentos possuem essa capacidade de abrigar novas pretensões da nova história, que afinal também inclua o relato dos vencidos. Nesse sentido, creio que o pensamento de Gramsci tem um valor inestimável para nosso tempo contemporâneo, pois foi estruturado a partir da distinção no Estado moderno entre
sociedade política e
sociedade civil, garantindo a possibilidade dos discursos progressistas contaminarem o senso comum. A dominação econômica, social e política é realizada por um grupo de interesses quando esse conquista a
sociedade política, que envolve os aparelhos burocráticos do Estado moderno, suas leis e sua configuração geral, no entanto o consentimento e a aprovação da dominação se dá na
sociedade civil. Num nível abaixo, portanto existe a
sociedade civil, que é responsável pela elaboração e difusão de ideologias variadas, e que é conformada pelo sistema escolar, as igrejas, as organizações profissionais, os meios de comunicação, as instituições de caráter artístico e científico, etc...A conquista das mentalidades em geral da sociedade, inclusive a incorporação e vinculação dos relatos dos vencidos para as diversas narrativas históricas se dá no âmbito da
sociedade civil. O relato da brazilianista Flora Thonmson-DeVeaux na Revista Piauí sobre a cidade de Charlottesville, me parece confirma essa tese.
NOTAS:
[1] A expressão
economia programática é utilizada para referir-se a uma maior planificação econômica
[2] Por revoluções passivas Gramsci se refere as transformações conservadoras do século XIX, que foram o Rissorgimento Italiano e a Unificação da Alemanha.
[3] Literalmente os pais fundadores da nação, que articularam a revolta contra a Inglaterra, segundo os historiadores. Dentre os sete, três apenas provinham diretamente das atividades agrárias do sul; George Washington (Primeiro Presidente americano),
Thomas Jefferson (Terceiro Presidente americano), e James Madison (Quarto Presidente americano). Enquanto que os provenientes de típicas ocupações urbanas eram; John Adams (Segundo Presidente americano), Benjamim Franklin, Alexander Hamilton e John Jay.
[4] Trechos da Declaração de Independêcia redigida por Thomas Jefferson comprovam claramente isso; "Nós portanto, representantes dos Estados Unidos da América, em congresso geral, reunido, pedindo ao Juiz Supremo do mundo que dê testemunho da retidão das intenções, solenemente publicamos e declaramos em nome do bom povo dessas colônias e pela autoridade que ele nos conferiu, que estas Colônias Unidas são, e por direito devem sê-lo, Estados livres e independentes; que estão liberadas de qualquer lealdade à Coroa Britânica, e que toda a conexão política entre elas e o Estado da Grã-Bretanha é, e deve ser, totalmente dissolvida; e que como Estados livres e independentes, elas têm plenos poderes para fazer a guerra, concluir a paz, contratar alianças, instituir o comércio e fazer todas as leis e coisas que os Estados independentes tem o direito de fazer. E em abono dessa declaração, com firme confiança na Proteção da Divina Providência, mutuamente hipotecamos uns aos outros nossas vidas, nossas fortunas e nossa honra sagrada."
[5] A VII tese sobre a filosofia da história de Wlater Benjamim afirma literalmente; "Não há documento da cultura que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie. E assim como os próprios bens culturais não estão livres da barbárie, também não o está o processo de transmissão com que eles passam de uns a outros."
BIBLIOGRAFIA:
BENJAMIM, Walter~
Teses sobre a filosofia da história - Editora Ática São Paulo 1985
GRAMSCI, Antonio -
Americanismo e Fordismo - Editora Hedra São Paulo 2008
KARNAL, Leandro -
História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI - Editora Contexto São Paulo 2008
SPERLING, Bert e SANDER, Peter -
Cities Ranked and Rated - Wiley Publishing New Jersey 2004
THOMSON-DEVAUX, Flora -
#Charlotesville, como minha cidade natal se tornou o foco da disputa política nos Estados Unidos - Revista Piauí setembro 2017
TOTA, Antonio Pedro -
Os americanos - Editora Contexto São Paulo 2009
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