sábado, 22 de novembro de 2025

A teoria da alienação, arte, arquitetura e previsibilidade

O filme A guerra do fogo de Arnaud, o debate
sobre conquistas tecnológicas de domínio do
fogo, e sua propriedade coletiva

O presente texto é uma tentativa ainda embrionária e fragmentada de capturar os problemas determinados por uma forma de operar alienada e reificada, presente em nossa sociedade contemporânea, que determinam uma prática onde a humanização do construir, projetar e planejar foram colocados de lado. A condição, em que vivemos é determinada pelo dinheiro, que mascara o real valor das coisas, determinando uma imensa manipulação de nossas escolhas do "Bem Viver". A cidade foi alienada de seus cidadãos, que já não decidem mais como ela deve vir-a-ser, toda sua espacialidade ganha uma aparência, onde a sua forma vivenciada simplesmente aconteceu, como fruto do acaso.

Uma das categorias centrais do pensamento de Marx é sua teoria da alienação, uma investigação sobre a capacidade das nossas consciências de alcançar a verdade do real, ou a capacidade de nossa linguagem, ou discurso de abarcar a realidade de uma forma convincente e persuasiva, para a nossa espécie humana, no tempo da hegemonia do capitalismo. Dentre os esforços humanos para entender o mundo estão em posição de destaque, a ciência, a arte e a arquitetura, que trazem além da compreensão, a fundação não só do que existe, mas também do vir-a-ser, daquilo que é uma aspiração do ser. O conceito fulcral em Marx é o trabalho, ou a simples e banal atividade humana, que desde os primórdios da nossa espécie, modifica a natureza mas também a individualidade do homem, conferindo e garantindo sua reprodução. Para Marx, o homem renasce a cada trabalho que realiza, desde os mais antigos tempos, a objetivação das coisas lhe garante auto confiança e auto conhecimento na modificação ativa da natureza e de seus companheiros. A premissa básica é a socialidade, o reconhecimento operacional de suas conquistas, que lhe garantem um afastamento do mundo natural, a partir de uma teleologia do fazer, que envolve o imaginar e o projetar. Pois antes de fazer imaginamos, a antecipação de suas ações, que passam a ser programadas, pensadas e interessadas em criar um mundo mais confortável e acolhedor para si próprio e sua espécie. Quando realizamos um trabalho, de qualquer natureza, emergimos dele como um outro ser, mudamos a natureza e mudamos a nós próprios, cada utilidade buscada implica objetos funcionais, mas também bem proporcionados e belos. Para um materialista como Marx, a arte emerge da necessidade; uma lança, um martelo, um prato ou uma vasilha podem ser também bem proporcionados, decorados e enfeitados. Mas o trabalho não é um idílio de isolamento, muitas vezes ele será executado e elaborado no seio da comunidade, que vigia, se engaja, aplaude e contesta aperfeiçoando não apenas para o necessário, mas para o simbolismo de sua conquista. Logo, compreendemos, que se engajarmos nossa comunidade, se a convencermos das suas virtudes, alcançaremos nossos objetivos de forma mais efetiva, emerge a divisão social do trabalho, na qual tarefas são distribuídas, acordadas, delimitadas, reconhecidas ou rejeitadas, pelas capacidades diferenciadas dos seres humanos. Emerge aqui no gênero humano, as atitudes altruístas e egoístas, que tendem de um lado a considerar o fruto do trabalho como esforço coletivo e compartilhado, e por outro lado, a considerar as coisas como propriedade privada de seus executantes. 

"A atividade e a fruição, assim como seu conteúdo, são também os modos de existência segundo a atividade social e a fruição social. A essência humana da natureza está, em primeiro lugar, para o homem social; pois é primeiro aqui que ela existe para ele na condição de elo com o homem, na condição de existência sua para o outro e o outro para ele; é primeiro aqui que ela existe como fundamento da sua própria existência humana, assim como também na condição de elemento vital da efetividade humana. É primeiro aqui que sua existência natural se lhe tornou a sua existência humana e a natureza [se tornou] para ele o homem. Portanto, a sociedade é a unidade essencial completada do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo da natureza levado a efeito." MARX, 2010 p. 106 E 107

Marx, já em seu trabalho sobre a Questão Judaica indicava a conexão entre a ampliação de uma "vendabilidade universal" no sistema capitalista e a ética religiosa dos judeus e do cristianismo, como comportamento convergente na sociabilidade moderna, indicadores da alienação. Esse ensaio de Marx, redigido em 1843 e publicado em 1844 no único número dos Anais Franco-Alemães, em plena Paris, marca segundo (CLEMESHA, 2025, Pág.36), a transformação dos cristãos em judeus, "na medida em que expulsaram os comerciantes e usurários judeus para exercerem eles próprios não apenas o comércio mas a produção para a troca,..." Há uma menção a universalização do fundamento secular do judaísmo, entendido como prática de um povo-classe que foi impedido pela opressão cristã de possuir terra, praticando portanto a usura e o comércio, como formas de sobrevivência na economia pré-capitalista. A mesma autora aponta a superficialidade e fragmentação de algumas leituras desse ensaio, sobre o qual foram apontados, as origens anti-semitas da Alemanha de forma equivocada. Importante assinalar, que Marx e sua família tinham origem judaica, e também, foram vítimas desse anti-semitismo, ainda na velha Prússia, pois o pai, Heinrich Marx foi obrigado a se converter ao cristianismo, para poder assumir um cargo público na burocracia estatal.

"Assim, a alienação humana foi realizada por meio da transformação de todas as coisas em objetos alienáveis, vendáveis, em servos da necessidade e do tráfico egoístas. A venda é a prática da alienação. Assim como o homem, enquanto estiver mergulhado na religião, só pode objetivar sua essência em um ser alheio e fantástico; assim também, sob o influxo da necessidade egoísta, ele só pode afirmar-se a si mesmo e produzir objetos na prática subordinando seus e sua própria atividade à dominação de uma entidade alheia, atribuindo-lhes a produtos significação de uma entidade alheia, ou seja, o dinheiro... A venda é a prática da alienação" MARX, 2010 (1), pág.39

Marx não valora o egoísmo e o altruísmo, ou a concorrência e a colaboração coletiva, apenas aponta que a essência da natureza humana é a socialidade, e reconhece que as atividades podem ser organizadas a partir da institucionalização do egoísmo e da concorrência - o capitalismo - , que induz a negação da socialidade. E portanto, carrega a condição da alienação, da reificação, do trabalho abstrato apartado do humano, da desconsideração da capacidade criativa do homem no trabalho, que irá determinar a cisão ontológica entre humano e trabalho, entre projeto e realização, entre consciência e a mera objetivação mecânica. Não é apenas a atividade, mas também a fruição e o seu conteúdo, que são capturados e afastados do humano pela propriedade privada dos meios de produção, impondo a obrigação do trabalho totalmente distinta do trabalho como auto constituinte da humanidade. A efetividade da atividade humana supõe em si a auto constituição da espécie, enquanto um processo de libertação da natureza e dos outros, humanismo da natureza e naturalismo humanizado. A propriedade privada não é um atributo natural, mas apenas a institucionalização funcional dos meios de produção em benefício de uma minoria, e não do conjunto da espécie. Imagine-se a atividade humana de produzir fogo, tal qual alcançada por nossos antepassados em tempos pré-históricos, esse conhecimento não foi encarado como propriedade privada do seu inventor, mas como patrimônio científico-artístico da espécie.  Compartilhado e repetido de forma infinita pelo humano, ele se constituiu como um ganho de qualidade de vida, o domínio do fogo, representa a possibilidade de inauguração do humano na sua espécie, assim como, o arado, a roda, a domesticação, o celular, etc... O cercamento dessas conquistas é obra de uma sistema social, o capitalismo, que celebra o egoísmo e nega o esforço da espécie humana no alcance dessas comodidades, privatizando essas descobertas por uma minoria. Nos atributos humanos há um reforço exclusivo da dimensão imediatamente natural, que dentro da natureza possui características específicas.

"Como ser natural, e como ser natural vivo, está, por um lado, munido de forças naturais, de forças vitais, é um ser natural ativo; estas forças existem nele como possibilidades e capacidades, como pulsões; por outro, enquanto ser natural, corpóreo, sensível, objetivo, ele é um ser que sofre, dependente e limitado, assim como o animal e a planta, isto é, os objetos de suas pulsões existem fora dele. Mas esses objetos, são objetos de seu carecimento, objetos essenciais, indispensáveis para a atuação e confirmação de suas forças essenciais. Que o homem é um ser corpóreo, dotado de forças naturais, vivo, efetivo, objetivo, sensível significa que ele tem objetos efetivos, sensíveis como objeto de seu ser, de sua manifestação de vida, ou que ele pode somente manifestar sua vida em objetos sensíveis efetivos." MARX, 2010, P.127

Conjunto de tomadas do Filme Aquarius, de Kleber Mendonça, que assinalam o contraste entre a tipologia das torres e a implantação linear de baixa altura do Edifício Aquarius no bairro de Boa Viagem em Recife, na qual são mostradas a mútua vigília entre a esfera pública e privada.

A autoconsciência humana, essa capacidade de se antecipar, de projetar e planejar suas atividades estão necessariamente inseridas num contexto social e carregam uma característica essencial a sua satisfação, que também depende da sua compreensão ontológica, como ser social. Nossas atividades não satisfazem apenas o nosso ser, mas estão em consonância e a espera da chancela da nossa espécie; a realização humana não pode ser concebida em abstração da natureza ou em oposição a ela. Pode-se mencionar como exemplo o "Bem Viver", um conceito caro ao urbanismo e à arquitetura, e que é claramente socialmente compartilhado e construído. Em nossa condição contemporânea, numa sociedade perpassada pela mercantilização da vida, o "Bem Viver" se transformou numa mercadoria manipulado por agentes imobiliários, ou pela auto-construção nas cidades brasileiras, Favelas. A manipulação dos padrões de "Bem Viver" seja pelo mercado imobiliário, seja determinado pela necessidade de morar nas favelas, seja submetidos pelo urbanismo miliciano ou do tráfico de drogas. Há um padrão, que se destaca nas cidades brasileiras, que são as "gated commmunities" dos afluentes grupos sociais médios,  e a Torre Habitacional com grande desenvolvimento em altura, que tomaram conta primeiramente dos subúrbios de grandes cidades dos EUA, e na sequência conquistaram o mundo. Como descrito num texto meu, apresentado no Arquimemória6, em Salvador BA, que tinha como título; O filme Aquarius, e a produção e reprodução da cidade no Brasil; a questão do habitar e seus padrões impostos pelo mercado imobiliário. No qual, assinalava a imposição da torre habitacional, como interesse exclusivo do capital imobiliário, em franca dissonância com as aspirações de sociabilidade da cidade brasileira, inclusive potencializando sua violência. Como o velho GRAMSCI 1999 já assinalou; "a ideologia hegemônica é sempre a ideologia da classe dominante" em nosso cotidiano, ou na esfera do "Bem Viver". 

O incrível desenvolvimento capitalista, a partir da década de 70 com o neo liberalismo de Frederich Hayeck (1899-1992) e seu culto a desregulamentação, determinou uma exacerbada celebração do individualismo, no nosso dia a dia. Como defendem DARDOT E LAVAL 2016,  o neo liberalismo é um sistema normativo e ético, que estendeu a lógica do capital a todas as esferas da vida cotidiana, celebrando o individualismo e desdenhando da socialidade da espécie humana. E, elegeu como expressão desse individualismo exacerbado no território da cidade; a torre habitacional de grande desenvolvimento em altura e as "gated communities" ou os condomínios fechados. Essa situação, ou condição de estar no espaço da cidade neoliberal potencializa a violência urbana, pois afasta de forma clara a vida particular e íntima da família ou do privado, da esfera da vida comunitária e social, como dois mundo irreconciliáveis. Alguns filósofos modernos e a academia novidadeira, cooptados pelo neoliberalismo, continuam a insistir e absolutizar os "direitos naturais do indivíduo" majoritariamente, conceito que seria incompreensível para Aristóteles, há 26 séculos atrás, quando escreveu: 

"Quando várias aldeias são unidas numa única comunidade completa, grande o bastante para ser quase auto-suficiente, o Estado passa a existir, originando-se nas simples necessidades da vida, e continuando devido à necessidade de uma vida boa. Portanto, se as formas prımıtıvas de sociedade são naturais, também o é o Estado, pois é o fim delas, e a natureza de uma coisa é o seu fim. O que cada coisa é, quando plenamente desenvolvida, é que chamamos sua natureza, quer estejamos falando de um homem, de um cavalo ou de uma família. Além disso, o resultado final de uma coisa expressa melhor dela; e ser auto-suficiente é o melhor dos resultados. Por isso, é evidente que o Estado é uma criação da natureza, e que o homem é por natureza um animal político. [..] A prova de que o Estado é uma criação da natureza, anterior ao individuo, está em que o indivíduo, quando isolado, não é auto-suficiente; portanto, ele é como uma parte em relação ao todo. Aquele que é incapaz de viver na sociedade, que não tem necessidade disso, porque suficiente para si mesmo, deve ser uma besta ou um deus; ele não é parte do Estado. Um instinto social é colocado em todos os homens pela natureza." ARISTÓTELES Ética livro I, capítulo2, apud MÉSZÁROS, 2006 pág.233 

Vejam, que como resultado da evolução capitalista particular dos últimos cinquenta anos do neoliberalismo, a noção de um instinto social "colocado em todos os homens pela natureza" desaparece completamente, emergindo "uma besta ou um deus", que prescinde da sociedade. As liberdades individuais parecem pertencer ao reino da natureza e os laços sociais, ao contrário, parecem ser artificiais impostos. por assım dizer de fora ao indivíduo auto suficiente. Essa condição, claramente imposta possui claros interesses, e aliena o sentido da humanidade, como coletividade impondo uma absolutização do indivíduo isolado. Afinal, o celular, que se usa para a comunicação entre humanos é obra conjunta da humanidade, sua concepção não pertence a nenhum indivíduo isolado, mas a alienação que a propriedade privada nos leva nos faz acreditar na possibilidade de cercamento desse saber. Tal situação, indica-nos que é impossível uma relação harmoniosa entre indivíduo e comunidade, impondo-nos um isolamento solitário. Essa ruptura nos leva a um estado de inconsciência, de alienação com relação às conquistas da humanidade, nos levando a crer que o "Bem Viver" está nas paredes finas de gesso dos novos apartamentos construídos recentemente, que possuem um "valor em dinheiro" maior do que os apartamentos mais bem construídos de antes. As paredes finas de gesso acartonado consideradas como uma modernização dos processos construtivos degradam o isolamento térmico e acústico, e a própria condição de resistência às intempéries naturais pela construção, em função da subordinação imediata do "Valor de Troca", uma simples valoração em dinheiro, não um valor de fato, ligado ao real "Bem Viver".

O problema para esse beco sem saída em que nos metemos talvez não esteja tanto na teoria, mas na práxis, quando por exemplo tratamos da questão de uma atitude contextualista e crítica no ato do construir humano. Marx sempre defendeu, que a superação da alienação teórica na qual estamos envolvida deveria emergir de novas práticas, que retomassem o fazer humanizado, afastando-se da condição de separação entre sujeito e objeto, determinado pela vendalidade das coisas. Para mim, o ato mesmo de se arriscar num projeto, num desenho carrega em si uma promessa de reunião amistosa entre teoria e práxis, afinal não existe projeto que não seja teórico e por outro lado, não existe teoria que não seja teleológica - antecipadora de futuro. Assim, há uma recorrente menção, a violência do ato de construir, por exemplo em Ignasi Solá Morales e em Marina Weissman, ao qual, adiciono o ato de projetar, que antecipa-se ao construir. Na verdade, em nosso mundo contemporâneo com o declínio da previsibilidade, e portanto do plano e do projeto, a reflexão teórica se aliena da práxis, passando a ser um refúgio confortável idealista, onde a materialidade efetiva dos mundos da vida encontra-se soterrada. No trecho, a seguir Samira Santos na sua tese de doutorado intitulada; A contextualização na arquitetura contemporânea, como poética da relação", que foi orientada por mim, e que coloca a questão da continuidade da atitude contextualista no fenômeno construtivo;

"De todo modo, para além de qualquer limitação e sobreposição conceitual, o que parece posto é a necessidade de uma continuidade no desenvolvimento e renovação do debate. E é neste sentido que, por fim, destacamos uma emergência da teoria, em sua trama, que é a tomada da violência como dimensão central da arquitetura, apontada por Solà-Morales (1994a). Esta é aqui destacada porque parece abrir uma desestabilização de uma recorrente leitura da atitude contextualista como uma inserção natural no fluir da história, como trazido em Waisman (1981b). Assim também é lido por Waisman (1972) ao valorizar a intervenção arquitetônica por não ser vista como “um monumento agregado artificialmente ao conjunto” [...]  "Ou ainda, de outro modo, à leitura das empreitadas mais conservadoras do contextualismo. A perturbação se dá à medida que secundariza a contextualização com relação à autonomia da violência que, assim pensada, é intrínseca ao ato de edificar. Isto coloca a contextualização como qualificação de um ato inescapavelmente violento; ficando fora de suas possibilidades o impedimento da violência ainda que lhe restando a decisão de qualificar com mais ou menos violência." SANTOS, 2025. pág.157 

No meu comentário assinalei, que me parece que o termo ou conceito de continuidade merecia estar contraposto ao de descontinuidade, ou melhor, pensarmos numa continuidade na descontinuidade , assim como numa descontinuidade na continuidade , como uma interação dialética não dualista, que mira num ato inescapável de violência, maior ou menor. Isto é, como que anunciando que a superação absoluta da violência inerente ao ato de construir, projetar ou planejar deve ser entendido não só como mera reprodução do mundo existente, mas como sonho ou aspiração de sua mudança. Portanto, fazendo uma analogia entre o ato de projetar, planejar e construir, inevitavelmente violento, e o próprio sonho utópico de um outro mundo, que afinal aspira a descontinuidades, dentro de continuidades. Nesse mesmo comentário, citei um trecho de um livro, sobre a problemática da alienação, termo ou conceito incontornável do nosso tempo de Istvan Métzáros; 

"Desnecessário dizer que uma transformação radical dessas proporções não pode ocorrer da noite para o dia. A "expropriação dos expropriadores" não é mais do que o primeiro ato de um processo longo e imensamente complexo de transformação, caracterizado pela dialética da "continuidade na descontinuidade" e da "descontinuidade na continuidade". Admitindo ser inconcebível superar a alienação numa forma que possa ser considerada como absoluta e definitiva, capaz de erradicar todos os possíveis perigos e potenciais de reificação, a concepção de Marx é perfeitamente compatível com a Aufhebung(superação) entendida como uma sucessão de conquistas sociais, das quais a seguinte é menos (na verdade, qualitativamente menos) impregnada de alienação do que a precedente. O que importa não é apenas o volume e as proporções daquilo que combatemos - como os criminologistas sabem muito bem - mas também a tendência geral de desenvolvimento do fenômeno em questão. O capitalismo não se caracteriza simplesmente pela alienação e reificação, mas também pela maximização da tendência  à alienação, a tal ponto que é a existência mesma da humanidade que está agora em jogo." METZÁROS 2006, página 228 

Enfim, é chegado o momento de reconhecer, que na verdade o mundo em que estamos vivendo assiste a um retrocesso alienante constante, cada vez mais intenso, sem que ninguém mais tenha coragem de formalizar continuidades descontínuas ou vice versa. A reificação de todas as pessoas e, portanto, a aceitação da falsa impressão de que é "livremente escolhida" de um lugar, que nega a antiga ordem escravista da velha forma de socialidade brasileira, politicamente estabelecida e regulada determinam um nova servidão. Uma servidão, que pôde avançar com base numa 'sociedade civil formal e caracterizada pelo domínio do dinheiro, que abriu as comportas para uma universal "servidão à necessidade egoísta". A alienação caracteriza-se, portanto, pela extensão universal da "vendabilidade", isto é a transformação de tudo em mercadoria; pela conversão dos seres humanos em "coisas", para que eles possam aparecer como mercadorias no mercado, em outras palavras; a reificação das relações humanas, obtidas pela fragmentação do corpo social em indivíduos isolados. Nesse contexto, a cidade passa a ser algo que acontece, sem intencionalidade, alienada das vontades, uma naturalização das perversões do habitar, do deslocar e do interagir.

BIBLIOGRAFIA: 

CLEMESHA, Arlene, Marxismo e Judaísmo, São Paulo Boitempo 2025

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian, A nova razão do mundo; ensaio sobre a sociedade neoliberal, São Paulo, Boitempo, 2016

MARX, Karl, Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo, Boitempo 2010

MARX, Karl, Sobre a questão judaica, São Paulo, Boitempo, 2010 (1)

MÉSZÁROS, Istvan, A Teoria da alienação em Marx, São Paulo, Boitempo, 2006 

SANTOS, Samira, A contextualização na arquitetura contemporânea, como poética da relação, Tese de doutorado defendida no âmbito do PPGAU-UFF 2025

SOLÁ-MORALES RUBIÓ, Ignasi, "Terrain Vague"; in any place, Cambridge MA, MIT Press, 1995

WAISMAN, Marina. O interior da história: historiografia arquitetônica para uso de latino-americanos. São Paulo: Perspectiva, 2013

terça-feira, 30 de setembro de 2025

A questão da moradia nas cidades brasileiras e contemporâneas: o Rio de Janeiro e a incapacidade de se pautar a transparência de seus esforços construtivos.

O texto a seguir foi publicado no âmbito do Encontro Marx e o Marxismo: O capitalismo do fim do mundo, A era da policrise. Organizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos para Marx (NIEP Marx) da Universidade Federal Fluminense


 Pedro da Luz Moreira Professor Associado EAU-UFF e PPGAU-UFF, email: pedroluz@id.uff.br ou daluzmoreira.pedro@gmail.com

Resumo: 

A questão da moradia é central em nossas cidades contemporâneas, pois o percentual do uso habitacional corresponde a 80% da demanda por construção numa aglomeração urbana em qualquer parte do mundo. Tal condição, representa que uma política urbana estruturada pode ser determinada por uma política habitacional, que se paute pela garantia do Direito de Morar. Na cidade capitalista, o Direito de Morar entra em conflito com o Direito de Propriedade, pois a presença de infraestruturas urbanas garante melhor qualidade de vida, diferenciando o valor da terra urbana, em função de sua localização. A lógica da exclusão se impõe quando o valor de troca do domicílio prevalece sobre valor de uso. E mais, a política urbana ou espacial pode ser um poderoso impulso para a concentração de renda, bloqueando a equidade na sociedade, pois invariavelmente o investimento em infraestrutura urbana é investimento do Estado, enquanto a apropriação do lucro imobiliário é aferido pelo proprietário da terra urbana. A pauta da definição da relevância das obras públicas deve ganhar transparência na sociedade brasileira, garantindo que o interesse público e comum seja resguardado.

Palavras Chaves: A questão da moradia, a cidade, o Interesse Público, Direito de Propriedade e Direito de Morar. 

Abstract: 

The issue of housing is central to our contemporary cities, since the percentage of housing use corresponds to 80% of the demand for construction in an urban agglomeration anywhere in the world. This condition means that a structured urban policy can be determined by a housing policy that is guided by the guarantee of the Right to Live. In the capitalist city, the Right to Live conflicts with the Right to Property, since the presence of urban infrastructure guarantees a better quality of life, differentiating the value of urban land according to its location. The logic of exclusion prevails when the exchange value of the home prevails over its use value. Furthermore, urban or spatial policy can be a powerful impetus for the concentration of income, blocking equity in society, since investment in urban infrastructure is invariably an investment by the State, while the appropriation of real estate profits is measured by the owner of the urban land. The agenda for defining the relevance of public works must become transparent in Brazilian society, ensuring that the public and common interest is protected. 

Keywords: The housing issue, the city, the Public Interest, Property Rights and the Right to Live.

Resumo: 

La cuestión de la vivienda es central en nuestras ciudades contemporáneas, ya que el porcentaje de uso de vivienda corresponde al 80% de la demanda de construcción en una aglomeración urbana en cualquier parte del mundo. Esta condición significa que una política urbana estructurada puede estar determinada por una política de vivienda que se oriente por la garantía del Derecho a la Vivienda. En la ciudad capitalista, el Derecho a la Vivienda entra en conflicto con el Derecho a la Propiedad, pues la presencia de infraestructura urbana garantiza una mejor calidad de vida, diferenciando el valor del suelo urbano, dependiendo de su ubicación. La lógica de la exclusión prevalece cuando el valor de cambio de la vivienda prevalece sobre su valor de uso. Además, la política urbana o espacial puede ser un poderoso motor de concentración del ingreso, bloqueando la equidad en la sociedad, ya que la inversión en infraestructura urbana es invariablemente una inversión estatal, mientras que la apropiación de las ganancias inmobiliarias se mide por el propietario del suelo urbano. La agenda de definición de la relevancia de las obras públicas debe ganar transparencia en la sociedad brasileña, garantizando la protección del interés público y común. 

Palavras Chaves: La cuestión de la vivienda, la ciudad, el interés público, el derecho de propiedad y el derecho a vivir. 

Introdução: 

O texto a seguir busca caracterizar como a cidade brasileira vem se produzindo e reproduzindo a revelia dos interesses gerais, beneficiando grupos específicos como construtoras, empreendedores, proprietários, incorporadores, especuladores e empresários da área de transportes públicos. A fragilidade do debate urbano e espacial no Brasil gera uma grande intransparência, fazendo com que, a cidade bem comum da humanidade, seja privatizada e usada como mercadoria que beneficia poucos e prejudica muitos. A explicitação das estratégias dos possuidores precisa ser desvendada, mostrando de forma clara a imensa capacidade do espaço urbano de construção de inequidades. O texto se desenvolve, numa primeira seção, que debate as implicações do neoliberalismo para a questão da moradia, onde se impôs uma agenda de declínio do controle público, e a emergência do espírito empresarial. Logo depois, aborda a Questão da Moradia, título de um texto de Engels de 1873-74, que se referia as condições de habitação insalubre dos trabalhadores nas cidades da Inglaterra do século XIX. Num paradoxo, esse texto ainda possui sintonia com nossas condições atuais da cidade, quando a ideologia neoliberal hegemônica, conquista o metabolismo social, e determina práticas e ações, que reduzem o Direito à Cidade. Partindo desse ponto para mostrar, que na história da cidade ao longo do século XX, e na primeira quadra do século XXI, as condições de acesso a uma efetiva urbanidade se restringiram fortemente. Em seguida, o texto se debruça sobre a situação atual da cidade brasileira, particularmente a cidade metropolitana do Rio de Janeiro, mostrando como grande dos seus esforços construtivos beneficiam grupos de interesses específicos, com claro prejuízo para o conjunto de sua população. Por fim, nas considerações finais o texto aborda a centralidade da radicalização da democracia no Brasil, não apenas representativa, mas também de forma direta, a partir da gestão do espaço físico de suas cidades e da questão da moradia. Desenvolvimento: O neoliberalismo e o espaço: 

“Nesse sentido, o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida.” DARDOT e LAVALL, 2016, p.7 

O neoliberalismo criou e impôs um hábito cotidiano disseminado e introjetado em nossa cidadania contemporânea, onde impera; o individualismo, a competição entre indivíduos, e a monetização de direitos, como a habitação, a saúde, a educação, e o lazer. Com ele, naturalizou-se a ideia, de que o acesso ao morar em determinadas partes da cidade depende do poder aquisitivo da população, determinando a homogeneização de extratos sociais nessas vizinhanças. Além disso, naturalizou que serviços essenciais, como distribuição de água, coleta de esgotos e transportes públicos foram concedidos a iniciativa privada, determinando a lógica do lucro em serviços essenciais. No Brasil, a habitação, a saúde, a educação, a cultura que constam em nossa Constituição Federal de 1988 como direitos da população em geral passaram com o advento neoliberal a ser mais caracterizados como mercadorias. Nessa condição, notadamente a moradia passou a compor seus preços, pelas comodidades de infraestrutura urbana presentes ou ausentes nas suas áreas da cidade. Em outros tempos, anteriores ao advento do neoliberalismo havia a aceitação de que era necessário que o Estado fizesse a gestão da cidade e do espaço, garantindo o acesso a habitação às camadas mais precarizadas. Essa aceitação nunca foi plena no Brasil, devido as nossas tradições culturais patrimonialistas, que sempre absolutizaram a propriedade do imóvel identificando a locação como um fator de insegurança econômica(1). Atualmente, o programa do Governo Federal para a promoção da Habitação de Interesse Social (HIS) nas cidades brasileiras possui o nome algo dramático; “Minha Casa, Minha Vida” (MC,MV), denotando a ideologia de fazer do trabalhador, um proprietário.

Por outro lado, o mercado imobiliário no Brasil, nas grandes cidades tende a operar a partir grandes grupos monopolistas empresariais, produzindo moradia, tanto para os extratos de maior poder aquisitivo, como também para os mais precarizados. A renda imobiliária, decorrente da densificação do uso do solo urbano que até a década de 60 era operada de forma mais pulverizada, por pequenos capitais nas grandes cidades brasileiras, passa a ser controlada e capturada por grupos monopolistas. Vários autores, HILFERDING 1986, ARRIGHI, 1994, POLANYI 2000, LENIN, 2013, MARX, 2013, SCHUMPETER, 2017 indicam a pulsão monopolista do sistema capitalista, como forma de defesa da queda tendencial da taxa de lucros, muitas vezes associadas ou capitaneadas por bancos. Particularmente, ARRIGHI, 1994 menciona a nossa contemporaneidade como uma era de hegemonia do capitalismo financeiro, onde se identifica uma perda de predomínio da produção para um maior protagonismo das finanças e das especulações  Na verdade, as duas formas de capital estão profundamente interligadas, tendo como proprietários as mesmas elites endinheiradas que circulam entre a produção e a especulação com seus recursos acumulados. Desenvolve-se com a financeirização uma predominância das atitudes especulativas, que passam a considerar a moradia como um investimento financeiro, o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso, que tende a se enfraquecer. 

“Desenvolve-se, por assim dizer, a união pessoal dos bancos com as maiores empresas industriais e comerciais, a fusão de uns com as outras mediante a posse das ações, mediante a participação dos diretores dos bancos nos conselhos de supervisão (ou de administração) das empresas industriais e comerciais, e vice-versa.”(LENIN, 2013, p. 46) 

Por último, mas não menos importante há uma tendência nas economias de desenvolvimento capitalista tardio, como o Brasil, de ser capturada por ordenações monopolistas, seja pela maior presença do Estado, como também pela competição prematura com conglomerados internacionais também monopolistas. É a promoção do desenvolvimento desigual e combinado, que foi apontado por GRAMSCI, 2002, e que também, foi por analogia de uma série de pensadores (2) no Brasil apontado como o modelo de modernização, que combinava o arcaísmo e a modernidade. O desenvolvimento capitalista tardio determina o enfraquecimento da sua fase concorrencial, fazendo com que essas nações adentrem o cenário com uma maior proteção do Estado e com grupos monopolistas. Há no mercado imobiliário formal, principalmente nas grandes cidades, como Rio e São Paulo, uma clara homogeneização dos preços de venda das unidades habitacionais oferecidas, determinando um horizonte muito restrito de consumidores, que possuem as reais condições de compra (3). Portanto, houve a combinação perversa da ideologia do neoliberalismo, com a condição de chegada tardia no sistema capitalista, intensificando a concentração de renda. Essa inacessibilidade a mercadoria da moradia tem determinado uma forte angústia, mesmo nos setores médios da população, que não consegue acessar o preço da unidade habitacional, não só nas áreas centrais, mas no contexto das cidades brasileiras.  

Os setores populares, de menor poder aquisitivo, que são alijados deste horizonte de consumo, sempre encontraram nas cidades do terceiro mundo, ou na periferia do capitalismo central, ou ainda na cidade brasileira formas de resistência, tais como; ocupações de imóveis abandonados, abrigo nas ruas, favelas, loteamentos irregulares, etc..., que viabilizaram sua sobrevivência cotidiana. Com isso, as cidades no mundo todo, mesmo em economias mais desenvolvidas passaram a ser marcadas por uma profunda estratificação social, concentrando classes sociais homogêneas determinando a emergência de pequenos guetos ricos e imensas áreas pobres, repletas ou destituídas das infraestruturas. Nas áreas centrais, os movimentos de ocupação popular tem se revelado uma estratégia adequada, mas que nem sempre é bem sucedida. Basta para tal, comparar a bem sucedida Ocupação Manoel Congo no centro do Rio de Janeiro nas adjacências da Assembleia Legislativa e a experiência de colapso estrutural pelo fogo, do Edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, nas adjacências do Teatro Municipal dessa cidade, ambas ocupadas por movimentos de moradia. 

Durante o segundo pós guerra, a partir de 1945, com a emergência de uma lógica keynesiana, principalmente nos países centrais instala-se um maior controle do Estado sobre o desenvolvimento urbano e a propriedade da terra. As cidades operam políticas de gestão do preço da habitação regulando o mercado imobiliário, garantindo aos menos privilegiados acesso a moradia em áreas bem estruturadas. Essas políticas baseavam-se invariavelmente na regulação e limitação do direito de propriedade da terra urbana, tais como; locação social, construção de conjuntos habitacionais, obrigatoriedade de destinação subsidiada de percentuais da moradia em empreendimentos imobiliários, impostos progressivos para propriedades fechadas ou sub-utilizadas. Com o advento do neoliberalismo, primeiro nos países anglo-saxões, nos anos 1979 Margareth Thatcher assume como primeira ministra na Inglaterra, e Ronald Reagan em 1981 como presidente dos EUA, inicia-se o desmonte das políticas do Estado de Bem Estar Social, determinando a desregulamentação do mercado imobiliário nessas culturas, que depois se estenderão ao resto do mundo (4). Recentes artigos na imprensa e na academia apontam Viena (5), como a única cidade europeia que mantém o acesso de sua população à habitação por manter seu parque imobiliário numa subdivisão de proprietários dispostos da seguinte forma; 1/3 governo municipal, 1/3 cooperativa de moradores e 1/3 mercado imobiliário. Tais condições garantiram que a população mais pobre e remediada acesse as unidades habitacionais em boas localizações. Importante destacar, que a Viena Vermelha do período entre guerras, governada por administrações social democratas realizou conjuntos habitacionais emblemáticos da História da Arquitetura Moderna, como o Karl Marx Hof e Friedrich Engels Hof. Ambos os Conjuntos Habitacionais localizados próximo ao centro de Viena, com ampla oferta de equipamentos de comércio, boa continuidade com a cidade novecentista, não representando qualquer excepcionalidade no conjunto da cidade construíram uma tradição de inclusão de seus moradores. 

Mas, voltando ao nosso cenário contemporâneo, de emergência da ideologia neoliberal, assiste-se agora a emergência da plataforma “Airbnb” de alocação de habitação voltada para temporadas turísticas, que coloca o ambiente da locação de imóveis, principalmente em destinos turísticos diante de uma demanda mundial, e que também vem demonstrando tendências monopolistas nas mãos de poucos especuladores e empreendedores. A questão vem sendo enfrentada por algumas administrações municipais, que já identificam a expulsão expressiva da população local e tentam pensar políticas de limitação dos abusos de preço. Particularmente a cidade de Barcelona, assume o pioneirismo de tentar restringir os preços praticados pelos investidores, que na verdade vem determinando no cotidiano das cidades, “vazios turísticos” em áreas como o entorno da Sagrada Família, a emblemática igreja de Antoni Gaudí, na cidade catalã. As novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) potencializam de sobremaneira as tendências especulativas do neoliberalismo de hegemonia financeira. 

A questão da moradia na história: 

Entre 1872 e 1873, no jornal de Der Volkstaat, do Partido Social Democrata Alemão, Friedrich Engels escreve Sobre a questão da moradia, que na verdade era composto por 3 textos; “Como Proudhon resolve a questão da moradia”, “Como a burguesia resolve a questão da moradia”, e “Adendo sobre Proudhon e a questão da moradia”. Esses 3 textos pretendiam responder ao médico de Würtemberg, Arthur Mülberger, que “se resumiam a achismos fortemente influenciados pelo socialismo pequeno-burguês de Pierre-Joseph Proudhon”(6). O texto ainda terá uma segunda edição em 1887, com uma irônica inserção de Engels agradecendo ao governo alemão por sua proibição, assim garantindo portanto enorme incentivo pela procura de seu conteúdo. 

“Seduzir os trabalhadores com a utopia burguesa de que todos eles merecem “uma casinha” e “uma hortinha” para chamar de suas é uma maneira ardilosa de prendê-los à terra, “ao método antiquado da produção individual e do trabalho manual”, e retroceder dos avanços da tecnologia e da ciência: a humanidade chegou longe demais para regredir.” ENGELS, 2015, P. 8 

Portanto, a questão da moradia retrocede ao século XIX, permanece no século XX, e se estende aos nossos dias, inicialmente pelo imenso êxodo rural das cidades europeias e americanas do século XIX, mas também pela industrialização, urbanização e decréscimo da população rural de forma tardia no Terceiro Mundo e no Brasil, e no século XXI, pela imensa desregulamentação e desmonte do Estado de Bem Estar Social, promovido pelo neoliberalismo a partir do final da década de 70. Esse desmonte, ocorre primeiro nos países de tradição anglo-saxã, e depois na década de 90 no restante do mundo, quando a Queda do Muro de Berlim parece apontar para a vitória do capitalismo, frente ao socialismo burocrático soviético. No campo da arquitetura e do urbanismo, na historiografia e na projetação os tempos do final do século XX apontam para um enorme achatamento das proposições utópicas, determinados pela mentalidade do “Fim da História” (7). Ocorre então um imenso retrocesso determinado pela absolutização do Direito de Propriedade, frente ao Direito de Moradia fazendo com que o empresariamento da terra urbana e dos ganhos de capital gerencie os programas de qualquer empreendimento urbanístico e arquitetônico. Se processa uma imensa redução das energias utópicas, a arquitetura e urbanismo se amoldam de forma acrítica aos programas corporativos, se limitando a um presente contínuo e inusitado, que nos deixa perplexos. Numa sociedade hiper informada, mas sub teorizada (8), incapaz de processar a avalanche de dados pela perda de suas bases teóricas. Onde, também o passado não gera mais empatia, ou experiências que acreditávamos, conformavam nossa história comum compartilhada, não como indivíduos isolados, mas enquanto gênero humano. A pulverização realizada por identidades fragmentárias condenou o universalismo a representar uma globalização automática, concorrencial e limitada. O futuro passou a ser bloqueado, em nome de um pensamento, que conforme ZIZEC, 2024, denominou como “a completa incapacidade de imaginar um futuro alternativo, que não seja nossa própria extinção.” 

Na Europa, há uma sequência de programas de cidades, que se sucedem a partir do tempo de Engels. No início do século XX, o modelo concorrencial ou imperialista chega até a 1ª grande Guerra, realiza-se nesse contexto a urbanização eclética da |Ringsstrasse na Viena, e a implantação do bem articulado Metrô, projetado por Oto Wagner na mesma capital. Em seguida, no entre guerras, emerge nas administrações social-democratas da Europa central ou no socialismo real dos construtivistas russos, uma moradia industrial e padronizada, que faz experiências notáveis, em Viena, Berlim e Moscou. Na Europa Central administrações social democratas debatem a continuidade ou descontinuidade dos empreendimentos, com a cidade pré-existente, tanto no que se refere a escala, como também com relação as técnicas industriais de produção construtiva. No lado soviético, apesar da guerra civil experiências como a da conceituação da moradia e da cidade como “condensadores sociais” (9) são discutidas e implantadas em pequena escala. As experiências dos desurbanistas, ou da cidade dissipada no campo (10), ou ainda dos grandes empreendimentos da indústria de base configuram figurações revolucionárias, onde o espaço anuncia um novo cidadão do socialismo. 


Figura 1: O emblemático conjunto da Ferradura em Berlim do arquiteto Bruno Taut, Berlim 1928-30, 1100 unidades 


Figura 2: O Conjunto do Narkonfim em Moscou, arquiteto Mosei Guinzburg, 1928-32 

O advento do fascismo e do nazismo, desembocando na 2ª Guerra Mundial, suspende todas essas experiências da cidade e da moradia coletiva, insta-se a destruição generalizada. No pós guerra, a Europa elege a regulação keynesiana, que executará a reconstrução dos países europeus, enquanto nos EUA, o New Deal também decreta uma maior regulação da economia liberal. No lado europeu a reconstrução das cidades pelo keynesianismo produz uma efetiva inclusão das parcelas mais precarizadas, destacando se as experiências das Novas Cidades do Reino Unido, a recuperação histórica do centro de Bolonha na Itália, que mantém seus habitantes morando no patrimônio restaurado e a Exposição experimental de Berlim de produção habitacional do IBA Hanswiertel. No lado soviético, com os expurgos de Stálin as vanguardas são silenciadas e emerge uma arquitetura acadêmica com claras analogias com o ecletismo e a utilização de pré moldagem intensiva de concreto armado. Realiza-se na Berlim Oriental, a Karl Marx Alle, uma avenida de cunho haussmaniano, com edifícios de 8 a 11 andares, de claro cunho acadêmico, alinhado ao realismo soviético e em clara contraposição aos edifícios modernistas da Hansviertel na Berlim Ocidental. Em Varsóvia, sede do Pacto dos Países de economia planejada e burocrática ergue-se a torre do Palácio da Ciência e da Cultura, um arranha céu, que permanecerá como prédio mais alto da Europa, até a década de 80 (ver nota 11). No outro lado do Atlântico, nos EUA ergue-se o premiado conjunto habitacional modernista de Pritt Igoe, na cidade de Saint Louis, que receberá vários prêmios do American Institut of Architects (AIA), e que terá um destino macabro na determinação do fim do Movimento Moderno na Arquitetura. 

Nos EUA, a implantação do New Deal produzirá a ideologia macarthista de caça ao pensamento de esquerda, de que na América do Norte não existe classe trabalhadora, mas apenas uma classe média consumista. Contra essa hipocrisia, nos EUA nos anos 60 explodem as lutas pelos Direitos Civis e a constatação de que a permanência da pobreza em alguns rincões persistia pelo desenvolvimento desigual e combinado, já mencionado. É nesse momento, que o já citado e premiado Conjunto de Pritt Igoe em St Louis é implodido por estar completamente dominado pelo tráfico de drogas e pelo crime, determinando aquilo que foi caracterizado como o momento preciso do final do Movimento Moderno na arquitetura, pelo crítico Charles Jencks. No fim dos anos 70, com a crise do petróleo, supera-se o keynesianismo e o New Deal, substituindo-os pelo neoliberalismo da atualidade, que permanece operando até hoje, apesar da crise de 2008. Do lado soviético, no final de década de 80, as seduções consumistas do ocidente fazem desabar o sistema de socialismo burocrático passando desde então a vigorar, um salve-se quem puder geral, competitivo e individualista Todas essas experiências, com a exceção dos períodos entre guerras, o New Deal e o keynesiano do Estado de Bem Estar Social, claramente demonstram uma enorme incapacidade de fazer frente ao acesso à moradia. É sintomático da falta de alternativas e da homogeneização mediocrizada do mundo da arquitetura e do urbanismo, a celebração do programa da torre individualizada, que gestada nos EUA no final do século XIX, na cidade de Chicago, conquista mesmo as sociedades soviéticas1(11), como padrão tecnológico fetichizado, dentro da estética do realismo soviético. A torre empresarial ou habitacional ou mesmo mista segue sendo reproduzida nas mais diversas localidades, apesar de sua clara desvinculação com o território público da cidade, ou com seu impacto ambiental que ultrapassa a escala das possibilidades da arborização urbana. A torre representa na economia política do espaço(12), o programa preferencial dos empreendedores, construtores e investidores, representando para a cidade uma descontinuidade que não impulsiona a interação dialética entre esfera pública e esfera privada ou íntima da família(13), impulsionando a insegurança e violência da cidade atual. 

No Brasil, o período concorrencial se inaugura na República indo até 1930, sendo sucedido pelo período Vargas quando emergem os Institutos de Previdência e Assistência, que empreenderam conjuntos residenciais emblemáticos, como o Pedregulho e o Parque da Gávea do arquiteto Reidy. No período do governo João Goulart 1960-64 entra em debate as reformas de base (agrária e urbana)(14), que serão bloqueadas pelo período da Ditadura Militar, quando emerge o BNH que unifica os institutos de assistências numa carteira unificada. O BNH promoverá na década de 70 o mais intenso programa de remoção de favelas na Zona Sul do Rio de Janeiro, as Comunidades do Pinto, sob palafitas pega fogo e da Catacumba, ambas na borda da Lagoa Rodrigues de Freitas são removidas para locais ermos, como Cidade de Deus (Jacarepaguá) e Vila Nova Aliança (Bangú). Ambos os novos assentamentos serão baseados no princípio; de cada família um lote, sendo entrega aos removidos uma casa embrião, dentro da ideologia da Aliança para o Progresso, que pautava as ações da Ditadura. Na redemocratização, os governos Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique Cardoso realizam muito pouco na área da produção da Habitação de Interesse Social (HIS). Nos governos Lula e Dilma, o volume de HIS é impulsionado, pelo Programa MC. MV, mas repete-se os erros do BNH pela falta de enfrentamento da questão do valor da terra urbana, que apesar dos instrumentos do Estatuto da Cidade não é gestionada pelas administrações públicas, no âmbito municipal, estadual ou federal. Tal situação, implica na realização de grandes conjuntos habitacionais em periferias distantes, onde os promotores e empreiteiros encontram terra barata, mas com absoluta ausência de urbanidade. Mais uma vez, se caracteriza uma transferência de recursos públicos para agentes privados, que enganam o interesse público, entregando moradias onde não há cidade ou urbanidade, penalizando o precariado com imensos custos de deslocamento e de reprodução de sua prole. Ocorre a repetição de implantações, do que hoje representam enormes passivos sociais e ambientais, como os bairros de Cidade de Deus, Nova Aliança ou Vila Kenedy, da década de 60, no âmbito da Aliança para o Progresso com os EUA. Essas implantações, que foram realizados em periferias distantes, e se utilizaram da tipologia da casa embrião, que celebrava a ideologia de cada lote uma família, acabando por se transformarem em territórios da violência e da exclusão. Claramente a situação é consequência já anunciada por arquitetos e urbanistas, da negativa do poder público, municipal, estadual e federal, de criar as condições para que as implantações ocorram onde há urbanidade. 

O déficit habitacional no Brasil e a qualidade de vida na cidade metropolitana do Rio de Janeiro: 

Há na cidade brasileira, no tempo do neoliberalismo, um declínio do valor de uso e uma ampliação desmesurada do valor de troca, na valoração da moradia a partir de sua inserção no imaginário coletivo. O programa de produção de Habitação de Interesse Social (HIS) em massa carrega o nome dramático de “Minha Casa Minha Vida”, como já assinalado, denotando a importância dada a aquisição da casa própria, no inconsciente coletivo. A monopolização do capital imobiliário, das construtoras e das incorporadoras tem determinado um preço médio de venda por metro quadrado alto, que tem afastado parcelas expressivas da nossa população do acesso a casa própria. O déficit habitacional no país é monitorado pela Fundação João Pinheiro de Belo Horizonte, que distingue um déficit quantitativo e qualitativo. A questão do déficit qualitativo é central, pois ela representa a maior parte da carência de moradia no Brasil e representa a inadequação das instalações sanitárias, seja dentro das unidades ou no seu entorno. 

“O déficit habitacional no Brasil, que representa a necessidade de novas unidades, atingiu 5,87 milhões de domicílios, correspondendo a 19,9% da população. Este déficit é composto principalmente por famílias com ônus excessivo com aluguel (3,03 milhões), situações de coabitação (1,36 milhões) e habitações precárias (1,48 milhões)... Além do déficit quantitativo, há o problema da inadequação habitacional, que demanda melhorias nas moradias existentes. No Brasil, 24,89 milhões de domicílios são considerados inadequados (80,1%), devido à carência de infraestrutura básica (14,25 milhões), condições edilícias inadequadas (11,24 milhões) e insegurança fundiária urbana (3,55 milhões).” SILVA, 2025, P. 1 e 2 

A ausência de infraestruturas básicas no ambiente urbano é um pesado impacto sobre a saúde da população brasileira, que se encontra diante de condições de salubridade inadequada, expondo a primeira infância e os mais velhos a doenças que colocam em perigo seu desenvolvimento humano. As crianças de 0 a 2 anos, que possuem nessa época um fundamental desenvolvimento de seu cérebro, e portanto de sua capacidade de cognição a partir da absorção de uma adequada alimentação, são particularmente penalizadas, quando ocorrem doenças como difterias e diarreias. Por outro lado, os idosos com mais de 60 anos submetidos as condições precárias da cidade brasileira reduzem de forma significativa sua expectativa de vida. Os números são expressivos; 24,8 milhões de domicílios nas cidades brasileiras não possuem acesso a infraestrutura básica ou desfrutam de condições edilícias inadequadas e possuem alguma insegurança fundiária. A ausência de banheiros e cozinhas nos domicílios brasileiros mostra-nos muito do caráter do desenvolvimento econômico do país; oitavo ou sétimo PIB do mundo, com uma das piores distribuição de renda, mostrando-nos como esse desenvolvimento foi incapaz de repartir a renda. 

Particularmente, a destinação correta dos esgotos nas cidades brasileiras é mais um crime de lesa pátria, contra a maioria de sua própria população. Segundo dados do Instituto Trata Brasil, 48% da população urbana brasileira não destina de forma correta seus esgotos, seja no âmbito intra moradia ou fora dela. O caso da despoluição da Baía de Guanabara, na cidade do Rio de Janeiro é mais um caso de atendimento dos interesses das construtoras, com claro adiamento e desrespeito pelo interesse público. Segundo dados do próprio Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (DPBG), as 7 Estações de Tratamento de Esgotos (ETEs), planejadas na despoluição já foram executadas, no entanto elas permanecem com seus tanques ociosos, pois as ligações troncais e sub-ramais ainda não foram executadas. É claro e transparente, que as obras de execução das 7 ETEs eram mais confortáveis para as construtoras, pois envolviam canteiros controlados e tapumados, bem como grandes volumes de concreto. Enquanto, as obras de execução dos troncais e sub-ramais para coleta de esgotos nos domicílios envolviam canteiros expostos e baixo custo de faturamento no assentamento de tubos e canalização dos troncos. Fica claro, que a obtenção de balneabilidade nas praias da Baía de Guanabara, tais como São Gonçalo, Itaboraí, Magé, Duque de Caxias e Zona Norte do Rio de Janeiro não seduzem o capital imobiliário, ou as construtoras, e muito menos, nossos gestores públicos. 

A lógica de resguardar lucros volumosos para setores empresariais segue em plena operação também na área de transportes públicos, onde modais de alta capacidade, como trens e barcas são sucateados, enquanto os modais de baixa e média capacidade como ônibus e Bus Rapid Transit (BRTs) recebem recursos vultuosos. A supremacia rodoviarista segue ditando a agenda das administrações públicas, sem que a população tome consciência do imenso prejuízo de suas condições de vida. O campo é importante para garantir melhor qualidade de vida e valorizar moradias nas periferias distantes, mas a naturalização da ampliação do tempo de deslocamento – casa/trabalho e casa/escola – segue deteriorando a saúde e a paciência da população. Particularmente, a cidade metropolitana do Rio de Janeiro apresenta mais uma vez dados revoltantes, que deviam levar seus últimos governantes a prisão. Os especialistas em transporte defendem a ideia de que a eficiência é alcançada por uma rede, onde existem modais de alta capacidade, como barcas e trens, que devem ser complementados pelos modais de baixa e média capacidade, como ônibus e BRTs. Em seu quadrante Oeste e Norte, a cidade metropolitana do Rio de Janeiro possui um sistema de trens urbanos, que irrigava um território expressivos, tendo chegado na década de 60, antes da hegemonia rodoviarista, a transportar 1,2 milhão de pessoas/dia. Hoje esse sistema, que não recebe manutenção e qualquer modernização, desde a década de 60, e que tem sido claramente deixado de lado para privilegiar o sistema sobre pneus (ônibus e BRTs) está transportando apenas 300mil passageiros/dia. As consequências dessa deterioração para núcleos urbanos como a Zona Norte e Oeste da cidade, ou para cidades como Queimados, Nova Iguaçú e Duque de Caxias são sentidas na perda de vitalidade habitacional dessas partes. É preciso afirmar e reafirmar, que esse estado de coisas foi determinado por um planejamento sistêmico de nossas elites endinheiradas, que visa interesses particulares das empresas de ônibus, que muitas vezes lançaram linhas que não o complementam, mas que competem com esse sistema. A destruição do sistema de trens urbanos da antiga Central do Brasil, na cidade metropolitana do Rio de Janeiro nos mostra de forma descarada, a forma de produção, reprodução e gestão do espaço da cidade brasileira. 

Considerações Finais: 

Nos anos 80, em pleno período da redemocratização do Brasil, Carlos Nelson Coutinho lançava; A democracia como valor universal: notas sobre a questão democrática no Brasil, no qual reafirmava um vínculo fundamental entre construção do socialismo e democracia. Composto de 4 ensaios, o autor firmava um objetivo claro; avaliar a relevância da luta democrática para a renovação política econômica e cultural da sociedade brasileira, para a reconstrução do projeto socialista no país. A cidade no Brasil, a partir do caso da cidade metropolitana do Rio de Janeiro, conforme descrito acima, vem sendo administrada por meio de vícios autoritários que concentram renda e afastam do debate parcelas expressivas de sua população. Essa forma de operar determina e impulsiona uma lógica de soterramento dos interesses comuns, por uma gestão intransparente que bloqueia o acesso as informações de infraestrutura urbana, que se constituem no suporte territorial da qualidade de vida. Nesse aspecto, a Questão da Habitação assume importância central, pois o bloqueio a seu acesso determina grande angústia em parcelas expressivas de nossa população, que não percebe a manipulação a que é submetida por interesses particulares. Ampliar a democracia, não apenas representativa mas direta no campo do espaço da cidade pode representar um verdadeiro revolucionamento nas práticas cotidianas da população brasileira. A consciência do espaço urbano na sociedade brasileira precisa ser fomentada, pois a sua intransparência penaliza fortemente o cotidiano de nossa população, afastando-a do Bem Viver. As perversões das decisões tecnocráticas e interessadas de grupos específicos precisa ser submetida ao interesse geral, no sentido da construção de um Comum, que espelhe a resolução do cotidiano com arte e ciência. 

“O comportamento cotidiano do homem é simultaneamente começo e fim de toda atividade humana, isto é, quando se imagina o cotidiano como um grande rio, pode-se dizer que, nas formas superiores de recepção e reprodução da realidade, ciência e arte ramificam-se a partir dele, diferenciam-se e constituem-se de acordo com suas finalidades específicas, alcançam sua forma pura nessa peculiaridade – que emerge das necessidades da vida social ´para então, por consequências de seus efeitos, de suas incidências sobre a vida dos homens, voltar a desembocar no rio da vida cotidiana. Portanto, esse rio é constantemente enriquecido com os resultados mais elevados do espírito humano, assimilando-os a suas práticas cotidianas, e daí voltam a surgir, em forma de questões e demandas, novas ramificações das formas de objetivação superiores. Desse modo, é preciso examinar detidamente as complexas inter-relações entre a consumação imanente das obras na ciência e na arte e as necessidades sociais que despertam ou ocasionam seu surgimento.” LUCKÁCS 2023, P.153

Notas:

1. Interessante assinalar que no período Vargas os diversos Institutos de Previdência de diferentes corporações (bancários, funcionários públicos, comerciários, etc...), que construiram Conjuntos Habitacionais concediam a locação dos imóveis e não a sua propriedade aos moradores. Apenas com a Aliança para Progresso do governo dos EUA é que se impõe a ideia de transformar os moradores em proprietários. BONDUKI, 2014.

2. Pensadores como Carlos Nelson Coutinho, Luiz Werneck Vianna, Leandro Konder, Marcos Del Roio destacam as contradições de uma modernidade, que convive com o arcaísmo ou; “A Modernização sem o moderno” 

3. COUTO, 2021 mostra como os novos empreendimentos no centro da cidade do Rio de Janeiro tenderam a homogeneizar o preço do Metro quadrado de venda, nas mais diversas situações desse contexto.

4. No Brasil, os marcos temporais da emergência do neoliberalismo são mais tardios, e de certa forma adiados por nossa Constituição Federal, artigos 182 e 183, aprovada em 1988. E, pelo Estatuto da Cidade aprovado apenas em 2001, 13 anos após a promulgação da CF, o que denota a luta cultural encarniçada entre Direito de Propriedade e Direito de Moradia, no nosso contexto. 

5. Artigo da BBC Londres, aponta Viena como única capital européia, que controla o preço de seus alugueis; https://www.bbc.com/portuguese/articles/czj7pz3xmdwo, acesso em 14/04/2025. Ou o texto de AYMONINO, 1973.

6. ENGELS, 2015 P.7. Nessa edição consta na orelha da capa, um texto do coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Guilherme Boulos. 

7. Livro de FUKUYAMA, 2015, que a partir de um hegelianismo conservador aponta a vitória do liberalismo sobre as economias reguladas do socialismo real, com a queda do Império Soviético.

8. ZUBOFF 2021, apresenta o preciso diagnóstico de nossa condição contemporânea, sobre carregada de informação, mas sub embasada pela ausência orientadora de uma paradigma teórico.

9. O arquiteto Mozsei Guinsburg, autor do emblemático edifício Narkomfin em Moscou, formula a ideia de que a arquitetura e urbanismo são “condensadores sociais”, isto é, espelham das práticas sociais humanas no cotidiano comunista. O Conjunto Habitacional Narconfim em Moscou, para o Comissariado do Povo das Finanças sintetiza os novos arranjos familiares da nova sociedade. 

10. Karl Marx defendeu em várias ocasiões, que a divisão social do trabalho entre cidade e campo, ocorrida em tempos muito primevos na Pré-História, era uma das primeiras manifestações da dominação do poder nas sociedade humanas. Os desurbanistas russos buscavam a dissipação da distinção entre campo e cidade.

11. Na cidade de Varsóvia, a mais destruída da 2ª Guerra, há o já mencionado Palácio da Ciência e da Cultura, presente de Joseph Stálin para a capital polonesa, que permaneceu até a década de 80, como o edifício mais alto de toda Europa, mostrando-nos o fetiche alienado do desenvolvimento da torre isolada, como marco territorial. A torre isolada segue sendo aplicada como tipologia habitacional multifamiliar, no Rio de Janeiro e Niterói como programa, que interessa apenas ao capital imobiliário. Ver MOREIRA 2024 

12. A conceituação é de CUTHBERT, 2021, que explicita os agentes e interesses especulativos da produção habitacional atual.

13. Nesse sentido a opção do Dr. Lucio Costa, nas superquadras de Brasília, que foi definida com pilotis mais 6 pavimentos, que foi muito questionada pelas empreiteiras de Brasília, determinou o padrão a partir do seu discurso poético, que defendia: “A escala de pilotis mais 6 andares mantém a habitação multifamiliar na escala do grito da mãe, quando chama seus filhos para o lanche da tarde.” COSTA, 1995.

14.  Nesse momento, 1963, há um Congresso Nacional de Arquitetos promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, no Hotel Quitandinha em Petrópolis, que defende a ideia da Reforma Urbana, que relativizava o Direito de Propriedade e propunha que a Urbanização de Favelas deveria ser parte da Política Habitacional do país. O congresso também defende a Reforma Agrária como forma de diminuir a pressão do exôdo rural sobre as cidades. Apenas em 2001, com o Estatuto das Cidades o país alcança uma regulação que adequa o Direito de Propriedade ao Direito de Morar, no entanto parte dos instrumentos dessa lei não são aplicados pois a propriedade segue sendo um valor intocável na prática na sociedade brasileira.

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ZIZEK, Slavoj – O sublime objeto da ideologia – Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2024 

ZUBOFF, Shoshana – A era do Capitalismo de vigilância: A luta por um futuro humano na nova fronteira do poder – Rio de Janeiro, Intrínseca 2021

sábado, 31 de maio de 2025

A PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO DA CIDADE BRASILEIRA: SUBALTERNIDADE PERIFÉRICA (SESSÃO TEMÁTICA: ST 9 – CIDADE, HISTÓRIA E CULTURA EM DISPUTAS)

 Pedro da Luz Moreira

Escola de Arquitetura e Urbanismo e Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense |daluzmoreira.pedro@gmail.com

ST 9 Cidade, história e cultura em disputas

Resumo:  A questão central do artigo aqui apresentado é a partir dos pressupostos teóricos de Antônio Gramsci, e seus atualizadores na contemporaneidade mais recente, no Brasil e no mundo, entender a questão da subalternidade, como visão de mundo, condicionadora e determinadora da produção e reprodução da cidade brasileira. Os exemplos selecionados de nossa história, no que se refere a articulação de movimentos sociais insurgentes, organizados para requalificar as condições espaciais dos grupos subalternos nos mostra como o esforço de invisibilização de nossas elites tem sido até agora vitorioso. Essa condição deriva de uma inserção periférica de nossas elites, que demonstra de forma recorrente uma incapacidade de entender o sistema das finanças mundiais, como condicionador de sua forma de pensar, sempre submissa às determinações do sistema globalmente engendrado. O reconhecimento dessa derrota, não significa, no entanto a sujeição às condições impostas pelo pensamento conservador, mas a compreensão de que o mapa das rebeliões e insurgências sociais precisam ser visibilizados e entendidos, para possibilitar a construção de uma espacialidade determinada pelas demandas moleculares e pulverizadas produzidas de baixo para cima. A mudança estrutural não se prende a uma pré concepção de um desenho ou modelo, mas celebra o processo de escuta do precariado, entendendo-o como única possibilidade de passar a ter um desenvolvimento social e econômico mais inclusivo. Se ao final são desenhados e explicitados uma série de princípios, eles devem ser entendidos como uma estratégia de provocação, que inicia um debate, mais do que um modelo.

Palavras-chave:  Cidade; Subalternidade; Equidade; Participação; Pulverização.


 

Title: THE PRODUCTION AND REPRODUCTION OF THE BRAZILIAN CITY: PERIPHERAL SUBALTERNITY

Abstract: The central issue of the article presented here is to understand the issue of subalternity, based on the theoretical assumptions of Antonio Gramsci and his recent followers in Brazil and the world, as a worldview that conditions and determines the production and reproduction of the Brazilian city. The examples selected from our history, regarding the articulation of insurgent social movements organized to requalify the spatial conditions of subaltern groups, show us how the effort to make our elites invisible has been successful so far. This condition derives from the peripheral insertion of our elites, which repeatedly demonstrates an inability to understand the global financial system as a conditioner of their way of thinking, always submissive to the determinations of the globally engendered system. The recognition of this defeat does not mean, however, submission to the conditions imposed by conservative thinking, but the understanding that the map of social rebellions and insurgencies needs to be made visible and understood, to enable the construction of a spatiality determined by the molecular and pulverized demands produced from the bottom up. Structural change is not tied to a preconception of a design or model, but celebrates the process of listening to the precariat, understanding it as the only possibility of achieving more inclusive social and economic development. If in the end a series of principles are designed and explained, they should be understood as a strategy of provocation, which initiates a debate, more than a model.

Keywords: City; Subalternity; Equity; Participation; Spraying..

Título: LA PRODUCCIÓN Y REPRODUCCIÓN DE LA CIUDAD BRASILEÑA: SUBALTERNIDAD PERIFÉRICA

Resumen: La cuestión central del artículo presentado aquí es, a partir de los presupuestos teóricos de Antônio Gramsci y sus actualizadores en la época contemporánea más reciente, en Brasil y en el mundo, comprender la cuestión de la subalternidad, como una cosmovisión que condiciona y determina la producción y reproducción de la ciudad brasileña. Los ejemplos seleccionados de nuestra historia, relacionados con la articulación de movimientos sociales insurgentes, organizados para recalificar las condiciones espaciales de grupos subordinados, nos muestran cómo el esfuerzo por invisibilizar a nuestras élites ha tenido éxito hasta ahora. Esta condición deriva de una inserción periférica de nuestras élites, que demuestra repetidamente una incapacidad para comprender el sistema financiero mundial, como un condicionante de su forma de pensar, siempre sumisa a las determinaciones del sistema engendrado globalmente. El reconocimiento de esta derrota, sin embargo, no significa el sometimiento a las condiciones impuestas por el pensamiento conservador, sino la comprensión de que el mapa de las rebeliones e insurgencias sociales necesita ser visibilizado y comprendido, para permitir la construcción de una espacialidad determinada por factores moleculares y demandas pulverizadas producidas desde abajo hacia arriba. El cambio estructural no está ligado a una preconcepción de un diseño o modelo, sino que celebra el proceso de escuchar al precariado, entendiéndolo como la única posibilidad de lograr un desarrollo social y económico más inclusivo. Si al final se diseñan y explican una serie de principios, deben entenderse como una estrategia provocadora, que inicia un debate, más que un modelo.

Palabras clave: Ciudad; Subalternidad; Equidad; Participación; Pulverización..

 INTRODUÇÃO

O presente texto aborda as conexões existentes entre o espaço construído pelo homem no Brasil (cidades e sua arquitetura), uma parte da filosofia contemporânea, e o termo Subalternidade, como um termo caracterizador da cultura brasileira. Essas anotações fazem parte de uma série de manuscritos que todo processo de montar uma aula disparam no seu professor, no âmbito da graduação, e na Pós graduação em Arquitetura e Urbanismo. Elas tentam explicitar a complexa relação existente em nossa sociedade entre uma visão de mundo (Weltanschauung) particular e a responsabilidade de uma formação inaugural e continuada para os estudantes e profissionais que militam no ofício crítico de produção do abrigo e da cidade, a arquitetura e urbanismo. A disponibilização desses apontamentos num artigo representam uma tentativa de sistematização de uma teoria, que parte de minha tese de doutorado defendida em 2007 para obtenção do título de Doutor, que pretendia compreender a forma de produção e reprodução da cidade brasileira, a partir dos conceitos de plano, projeto, ideologia, hegemonia e subalternidade. Essas reflexões e questionamentos sobre as formas de desenvolvimento, produção e reprodução da cidade brasileira, que derivam de um projeto exclusivista de suas elites, que está no cerne da sua própria sociedade. A acepção da Subalternidade, parte de um dos maiores dramaturgo de nosso país, Nelson Rodrigues, que num de seus lampejos críticos-provocativos determinou num sensível diagnóstico, a alma brasileira;

Por "complexo de vira-lata" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima. RODRIGUES, https://pt.wikipedia.org/wiki/Complexo_de_vira-lata

Além do genial dramaturgo, parte-se também do filósofo marxista e italiano Antônio Gramsci, que nasceu na Sardenha em 1891 e morreu em Roma em 1937, com apenas 46 anos, e, que apesar da pouca idade possui potentes reflexões para o nosso mundo contemporâneo sobre a subalternidade, notadamente no Quadern  25, que recebe o título;  Às Margens da História (História dos Grupos Sociais Subalternos)”. Além dele apresento os desdobramentos de seu pensamento, que chegaram a nós pelas reflexões de diversos pensadores atuais, que se auto denominaram como participantes de diversos grupos de pesquisas, denominados, subaltern studies, e que ancoram suas teorias nos seus pensamentos. Além do embasamento teórico de Gramsci são apresentados momentos de nossa história, que nos mostram o esforço de nossas elites para apagá-los. Logo após, busco explicitar de forma muito sucinta, a maneira da inserção de nosso desenvolvimento econômico social no contexto global do Ocidente, apontando como o capitalismo apresenta no longo prazo um desenvolvimento cíclico e repetitivo, que retorna de forma recorrente a tendências especulativas. Essa última, rápida argumentação está embasada na teoria desenvolvida por autores como ARRIGHI 1996 e PIKETI 2020, que compreendem o mundo como um sistema governado pelas altas finanças, que pautam nosso cotidiano, e portanto a construção de nossas cidades e moradias. Ao final, são apresentados quatro princípios que deveriam passar a pautar a produção e reprodução da cidade brasileira. Esses quatro princípios devem ser vistos como uma provocação, que na verdade deveria iniciar um debate sobre os rumos da ocupação do espaço em nosso país, que na verdade precisa encontrar formas possibilitadoras do pleno engajamento de sua população.

ANTÔNIO GRAMSCI:

A biografia de Antônio Gramsci apresenta um vínculo forte com os grupos sociais subalternos, uma vez que ele próprio nasce e aí permanece na rural, arcaica e pobre Ilha da Sardenha, migrando em 1911, com vinte anos, para a desenvolvida, industrializada, urbana e rica Turim, no norte da Itália. Além disso Gramsci era filho de pais muito pobres, teve de trabalhar desde criança, seu pai foi preso ainda na sua infância, tendo a família que se sustentar com os trabalhos de costura de sua mãe. Ainda muito cedo teve um problema de saúde muito sério, que foi uma tuberculosa óssea, que representou uma fragilidade física para toda sua vida. Apesar, disso tudo Gramsci sempre demonstrou uma grande capacidade de estudo, pesquisa e conexão de assuntos, recebendo uma bolsa de estudos para cursar na universidade de Turim, a escola de letras e línguas na cidade de Turim.

Turim era um local que concentrava fábricas como a FIAT e a LANCIA, que atraiam imensos contingentes de operários e nos primeiros anos do século XX concentrou importantes movimentos dos Conselhos de Fábrica, que lutavam pela auto-gestão dessas industrias. O sistema de pensamento de Gramsci terá sempre um sentido articulador das lógicas espaciais, econômicas, sociais e culturais, no qual está inserido, que se articulam numa complexidade crescente. Num sistema de centros hierarquicamente articulados, numa estrutura de dependências mútuas, aonde a relação entre hegemonia e subalternidade embasa e organiza processos complexos de auto-identidade, que partem de centralidades e periferias interdependentes. A subalternidade da Itália nesse sistema mundial, a minoridade da sua burguesia frente as burguesias; inglesa, americana e francesa, sua declaração de dependência do Estado Nacional, a fraqueza do liberalismo italiano frente a essas outras três nações. A posição da Sardenha e a parte meridional da Itália agrária, católica e arcaica, frente ao norte industrializado, urbano e moderno. O marco referencial será sempre a história particular desses diferentes lugares, que a partir da transformação moderna da constituição da Unidade Nacional inclui ou exclui uma participação maior das suas populações, que assumem um caráter conformador de completude ou incompletude.

“Da Sardenha, metade agrária, camponesa e pobre do Piemonte ao Mezzogiorno todo colonizado e feito periferia do norte do reino da Itália. Mas, a rigor, toda a Itália já era periferia da França, pois o Risorgimento italiano, como revolução burguesa com participação difusa das massas, como revolução passiva, fez da Itália uma região periférica e subalterna, de resto como toda a região mediterrânea. Em outro círculo, a própria Europa corre o risco sério de se tornar um centro periférico diante da ascensão dos Estados Unidos.” ROIO, Marco del 2017 página10

Nesse desenvolvimento, a busca por um desenvolvimento justo e equilibrado, que distribua benesses de forma mais equânime entre precariados e empoderados é o objetivo da estruturação do pensamento gramsciano. Uma forma, que entende a autoexpressão de cada cidadão como um processo de alcance da maioridade enquanto a capacidade de autodeterminação, e questiona a fórmula estratificada do “status quo” atual, cindido entre representantes e representados. O desenvolvimento histórico dos objetivos a serem alcançados, nesse sistema de pensamento, possui um profundo vínculo com o cotidiano prático e efetivo - filosofia da práxis - dos subalternos, que precisam ser levados a se diferenciar como os grandes prejudicados, pelo funcionamento geral da sociedade, e ganhar consciência dessa condição. A concentração de renda contínua na minoria da população, que desfruta da exclusividade da propriedade e a partir daí opera sua manutenção deve ser justificada por uma narrativa ou “ideologia”. Para Gramsci, o termo “ideologia” assumirá um caráter mais neutro, como um sistema de pensamento que estrutura o agir de qualquer pessoa, havendo ideologias progressistas e conservadoras, que lutam pela conquista do metabolismo social, na medida em que recebem a adesão por um maior número de defensores. No entanto, não significa que ela possa ser livre das determinações e interesses sociais dos diferentes grupos sociais, que sempre desenvolverão vínculos profundos com sua forma de pensar. A perspectiva de Gramsci é a de impossibilidade de libertação de qualquer agente das amarras ideológicas, estando todos os grupos sociais condicionados por suas determinações. Essa forma de conceber o conceito de “ideologia” não ficará restrito aos gramscianos, mas contaminará diferentes correntes, inclusive em nosso mundo contemporâneo.

“Desse modo, toda época produz um conjunto de discursos e ideologias contraditórios que visam legitimar a desigualdade tal como ela existe ou deveria existir e descrever as regras econômicas, sociais e políticas que permitem estruturar o todo.” PIKETI, 2020 pág.11

Esse tipo de pensamento, que não se conforma com a forma de operar do “status quo” do poder instituído, produzindo de forma contínua uma massa de excluídos, que precisa ganhar consciência de sua condição de subalterno. Em 1919, Gramsci funda com Palmiro Togliatti a Revista “L´Ordine Nuovo”, um periódico que discute política, cultura e sociedade pretendendo pelo didatismo atingir os temas e as preocupações desse mesmo precarizado. Em 1926, logo após ser eleito deputado pelo Partido Comunista Italiano (PCI) pelo Vêneto é preso pela polícia de Mussolini, que havia tomado conhecimento da capacidade do jovem sardo, quando ainda militava no Partido Socialista Italiano (PSI). Gramsci ficará preso nos cárceres do fascismo, legando uma reflexão importante para nossa contemporaneidade, nos seus apontamentos nos “Quaderni di Carceri”. Apesar de marxista, Gramsci critica fortemente o positivismo do marxismo da 2ª Internacional, que desde o advento da Revolução Russa de 1917 havia se restringido a um economicismo redutor, se aproximando muito dos questionamentos de Rosa Luxemburgo, a líder polonesa fundadora da Liga Spartakus na Alemanha, de então. O questionamento de Gramsci envolve sempre uma complexa interação dialética entre; Revolução-Ruptura, Reforma-Gradualismo, diferenças históricas entre Oriente e Ocidente, Estado e Sociedade Civil, Ideologia e Hegemonia. Por exemplo, a construção da hegemonia envolve um complexo gradualismo entre Coerção e Convencimento, onde existiria na relação entre representados e representantes um movimento que variava da submissão coercitiva unilateral até a legítima aceitação da representação. Um movimento entre a opressão supressora da identidade e a aceitação participativa da representação, nessa última condição se localizava a legitimidade efetiva da democracia. Questões como a centralidade e a subalternidade eram trespassadas por discursos, persuasão e convencimento dos diversos atores, que atingem a maioridade como representados, na medida em que controlam seus representantes. Há implicações claras nessa forma de raciocínio em todos os relacionamentos que envolvem o poder e seu exercício, aonde se concebe a História, como ciência de aprendizado contínuo, aonde a autoidentidade depende da formulação de uma narrativa de autoconstrução. Há também no campo da conformação do plano e do projeto, uma possível analogia entre as condições de usuários, desenhistas ou planejadores e o Estado, que na medida que se posicionam de forma equânime e transparente desenvolvem os desejos de forma madura e adequada. Na Itália, com a presença indelével da Igreja, a política como participação e construção coletiva era no tempo de Gramsci bloqueada pela orientação do abstencionismo por parte do catolicismo.

“Escreve Gramsci no Caderno25, que em seguida ao abstencionismo dos católicos da vida política, podia nascer entre os camponeses uma tendência subversiva-popular-elementar as massas rurais na ausência de partidos regulares, cercavam-se de dirigentes locais que emergiram dela própria, misturando a religião e o fanatismo ao conjunto das reinvindicações...”  ROIO 2017 página28

A consciência de Gramsci do desenvolvimento capitalista, sempre nos remete ao confronto entre o arcaico e o moderno, o subalterno e o dominante, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar e interessada. Mas logo após sua chegada a Turim, Gramsci circulava no meio sindical, como produtor de ensaios e textos para jornais ligados ao Partido Socialista Italiano (PSI), ao mesmo tempo, era demandado pela Faculdade de Letras de Turim para temas acadêmicos, como os estudos de glotologia[1] do professor Matteo Bartolli, uma referência dos neolinguistas. Também a língua, sua evolução e seu desenvolvimento irão sempre constituir para Gramsci como um ordenamento estruturado de forma molecular e dispersa, e de baixo para cima, com transformações contínuas, que lhe permitiam analogias com a política. Além disso, a questão da língua sempre esteve nas reflexões de Gramsci relacionada à organização da cultura e à função dos intelectuais orgânicos das diferentes classes sociais. Foi exatamente essa celebração do acaso no devir histórico, que sempre mobilizou a curiosidade de Gramsci, e sua capacidade de pensar estratégico, aonde a pretensão ao controle total, já denotava sua crítica aos processos revolucionários violentos. E, as formulações posteriores da distinção entre guerra de posição e guerra de manobras, e o próprio conceito de hegemonia, que dinamiza a ideologia como instrumento efetivo de ação no cotidiano. Mas, outro professor, que incentivou também Gramsci ao ensaísmo foi Umberto Cosmo, livre-docente de Literatura Italiana, que incentivou-o a escrever sobre Maquiavel desde 1917, buscando uma ponte entre a cultura e a política, que tanto seduzia o jovem sardo. Nesse sentido, sua simpatia pela ação de ruptura das vanguardas culturais, que contaminavam o ambiente italiano do início do século XX é apontado sempre com destaque de sua vivacidade intelectual, além de um traço de pertencimento geracional. A revista “La Voce” de caráter burguês e ”L´Ordine nuovo” fundado em 1919, da qual fazia parte mostram esse esforço de tentar dar agilidade e vivacidade à acadêmica e “balofa cultura italiana”, nas palavras do próprio Gramsci. Percebe-se nas posições do filósofo da Sardenha, já na sua juventude um profundo vínculo com a cultura humanista italiana, que muito além da política constroe uma conexão entre vida cotidiana e estratégia de construção socialista. Uma continuidade didática, e que celebra na atividade política uma capacidade pedagógica de constante aperfeiçoamento, cada vez mais distante do idealismo, fazendo um enorme esforço em direção ao materialismo e ao pragmatismo.

"Em 1913, nos meses de interrupção da atividade universitária, Gramsci pode assistir na sua ilha à campanha para as primeiras eleições com sufrágio semiuniversal[2]  e dela retirou uma impressão muito viva da eficácia da política como fator de mobilização e transformação das massas camponesas, admitidas pela primeira vez ao exercício do voto. Em setembro, na esteira das eleições, realizou seu primeiro ato político público, aderindo ao grupo de ação e propaganda dos interesses da Sardenha, de inspiração antiprotecionista, que se constituira no verão. São particularidades de certa importância, porque nos conduzem ao tema da desprovincialização e nos ajudam a entender a natureza do processo que se realizou no espírito do jovem sardo. A inscrição de Gramsci no PSI é parte integrante de sua nacionalização; com tal ato Gramsci não cortava as raizes territoriais, mas especificava a dimensão intelectual e política na qual buscaria a explicação e perseguiria a solução para as angústias e os problemas específicos da Sardenha, lugar originário e indelével da sua tomada de consciência dos antagonismos sociais." RAPONE 2014 p. 63 e 64 

Gramsci também construirá um forte vínculo entre linguagem e forma de estruturar o pensamento, negando de forma enfática o naturalismo, o economicismo e o mecanicismo, que imperava nos meios marxista do início do século XX. Mas ao mesmo tempo valorizando de sobremaneira a forma como a linguagem se estrutura, possibilitando a criação, a reformulação e a revolução dentro de parâmetros e regulações socialmente introjetadas em cada indivíduo. Para Gramsci, o estudo e o aprofundamento no fenômeno da linguagem sempre será proveitoso, reunindo criatividade e compreensão socialmente compartilhada, que na verdade impulsionam um devir histórico real e apartado do idealismo. Na questão da lingua internacional, o Esperanto, Gramsci sem dúvida já celebrava a internacionalização da solidariedade entre despossuídos, mas reafirmava a presença da necessidade pulverizada e molecular, que criaria as condições para a emergência da nova língua a partir do cotidiano, e não por decreto. Há nas referências linguísticas de Gramsci uma constante menção às energias sociais livres, que nunca irão parar de se desenvolver, fazendo pouco caso das narrativas que pensavam num estágio último e definitivo das contradições sociais, que para ele jamais cessariam. Há também aí, uma estratégia de combate ao capitalismo monopolista concentrador, que na Itália de então já operava procurando pautar os interesses gerais de forma unívoca e unidirecional, restringindo os interesses moleculares e pulverizados dos diversos agentes. A questão claramente entendia as sociedades ocidentais, com suas organizações da sociedade civil atuando de forma molecular, com uma pluralidade de interesses, com representações diversificadas que eram diferenciadas das sociedades orientais autocráticas e autoritárias, profundamente centralizadas.

“Gramsci sempre irá celebrar esse caráter indomável e avesso ao autoritarismo, que a língua carrega, como no caso da unidade linguística da Itália, proposta em seu tempo a partir do dialeto da toscana, proposta por Manzoni, ou no caso da adoção do Esperanto como facilitador da comunicação internacional. O linguista e filósofo sardo irá repelir com veemência a imposição de cima para baixo, sobre o argumento de que "a linguagem, ainda antes de mecanismo comunicativo, é produto em contínuo devir." RAPONE 2014 página56. 

Assim como, a linguagem, a cidade e a arquitetura, que é uma necessidade humana difundida e presente em toda a humanidade, afinal o homem em suas diversas culturas produz seu próprio abrigo, e não reconhece no planeta e no seu ambiente, tal qual está constituído, um acolhimento adequado. Afinal, existe a produção da arquitetura culta dos arquitetos, e aquela produzida pela autoconstrução, pela necessidade do abrigo, aonde as referências construtivas estão presentes, assim como na língua. Na historiografia da cidade e da arquitetura há sempre uma diferenciação entre os monumentos e as áreas habitação, onde o cotidiano, a reprodução da vida em suas necessidades objetivas se manifesta. Essa condição, de autorreprodução das técnicas de construção da sua própria sobrevivência se dissemina entre as pessoas conforme o vocabulário, que dominam, seja na materialidade disponível, ou na parcela aonde estão autorizados a realiza-la, o que vincula de forma definitiva, a linguagem à cultura do construir, que sempre tem profundas conexões com o lugar e com o tempo. Na materialidade disponível, nas tecnologias de domínio comum, na acessibilidade social do construir O que também constitui e está constituído na moradia, na cidade, na distribuição das infraestruturas, que nunca é a mesma em todos os lugares, justamente em função das variações dessa linguagem do construir, tanto no espaço, como na história.

"Mas aqui quem se pronuncia não é só o discípulo de Bartoli: é também o militante político para o qual opor-se ao esperanto equivale a declarar-se 'revolucionário' e 'historicista': de fato, significa afirmar que na base do devir histórico está 'a atividade das energias sociais livres', excluindo as utopias - isto é, a pretensão de buscar projetos abstratos, ao mesmo tempo arbitrários e ilusórios, sobrepostos ao agir dos homens - e combatendo a ideia de que o movimento da vida e da história, entendido por Gramsci como perpétuo 'fluir de matéria vulcânica liquefeita', possa atingir um estágio último e definitivo, porque hipoteticamente perfeito: 'Por isso abaixo o esperanto, tal como abaixo todos os privilégios, todas as mecanizações, todas as formas definitivas e enrijecidas de vida, cadáveres que empestam e agridem a vida em devir’” RAPONE 2014 página57

Aqui há uma profunda vinculação entre espaço nacional, esforço particular e individual, construção de uma mentalidade coletiva solidária, identidade linguística e cultural, consciência e determinação, particularidades que também estarão presentes na cidade e na arquitetura. Cosmopolitismo e Localismo. A ideia do Bem Viver, dos padrões socialmente compartilhados do que é a estruturação do território, da cidade e do habitar, que acaba sendo hegemonizado por representações impostas e manipuladas pelas classes dominantes. O sistema gramsciano de pensamento está fortemente estruturado em torno das dimensões da linguagem, do conceito de centro, periferia e de hierarquia, bem como a ideia de espacialidade e temporalidade diversificadas, que geraram especificidades, que precisam ser estudadas e entendidas. Tudo isso configura um instrumental importante para a compreensão da cidade e da arquitetura no nosso mundo contemporâneo, de nossa própria capacidade de autoidentificação como povo e cultura. Existe a coerção da hegemonia dominante, que será sempre a ideologia da classe dominante, mas também existe a potência das periferias ainda invisíveis e silenciadas, prontas, no entanto a ganharem sua autoexpressão, na medida em que promovem sua sobrevivência. A emergência das linguagens subalternizadas, invisibilizadas e silenciadas dependem da conquista e da formulação de sua auto-identidade, que não lhe será dada, mas precisa ser conquistada.

"O povo italiano, há cinquenta anos, não existia, era só uma expressão retórica, Não existia nenhuma unidade social na Itália, existia uma unidade geográfica. Existiam milhões de indivíduos dispersos no território italiano, cada qual vivendo para si mesmo, preso no seu torrão particular; ninguém sabia da Itália, cada qual falava um dialeto particular, acreditava que todo mundo estava limitado ao horizonte de sua aldeia. Conhecia o coletor de impostos, conhecia o carabineiro, conhecia o juiz e o tribunal: sua Itália. E, no entanto, esse indivíduo, muitos destes milhões de indivíduos superaram este estágio particularista, formaram uma unidade social, sentiram-se cidadãos, sentiram-se colaboradores de uma vida, que saia do horizonte da sua aldeia, que se estendia por espaços cada vez mais amplos do mundo, que se estendia ao mundo inteiro.... Ele fez com que um camponês da Puglia e um operário de Biella falassem a mesma língua, passassem, tão distantes, a se expressar de modo igual em relação ao mesmo fato, a dar um juízo igual sobre um acontecimento, um homem..." RAPONE 2014 páginas 66 e 67

Assim, nessa condição de subalterno no espaço social da Itália, Gramsci construirá uma das reflexões mais potentes do nosso tempo, aonde o sistema hierárquico de dominação é uma presença indelével, mas também uma possibilidade de transformação. Sua quase veneração pelo “Americanismo” e “Fordismo”, como inovações do capitalismo nos EUA, reconhecendo ao mesmo tempo maior liberdade das amarras da história européia, e mais dominação e exploração por sua eficiência de contornar o enfrentamento de classe, recalcado pela negação da alcunha de “operário”, soterrada pela conquista da denominação de “classe média consumidora”. A minoridade da burguesia italiana frente a inglesa, americana e francesa, sua permanente dependência do Estado Nacional, a fraqueza do liberalismo italiano frente a essas outras três nações vem da incompletude da sua reunificação (Risorgimento), sem a participação popular, numa transformação feita por cima com as elites temendo sempre a explosão das massas. A posição da Sardenha e a parte meridional da Itália agrária, católica e arcaica, frente ao norte industrializado, urbano e moderno. A reflexão de Gramsci terá sempre esse componente histórico espacial e cultural, que identifica especificidades, mapeia suas potencialidades e problemas, buscando sempre a estratégia da transformação. Mantendo sempre um otimismo propositivo; “Pessimismo da crítica e otimismo da práxis.” Há uma consciência do desenvolvimento capitalista, que sempre nos remete ao confronto-complementariedade entre o arcaico e o moderno, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar. Essa condição explica muito da nossa modernização no Brasil, sempre incompleta necessitando de forma contínua do arcaico, do precarizado. A questão dos intelectuais orgânicos, que nascem das condições objetivas da existência do precarizado, e que conseguem superar a sobrevivência, problematizando as razões de sua existência limitada. Capacidade de formulação de uma narrativa auto descritiva; Identidade e Representação. No campo do debate dos intelectuais orgânicos e dos intelectuais tradicionais, que no Brasil podem ser representados pelas trajetórias; de Marielle Franco, uma liderança orgânica da Favela da Maré, e a figura de Antônio Cândido, um intelectual paulista de grande abrangência e de cultura universalista, com amplo acesso à cultura e ao conhecimento, egresso da possibilidade conhecimento dado por sua condição de classe

“...processo histórico de formação das diversas categorias de intelectuais, que é observado em todo grupo social, por nascer na base originária de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe conferem homogeneidade e consciência de sua função no campo econômico.” GRAMSCI 2001, p.56

A questão das vivências como construtoras de narrativas, auto descritivas, das políticas de identidades do mundo contemporâneo possuem um grande vínculo com a ideia de intelectual orgânico de Gramsci. No sentido que a tarefa inicial de todo pensador seria a capacidade de se auto-representar, como uma experiência, que é também um saber a ser compartilhado por todos. Nesse sentido, o conhecimento assume uma outra dimensão, que considera as diversas vivências como saber, que ao ser compartilhado ilustra a todos. A humanidade se esclarece na medida em que toma conhecimento de sua diversidade e mistura, fazendo-nos relativizar nossos valores e crenças. Gramsci mantém viva a ideia advinda do marxismo do cosmopolitismo a ser compartilhado por todos que se ilustram com a inserção das novas narrativas, dando possibilidade de construção de uma História da |Humanidade. No entanto, ele reconhece a presença do conflito, do pensamento hegemônico, que é sempre o da classe dominante, que jamais cederá em sua condição de coerção e domínio. A capacidade de superar esse estágio não é encarado como um momento único e definitivo, mas um processo contínuo de afirmação de um conflito inacabável no seio da humanidade. A auto-organização da própria cultura é função dos intelectuais orgânicos das diferentes classes sociais, que conferem a auto-construção de sua própria identidade.. 

“Mas todo grupo social ao emergir da história da estrutura econômica, encontra, ou encontrou na história que desenvolveu até então, categorias intelectuais pré existentes, as quais se apresentam como figuras de uma continuidade histórica ininterrupta, não posta em discussão nem pelas mais complexas mudanças sociais e políticas. Desde os eclesiásticos, monopolizadores por longo tempo de alguns serviços essenciais até Croce que se percebe mais ligado a Aristóteles do que a Agnelli.” GRAMSCI 2001, p. 184

Gramsci entenderá como a função central do intelectual orgânico; organizar e conectar formas peculiares e historicamente determinadas nas próprias narrativas do grupo, superando a aparência dos interesses corporativos e se mimetizando com aspirações gerais humanas para ter sucesso nos processos de produção da hegemonia. A pergunta de Gramsci é; “quais são os limites máximos dentro dos quais é possível compreender e colocar a noção de intelectual?” Reconhecendo a dificuldade para se identificar um critério certo e eficaz, Gramsci identifica o erro metódico mais difuso, que busca no intrínseco da atividade do intelectual, isto é em sua qualidade de pensamento. Quando na verdade, tal caráter deve ser buscado no agrupamento que o personifica, que desvenda seus interesses práticos e objetivos, sua própria autoconstrução como sujeito. Tal perspectiva aponta para a possibilidade de universalização para toda humanidade do trabalho intelectual, a qual deveria ser acessível a todos, humanizando nossas existências. O exemplo clássico foi a superação pela burguesia da argumentação instituída no mundo de então da representação da nação pelo rei, ou por uma linhagem familiar, que passa a ser substituída pela competição eleitoral, que para não representar uma mudança ampla se restringiu aos critérios de eletividade do voto, sempre bloqueando a universalização do sufrágio ( apenas para: proprietários, alfabetizados, homens, etc...).

“A relação entre intelectuais e produção não é imediata, como acontece para os grupos sociais fundamentais, mas é mediada, e é mediada por dois tipos de organização social; a) pela sociedade civil, isto é, pelo conjunto de organizações privadas da sociedade, b) pelo Estado.” GRAMSCI 2001, p.138

O Caderno 25 faz uma reflexão sobre um período da História Italiana, da sua unificação tardia no século XIX, denominado o Risorgimento da Itália, no qual Gramsci claramente compara o processo de emergência do Estado Nacional no seu país, com as revoluções na Inglaterra (1688), EUA (1775-83), e França (1789-99), identificando uma reparação conservadora entre as massas e as lideranças. Na verdade Gramsci identifica uma minoridade nas massas e elites italianas, que ao serem simplesmente conduzidas e condutoras exclusivas não haviam feito o esforço de autoidentificação, que ele percebera nos casos da Inglaterra, EUA e França, que portanto se auto responsabizaram e ganharam visibilidade. Desenvolvendo uma relação complexa (histórica e geográfica) em relação ao par; hegemonia/subalternidade, não apenas econômica, mas também cultural e social.

“Nós não conhecemos a Itália. Pior ainda: faltam-nos os instrumentos adequados para conhecer a Itália como ela realmente é. Portanto, nos encontramos na quase impossibilidade de fazer previsões, de nos orientarmos...Não existe uma história da classe operária italiana. Não existe uma história da classe camponesa...” GRAMSCI 2001 p. 143

ANTÔNIO GRAMSCI E SEUS DESDOBRAMENTOS CONTEMPORÂNEOS:

Nesse sentido, o pensamento gramsciano gera em nossa contemporaneidade uma série de pensadores atuantes, que assumem sua filiação de forma explícita, pensando a partir de periferias diversas, que produzem uma grande variedade de construções. Os desdobramentos dessa reflexão terão um importante papel na emergência de identidades variadas, que possibilitarão lutas e conquistas variadas. É importante assinalar a mobilização e o engajamento dessas lutas muitas vezes giram em torno da espacialidade, da construção de um lugar, denunciando condições de exclusão a partir de suas condições físicas. O primeiro dos pensadores a ser mencionado é o historiador Indiano Ranajit Guha (1923-), que estabelece com grande pioneirismo na Universidade Sussex, na Inglaterra um grupo de pesquisadores em 1959, denominado “Subaltern Studies”. No qual desenvolve uma abordagem anti essencialista e multipolar, claramente baseada em Gramsci. A segunda menção é a pesquisadora indiana, Gayatri Chakravorty Spivak (1942-), que desenvolve nos EUA, na Universidade de Columbia, associada ao grupo do “Subaltern Studies,” escrevendo o livro “Pode o subalterno falar?” (versão em inglês 1988 e português em 2010-UFMG), usando Gramsci e o filósofo franco-magrebiano, Jaques Derrida (1930-2004). Ela é crítica literária, sendo sua tese de doutorado sobre o poeta irlandês Yeats, orientada pelo renomado Paul de Man. SPIVAK 2010 diferencia; o falar por, do representar alguém. Essas propostas claramente partem do Caderno 25 dos “Quardeni. di Carcieri” de Gramsci, um dos poucos com título, que recebe clara denominação de; “Às margens da História: História dos Grupos Sociais Subalternos”

"Sua crítica [de Spivak], de base marxista, pós-estruturalista e marcadamente desconstrucionista, frequentemente se alia a posturas teóricas que abordam o feminismo contemporâneo, o pós-colonialismo e, mais recentemente, as teorias do multiculturalismo e da globalização.“  ALMEIDA, Sandra Regina Goulart (UFMG – tradutora) 

No Brasil, há uma grande diversidade de gramscianos, começando por; Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), o tradutor dos  Quaderni di Carcere” formulador de um dos mais importantes artigos para a esquerda brasileira; “A democracia como valor universal” no final dos anos 70, que propunha se afastar das formas de conquista violenta do poder, e é fortemente influenciado pelas posturas do PCI de Enrico Berlinger, numa linha direta com Gramsci. Outro pensador brasileiro, de vertente gramsciana é Leandro Konder (1936-2014) filósofo e professor da UFF e da PUC-Rio, escreveu a “Questão da Ideologia”, no qual percorre a abordagem de uma série de pensadores sobre a estruturação da compreensão do real, e desse tema tão complexo, que envolve a auto justificação de nossas práticas particulares. Além desses, Luiz Werneck Vianna (1938-2024), sociólogo e professor da Puc-Rio, que escreve a “Revolução Passiva, iberismo e americanismo no Brasil”, analisando a transformação da sociedade brasileira de escravista e agrário-exportadora, em competitiva, urbano e industrial, numa transição acomodada e articulada de forma autoritária entre as elites apenas, sem envolvimento popular. Werneck também escreverá o “A Modernização sem o moderno: análises de conjuntura na era Lula”, no qual desenvolve a ideia de incompletude de nossa modernidade, que numa preservação conservadora insiste em manter parcelas expressivas da nossa população condenadas a exclusão. E, por último, Marcos del Roio (1954-) professor da UNESP no campus de Marília SP, que organizou o livro Gramsci, Periferia e Subalternidade em 2017 e escreveu Gramsci e Emancipação do Subalterno em 2018, destacando a identidade sarda, e seu combate ao positivismo e ao economicismo. Foi presidente da International Gramsci Society do Brasil, defende a tese de que o movimento operário no Brasil era americanista, e com uma visão maior de resultados para a categoria.

Esses são apenas alguns exemplos, dentre muitos outros, que nos mostram a permanência das questões levantadas pelo velho Gramsci, no mundo e no Brasil, e que aqui são destacadas a partir de três vertentes importantes para nosso país. A primeira, uma certa minoridade de nossas elites, que chegam tardiamente a modernização global, com um certo complexo de vira-latas, e que recorrentemente não se identificarão com seu próprio povo, produzindo uma forma de desenvolvimento excluidor. A segunda, uma clara vertente autocrática e autoritária, que bloqueia os movimentos sociais organizados, impedindo sua organização e também sua autoexpressão, mantendo um perfil paternalista e autoritário de suas ações, muitas vezes criminalizando os movimentos sociais organizados. E, por último, a presença de uma modernidade incompleta, que na verdade se transforma sem efetivamente mudar, mantendo uma estrutura espacial cheia de exclusões, vedando o Direito a Cidade, a partir da absolutização do Direito de Propriedade, em claro detrimento do Direito á Vida. Os reflexos dessa condição no nosso espaço construído estão por toda a parte de nosso território, cidades e moradias, sendo a manifestação física mais explícita de um desenvolvimento para poucos. A cidade brasileira se apresenta ocupada em áreas restritas por guetos de ricos, com grandes áreas empobrecidas sem infraestrutura e com antigos centros históricos abandonados. Um rodoviarismo hegemônico, que a condena a um engarrafamento continuado, e com um sistema de transportes público ineficiente de tarifas caras e com seus modais desarticulados. Dominada por um esgarçamento contínuo de periferias empobrecidas intermináveis, amorfas e dispersas sem qualquer infraestrutura. E, por último com uma relação predatória com o seu meio ambiente apresentando claras deficiências em seus sistemas de drenagem, esgotamento sanitário e coleta de resíduos sólidos.

EXEMPLOS DE MOVIMENTOS sociais URBANOS SUBALTERNOS e INVISIBILIZADOS

A partir desse momento é importante listar alguns movimentos sociais, que construíram manifestações espaciais variadas, entendendo a estruturação do espaço como item relevante para a autodeterminação e autoexpressão desses mesmos grupos sociais. Grande parte deles, como veremos estão invisibilizados, principalmente na perspectiva nacional do Brasil, mostrando-nos como grupos sociais subalternos muitas vezes ainda permanecem sem identidade, incapacitados de remontar sua própria história, a partir de seus lugares.

O primeiro é o movimento de 1695 do Quilombo de Palmares; em 20 de novembro com a morte de Zumbi, após uma série de expedições sobre um território de 27 mil M2, 1/3 do Reino de Portugal, com 10 aldeias em permanente luta com as forças coloniais nos séculos XVI e XVII. Houveram 17 missões destruidoras (2holandesas e 15portuguesas) que pretenderam suprimir a Rebelião do Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga no Estado de Alagoas, que chegou a ter 11mil pessoas. Palmares era uma monarquia eletiva nos moldes do que existia na África de então foi dizimada pelas forças coloniais. Há apenas uma descrição sobre o Quilombo numa carta de 1687; “São muitos em número, e cada vez mais. Não lhes falta destreza nas armas, nem no coração ousadia.” GOMES 2019 p.11. No entanto, seu apagamento é um fato para qualquer um que visite a Serra da Barriga em Alagoas, grande parte dos vestígios das implantações e vilas foram dizimadas, e a compreensão de sua disposição e espacialidade é hoje impossível.

“Por força da lei 12.519, de 2011, a data se transformou no Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra...Em 2018, apenas 1047 municípios, de um total de 5561 optaram pelo feriado. Em alguns estados, como Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Pará e Rondonia, nenhuma cidade se animou a celebrá-lo como um dia de descanso... Os historiadores, Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira, professores da UNESP... Afirmam que traçar a biografia de Zumbi seria hoje uma tarefa impossível.” GOMES 2019 página422

O segundo acontecimento histórico, que destaco fora do Brasil foi o movimento da Revolta do Haiti de 1791. A grande revolta negra contra a escravidão se iniciou em agosto, dois anos após a Revolução Francesa, após a Cerimônia de Bois Caiman, na Planície Norte, que contou com a participação de milhares de marrons (escravos fugitivos). O Haiti tinha 120mil escravos, 77% da população total da ilha, no Brasil em 1750, os escravos eram 50% da população. Importante aqui destacar uma citação de Thomas Piketi, que demonstra claramente como as narrativas centrais contemplam os grupos subalternos numa condição sempre periférica, mesmo quando se trata daquelas que defendiam a tese da ampliação libertária, o abolicionismo ou a supressão da monarquia;

“Alexandre Moreau de Jonnès – conhecido pelos muitos materiais estatísticos sobre os escravos e seus donos que compilou em diversas colônias a partir dos recenseamentos e pesquisas administrativas realizados desde o século XVII e abolicionista convicto – propõe em 1842, que os escravos ressarçam o valor total da indenização realizando “trabalhos especiais” não remunerados pelo tempo que for necessário. Ele insiste no fato de que isso também ensinará aos escravos o significado do trabalho.” PIKETI 2020 página210

É também interessante mencionar como Gramsci destaca aspectos sobre as complexas interações dos movimentos sociais subalternos, que envolvem; o espontaneísmo e a direção racional. Uma tendência de considerá-los como movimentos folclóricos, aonde sua apropriação social, pela historiografia hegemônica invariavelmente como; bizarros, desequilibrados, curiosidades, localizados na periferia da cultura e da Política. Um dos movimentos destacados pelo próprio intelectual sardo foi sobre Davide Lazzaretti (1834-1878); um pregador do Monte Amiata na Toscana Itália, chamado do Cristo dell´Amiata, personagem do Teatro Pobre de Montichiello e cantatas folclóricas, republicano, anti clerical, luta pela unificação da Itália contra as forças do pontificado de Roma.

“...Este era o costume cultural do tempo: em vez de estudar as origens de um acontecimento coletivo, e as razões de sua difusão, de seu ser coletivo, isolavam o protagonista e se limitavam a fazer sua biografia patológica, muito frequentemente partindo de motivos não comprovados ou passíveis de interpretação diferente: para uma elite social, os elementos dos grupos subalternos têm sempre algo bárbaro ou patológico” GRAMSCI 2001, p. 203

Esse movimento na Itália possui profundas analogias com outro acontecimento notável no Brasil, que foi a revolta de Antônio Conselheiro (1830-1897), o terceiro a ser destacado nesse texto. Conselheiro era um conselheirista, firmando-se numa revolta num povoado no sertão da Bahia em 1874, denominado Canudos (Arraial do Bom Jesus - 5 mil domicílios e 20 mil pessoas), caixeiro viajante, órfão de mãe aos 6 anos, gostava de ler, dava aulas numa fazenda no sertão do Ceará (Quixeramobim), abandonado pela mulher. Estabelece no Arraial de Canudos uma resistência aos Coronéis do Nordeste, sendo também monarquista, anti clerical e religioso. Atualmente, há no local o Parque Estadual de Canudos, um sítio notável no sentido de deixar registrado esse movimento, que ainda não teve sua narrativa inteiramente esclarecida. E principalmente, sua espacialidade plenamente entendida, como uma forma insurgente de resistir a um Estado autocrático e autoritário.

O quarto destaque aqui assinalado é mais um momento invisível de nossa historiografia foi o de 1904, na capital da República, o Rio de Janeiro, e em Niterói, denominado como; A Revolta da Vacina. Em 9 de novembro foi aprovada pelo Senado Federal a lei da obrigatoriedade da vacina da Febre Amarela. Em março de 1904, uma lei já havia regulamentado o serviço de profilaxia na cidade, concedendo poderes arbitrários ao Prefeito Pereira Passos nomeado pelo Presidente Rodrigues Alves, dentre eles o de demolir as edificações consideradas insalubres. Em novembro de 1904, a cidade era um verdadeiro canteiro de demolições e desalojamento do seu precarizado que habitava os cortiços e outras edificações insalubres, que recebiam ordem de abandonar suas habitações, nas quais eram locatários, sem qualquer compensação. As rebeliões e trincheiras se estenderam do dia 9 ao dia 15 de novembro, tendo os rebeldes se apoderado do Quartel da Polícia na Rua Frei Caneca, depredando edificações e o serviço de bondes da cidade. No dia 16, O Governo Federal decreta Estado de Sítio na cidade. Um autor assinala claramente a inadequação do nome da Revolta, que talvez deveria ser nomeada como a Revolta dos Desalojados.

“Ela (Revolta da Vacina) sacrificou grupos subalternos em proveito dos interesses mais gerais das classes dominantes, sob a hegemonizada burguesia cafeeira paulista...Ao mesmo tempo foi proveitosa aos interesses particulares do capital privado...desde o capital bancário internacional, de onde provieram os empréstimos...passando pelas grandes companhias empreiteiras, especuladores e construtores, até as diversas frações do capital comercial, financeiro e industrial que puderam permanecer ou vieram se instalar nas áreas remodeladas.” BENCHIMOL 1992 página328

Por último, destaco outro movimento sobre o qual ainda existem muitas lacunas de relatos, que é o da Escravidão Negra no Brasil, de 1500 a 1888, estruturado a partir da colonização portuguesa (1500-1822), mas mantido após a libertação do julgo colonial. O Brasil é o último país da unidade econômica do Atlântico Europeu a decretar seu fim, essa instituição marca o perfil do Brasil até hoje. Em 1808, quando a corte portuguesa se transfere para o país, o Brasil tinha cerca de 3milhões de habitantes, dos quais cerca de 50% eram escravos. No ano de 1850, a cidade do Rio de Janeiro contava 250 mil habitantes, dos quais 110mil ou 44% da sua população era escrava. Em 1865 é decretada a Lei do Sexagenário, libertando os escravos com mais de 60 anos, em 1871, a Lei do Ventre Livre, na qual os proprietários das mães dos escravos libertos, denominados “ingênuos”, deveriam cria-los até os 6 anos, para receber do Estado uma indenização, ou então mantê-los até os 21 anos fazendo-os trabalhar em troca de salários. Fato, que certamente determinava uma super exploração dessa mão de obra, beneficiando práticas patriarcais e senhoriais de nossa elite agrário-exportadora. Em 1888, com a supressão da escravidão se intensifica a política da imigração europeia e japonesa, o que certamente se constitui numa crueldade, numa falta de solidariedade com a massa de população negra existente no país, que então, se pautava por um claro desejo de embranquecimento de sua população, emblematicamente expresso no quadro A redenção de Cam, mostrado aqui. Em 2010, no último censo do IBGE; 48% da população se declarou branca, 43% mestiça, 8% negra, e 1% asiática e indígena. Sob a alegação de inviabilizar a indenização cobrada pelos ex proprietários de escravos, que já se mobilizavam para alcançar esse benefício, o Ministro da Fazenda manda queimar toda a documentação da escravidão, mais uma vez invisibilizando uma parte de nossa história.

“Não fazia muito tempo, Rui Barbosa, Ministro da Fazenda do Governo Provisório, mandara queimar toda a documentação relativa a escravidão existente no ministério, alegando que o fazia para apagar a mancha negra das páginas da nossa história.” BENCHIMOL 1992 página311

 

Figura 1: A Redenção de Cam, quadro do pintor espanhol Modesto Broco, 1895,
mostra-nos o desejo de embranquecimento da população brasileira.

 GIOVANNI ARRIGHI E A COMPREENSÃO DO NOSSO MUNDO CONTEMPORÂNEO

Ao final, no esforço de compor esse quadro de compreensão da estruturação de nossa espacialidade territorial, citadina e de nossas moradias cabe destacar uma interpretação notável de nossa estrutura econômica e social do mundo contemporâneo ocidental. Ainda pouco mencionada, o livro, “O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo”, de Giovanni Arrighi, que destaca as diversas supremacias que operaram no sistema capitalista, desde seu advento nas Cidades Estado da Itália até a atual hegemonia dos EUA. ARRIGHI, 1996 parte de um mapeamento histórico e geográfico, das Cidades Estado Italianas no século XIV, que de forma pioneira viveram o processo de descoberta de que o poder não está na posse de mercadoria ou na propriedade de terras, mas na sua base monetária e financeira, na concentração e acúmulo de moedas. Cidades como Gênova e Veneza, que concentraram os primeiros banqueiros da história descobriram a contabilidade cruzada, se beneficiando muito mais das descobertas Ibéricas do que Espanha e Portugal, que promoveram as grandes viagens, mas acabaram endividados, com essas cidades e seus banqueiros. Giovanni Arrighi destaca o longo prazo, e o processo cíclico preso numa constante repetição, que se sucede da virtuosa concentração produtiva ao desenfreado processo especulativo abstrato. Esse processo se repetirá de forma recorrente migrando entre diferentes organizações estatais pelo mundo, mostrando-nos a história das grandes finanças. Depois das Cidades Estado Italianas (Gênova e Veneza), o segundo exemplo, será a Holanda, ou a Liga Hanseática, que descobriu e desenvolveu, na época do capitalismo mercantil, o potencial especulativo do armazenamento de especiarias e mercadorias e sua articulação numa bolsa de valores, que promete lucros no futuro, a partir da lógica dos negócios e promessas especulativas.

“Permitam-me enfatizar aquilo que me parece ser uma aspecto essencial da história do capitalismo; sua flexibilidade ilimitada, sua capacidade de mudança e adaptação. Se há, segundo creio, uma certa unidade no capitalismo, da Itália do século XIII até o Ocidente dos dias atuais, é aí, acima de tudo, que essa unidade deve ser situada e observada... Em certos períodos, inclusive períodos longos, o capitalismo de fato pareceu especializar-se, como no século XIX, quando se deslocou tão espetacularmente para o novo mundo da indústria.” ARRIGHI 1996 página4

“...quando os agentes capitalistas não têm expectativa de aumentar sua própria liberdade de escolha, ou quando essa expectativa é sistematicamente frustrada, o capital tende a retornar a formas mais flexíveis de investimento – acima de tudo sua forma monetária. Em outras palavras, os agentes capitalistas passam a preferir a liquidez, e uma parcela incomumente grande de seus recursos tende a permanecer sobre forma líquida.” ARRIGHI 1996 página5

Na sequência, logo depois da Liga Hanseática, a Inglaterra assume a supremacia no sistema capitalista internacional, com a retirada dos holandeses do comércio internacional para se transformarem nos banqueiros da Europa. A Inglaterra nos primeiros sinais da Revolução Industrial assume uma concentração de riqueza sem par, demonstrando inicialmente uma capacidade ímpar de super explorar seu entorno imediato (irlandeses) e depois o resto do mundo. Num segundo patamar, mas também de forma sincrônica com a Inglaterra, a França desenvolve uma forma particular de acumulação primitiva que é específica, na sua histórica beligerância com o Reino Unido, desde a guerra dos 100 anos. Sua inserção internacional será ideologicamente central com a Revolução Francesa, mas fomentará um capitalismo mais artesanal, agrário, disperso e qualitativo que investirá fortemente numa super exploração de suas colônias. 

“...as sociedades de proprietários que prosperavam na Europa no século XIX e início do século XX se caracterizavam por uma concentração extrema de propriedade. Na França, no Reino Unido e na Suécia os 10% mais ricos detinham durante a Belle Époche (1880-1914) entre 80% e 90% de tudo que havia para ser possuído (terras, imóveis, ativos profissionais e financeiros, líquidos de dívidas) e o 1% mais rico detinha, sozinho entre 60 e 70% de tudo o que havia para ser possuído.” PIKETI 2020, página247

 

Figura 2: Gráfico que mostra a apropriação da renda nacional, pelos 10% mais ricos no mundo, mostrando-nos como Brasil, Oriente Médio e India são países desiguais

Gráfico de barras

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Em seguida a hegemonia inglesa emerge os EUA, uma nova base do domínio capitalista mundial, inicialmente no segundo pós-guerra, com um discurso anti-colonial no Oriente Médio, numa aparente domesticação do imperialismo inglês. Mas em seguida usando-se de expedientes de contra espionagem determina uma nova forma de dominação, realizada pelas suas grandes corporações e multi nacionais. Os EUA também hierarquizam as nações pelo mundo exercendo sua supremacia de forma diferenciada; nos paises mais desenvolvidos como na Europa e Japão a partir do soft power. E, nos países da periferia e semi-periferia do capitalismo, na América Latina, África e Oriente, a partir do hard power, ou da utilização de tropas ou promoção de golpes de Estado. Por fim, é preciso mencionar, que a sistematização de Arrighi e Piketi, ainda não contemplam o fenômeno da China, nova potência mundial, que vem dominando os ativos financeiros estadunidenses, território de atração do capitalismo de acumulação primitiva, combinado com Planejamento Estatal, mas também sem o mesmo poder bélico para se contrapor aos EUA. Mas assim como os BRICs; Brasil, Russia, India, China e África do Sul se apresentam como promotores de um desenvolvimento de grande concentração de renda, que na verdade atraem desenvolvimentos a partir de sua capacidade de super explorar seu próprio precarizado. ARRIGHI 1996 ainda irá destacar, que a partir da desarticulação do fordismo-keynesianismo, no final dos anos 1970, começo dos anos 1980, com as crises do petróleo, e com as eleições de Margareth Thatcher na Inglaterra (1979) e Ronald Reagan nos EUA (1980), a ascensão do neoliberalismo. O mundo a partir do declínio do Império Soviético (1989) passa a desmontar o Estado de Bem Estar Social elegendo a disciplina financeira como paradigma do comportamento de todos os Estados Nacionais, mais uma vez retornando a ciranda financeira, que passa então a pautar o mundo. É a hegemonia do capital financeiro, que mais uma vez assume a governança do mundo, mais uma vez abandonando a produtividade e se dedicando a uma especulação sem precedentes, agora potencializada pelas conquistas das Tecnologias de Informação  e Comunicação (TICs)

“Desde então, (final dos anos setenta) todas as nações tem estado a mercê da disciplina financeira, seja pelos efeitos da fuga de capitais, seja por pressões institucionais diretas; “Sempre houve, é claro, um equilíbrio delicado entre os poderes financeiros e estatais no capitalismo, mas a desarticulação do fordismo-keynesianismo significou uma evidente guinada para um aumento de poder do capital financeiro frente ao Estado nacional.”” ARRIGHI 1996, página03

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir desse mapeamento geral e breve estruturado a partir das reflexões de Gramsci, de seus discípulos, de Arrighi e de Piketi podemos compreender a forma de produção e reprodução da cidade brasileira. Uma realidade periférica, com péssimos índices de distribuição de renda, com uma incapacidade de suas elites de pensar por si mesma, na sua constante criminalização dos movimentos sociais de luta pela espacialidade. O campo do urbanismo e da arquitetura precisam reafirmar a necessidade premente de promoção de um desenvolvimento distribuidor de renda e benefícios, pelo e a partir do espaço. Torna-se central ouvir os movimentos sociais, usando mecanismos de participação, que visem reestruturar o local e o sistêmico das nossas cidades.

Portanto, acredita-se que os princípios de uma cidade com equidade precisam ser explicitados de forma a dar sentido as imensas manifestações de rebeldia e inconformismo das cidades, não para homogeneizá-los. Os movimentos insurgentes devem encontrar uma série de princípios gerais, que sintetizam a busca da promoção de uma maior equidade de rendas e oportunidades, um território urbano onde está universalizado o acesso às infraestruturas urbanas e as oportunidades. Por outro lado, é necessário reconhecer que precisamos enfrentar o problema urbano brasileiro reformando a cidade existente, promovendo ajustes em seus sistemas já instalados de forma a beneficiar a todos, e não apenas uma minoria privilegiada. Nesse sentido torna-se fundamental radicalizar as práticas democráticas, indo além da mera representação parlamentar, mas instituindo práticas cotidianas diretas de regulação dos orçamentos, planos e projetos. Busca-se portanto formular um conjunto de princípios norteadores para as cidades brasileiras, que precisam transformar o modo como vêm sendo construídas, para tanto, sugere-se priorizar quatro proposições objetivas:

1. A Cidade deve ser compacta e densa, evitando-se a dispersão interminável e enfatizando-se o papel aglutinador do antigo centro histórico. Os instrumentos contidos no Estatuto das Cidades devem ser operados no sentido da preservação de seu contínuo construído, regulando o Direito de Propriedade;

2. A Cidade deve ser lugar da convivência da diversidade de classes e de usos, evitando-se os guetos de ricos e pobres e a monofuncionalidade. A promoção da urbanização de favelas e a busca de sua integração aos tecidos dos bairros adjacentes deve reforçar o esforço de inserção social de todos seus estamentos e classes, utilizando-se inclusive dos sistemas de transportes sistêmicos para enfatizar sua reinserção integradora;

3. A Cidade deve ter mobilidade efetiva para todos, evitando-se a exclusão determinada pela ineficiência ou tarifação alta dos sistemas de transporte coletivo. As parcelas precarizadas da nossa população devem ter acesso ao passe livre reivindicado, permitindo o acesso amplo a diversidade de oportunidades que nossas cidades criam;

4. A Cidade deve ampliar o reconhecimento da ecologia e dos biomas naturais locais, construindo-se melhor relação com a natureza, permitindo uma apropriação social ampla dos ecossistemas e fomentando sua expansão e convivência com o mundo artificializado do humano. Devem ser implantadas obras e transformações que promovam maior ajuste entre a vida urbana e a natureza, se adequando principalmente as chuvas tropicais de maior intensidade.

NOTAS

[1] Glotologia, ciência que estuda comparativamente as diversas línguas, considerando suas origens e formação. (Sin.: glossologia, glótica.)

2. O sufrágio universal masculino foi decretado na Itália em 1912, e apenas em 1945 admitiu a participação das mulheres.

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