Incêndio destruiu o Museu da Língua Portuguesa em 21 de dezembro de 2015 |
O grande arquiteto norte maericano Loui I. Kahn falava que a arquitetura era a expressão mais acabada da institucionalidade, que abrigava. Numa divergência aparente com o funcionalismo, Khan expressava assim a capacidade da edificação de resistir ao uso inicial e assumir uma dimensão simbólica maior, que supera sempre a primeira destinação imediata. No Museu da Língua Portuguesa, ainda funciona a Gare de trens, não mais a conexão da cidade de São Paulo com o vasto território do seu estado, mas com as localidades e municípios adjacentes, pois nele chegam os trens urbanos da CPTM.
Esse fato presente na atual Gare da Luz, a reunião de uma Estação de Trens com um Museu, fez desse programa quase um paradoxo instigante, a aproximação da pressa alienada das multidões urbanas voltando para as periferias e o debate aprofundado dos usos revolucionários, corriqueiros e repetidos da nossa Língua Portuguesa. Ou o exato oposto, a consciência do cotidiano alienante das grandes massas em movimento, em contraposição ao uso mecânico e burocrático da língua. Enfim, essa reunião programática da Estação da Luz, muito além de ser apenas o antônimo da destruição, abria também uma imensa possibilidade de desenvolvimentos futuros e inesperados, ao final, oportunidades.
Há aqui, a presença clara daquilo, que Walter Benjamim qualificou como a fruição desatenta das artes, dentre as quais a arquitetura com sua potente presença do valor de uso ocupava o ápice dessa condição. Na minha imaginação, essa edificação emblemática reunia na textura mesmo de seu cotidiano, poetas da periferia, que aprofundavam suas pesquisas de palavras, verbos, interjeições, conjunções, etc... no museu. E, chegavam ávidos para essa vivência, subvertendo a lógica massificada e alienante da grande metrópole, e do uso mesmo mecânico da língua.
Na minha primeira visita a essa edificação, em 2006, devaneei na exposição então montada pela jovem instituição, que abordava a obra, tão instigante para a língua brasileira, de João Guimarães Rosa. Uma obra que muitos mineiros tendem a caracterizar como regional e vinculada ao canto doce dos povos das Geraes, mas que sempre foi encarada por mim como universal, e fruto de uma mentalidade cosmopolita e sintonizada com o mundo. Nesse momento de pesar e de luta pela reconstrução, transcrevo o trecho inicial de O burrinho Pedrês de Guimarães Rosa;
"Era um burrinho Pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros, e já fora tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual.
Agora porém estava idoso, muito idoso. Tanto, que nem seria preciso abaixar-lhe a maxila teimosa, para espiar os cantos dos dentes. Era decrépito mesmo a distância: no algodão bruto do pêlo - sementinhas escuras em rama rala e encardida; nos olhos remelentos, cor de bismuto, com pálpebras rosadas, quase sempre oclusas, em constante semi-sono; e na linha, fatigada e respeitável - uma horizontal perfeita, do começo da testa à raiz da cauda, em pêndulo amplo, para cá , para lá, tangendo as moscas." ROSA 1984 pág.17
Inicio de composição magistral, que apenas anuncia a doce manipulação de um linguagem inusitada e jamais formulada e operada. A reabertura, e o mais rápido funcionamento da instituição é urgente, para possibilitar, que novas sínteses com esse mesmo teor sejam possíveis...
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