domingo, 14 de julho de 2024

Lukács e a Arquitetura, um livro de Juarez Duayer em confronto com Manfredo Tafuri

"Uma das teses básicas deste livro é a seguinte: não existe visão de mundo “inocente”. Em nenhum sentido tal visão de mundo existe, mas especialmente em relação ao nosso problema e precisamente no sentido filosófico: a tomada de posição a favor ou contra a razão é decisiva quanto à essência de uma filosofia enquanto filosofia, no seu papel junto ao desenvolvimento social." LUCKÁCS, 2010 página 10


Retorno ao livro do Professor Juarez Duayer, Lukács e a Arquitetura, que já foi comentado aqui no blog, pela complexidade de seu conteúdo e pelos impactos dos seus posicionamentos para o nosso campo da Arquitetura e Urbanismo. No primeiro texto, assinalei a partir do projeto e da materialização da cidade de Brasília, nossa capital federal, as perversas apropriações da lógica capitalista na cidade moderna contemporânea planejada ou não. O trajeto do texto anterior parte das reflexões de György Lukács. coletadas por DUAYER, 2008, se centrando nas especificidades da arquitetura dentro da Estética do autor húngaro. Mas na nota 1, ao final do texto no meu blog emerge a complexa questão colocada pela Estética de Lukács, e corroborada por Duayer de que; "O fato de Lukács reconhecer como veremos, somente a autenticidade das manifestações arquitetônicas até o período do Renascimento..." O que denota, para Lukács, que no modernismo, a cidade e a construção haviam sido degradadas a mero valor de troca, o que bloqueia a autenticidade estética das obras arquitetônicas, retirando-lhe a capacidade do reflexo artístico. Na mesma nota apontava, que esse posicionamento encontrava analogias com as formulações pessimista de Tafuri, tanto na sua celebração do Renascimento, como também na profunda desconfiança que lançava sobre as vanguardas do século XX. Na mesma nota foi destacado uma citação de Manfredo Tafuri no livro Sobre el Renascimiento; principios, ciudades, arquitectos, no qual era destacado o caráter fragmentário da arte moderna (Le Corbusier e Klee), que já prenunciava a incapacidade de fazer frente a totalidade social. A questão é extremamente complexa, e apesar de chancelada pela crítica mais recente (TAFURI, 1979, 1985, 1995), vem sendo a meu ver reduzida e simplificada, como se ela fosse mero fruto de uma redutora ortodoxia lukacsiana, que refletia sua filiação incondicional ao realismo. A origem do posicionamento de Manfredo Tafuri, diferentemente da do filósofo húngaro, me parece estar vinculada a crítica da Escola de Frankfurt (Horkheimer, Adorno e Benjamin), que é constante referência do crítico italiano nos seus estudos. E, também como enfatiza Otília Arantes, num texto de 1994, para o III Seminário de História da Cidade, no qual destaca a crença desfeita nas linguagem altamente formalizadas - semiologia e pós estruturalismo - que Tafuri celebrou nos anos 60/70;

"Em resumo, visto que esta correção de rumo é fundamental e será reiterada na introdução de seu livro A Esfera e o Labirinto, de 1980: o que de fato teria ocorrido, num momento (anos 1960/70) em que o estudo das linguagens altamente formalizadas, de simulação ou programação, em que ocorreu um avanço extensivo da cibernética — tudo isto diretamente ligado à utilização capitalista da automação —, é que a arquitetura, através da semiologia, pretendeu recuperar seu significado. O que é uma contradição, diz Tafuri, visto que, reduzido a signo puro e, sua própria estrutura, a relações tautológicas que remetem para si mesmas num máximo de “entropia negativa”, não podem recuperar para si significados “outros” através de técnicas de análise que partem precisamente da aplicação de teorias neopositivistas. Estas jamais poderão explicar a obra, quando muito — talvez sua única contribuição — explicitar a sua funcionalidade no universo da integração." ARANTES, 2020, página 22

Pelo que me consta, as referências de Manfredo Tafuri remetem muito mais à Escola de Frankfurt, como já assinalado, ao pós estruturalismo de Michel Foucault, e ao niilismo de Friedrich Nietsche, mas também são carregadas do mesmo desencantamento de Gyögy Luckács, com relação as possibilidades de inserção crítica da arquitetura nas condições operativas de nossa sociedade atual. Houve segundo eles a predominância de teorias regressivas, ideologias conservadoras que favoreceram formas de individuação favoráveis a mercantilização da vida São dois autores distintos, de tempos distintos, ambos pautados pelo marxismo; um mais ortodoxo, o filósofo Luckács (1885-1971), mas nem por isso defendendo postulações mecânicas e confortáveis, e o outro, no campo da arquitetura e do urbanismo, Tafuri (1935-1994), interessado como Luckács em delimitar o pensamento conservador e regressivo. Ambos racionalistas, entendendo essa razão não como um absoluto, autônomo, mas condicionado pelas contradições inerentes a vida social, pensando como uma plataforma fundamental para a produção de uma humanização crítica, ou a transformação decisiva da sociabilidade. Ambos, como ideólogos acreditavam numa capacidade didática e pedagógica  da atividade intelectual, que pela arte, ou pela ciência, ou pela política era capaz de fornecer condições e oportunidade aos indivíduos de resistir a mercantilização alienante da vida. Ambos, fizeram auto críticas a suas próprias obras, revendo suas posições; Luckács ao creditar a História e Consciência de Classe um acento demasiado idealista e hegeliano, e Tafuri ao considerar Teorias e História da Arquitetura como uma ilusão neo positivista nas estruturas da linguagem. É importante assinalar o absoluto desencantamento dos dois autores, um Luckács propondo enfrentar esse problema a partir de um retorno a Marx, o outro Tafuri se retira da crítica da arquitetura contemporânea, se afirmando apenas como historiador, notadamente do Renascimento.

"Comecei minha verdadeira obra aos setenta anos. Parece que existem exceções nas leis materiais. Nesse domínio sou adepto de Epicuro. Fui idealista, depois hegeliano. Em História e consciência de classe, tentei ser marxista. Durante muitos anos, fui funcionário do Partido Comunista, em Moscou. Pude reler de Homero a Górki. Até 1930, todos os meus escritos consistiram em experiências intelectuais. Depois foram esboços e preparativos. Ainda que ultrapassados, esses escritos serviram de estímulo a outros. Pode parecer estranho que eu tenha tido de esperar setenta anos para me dedicar à redação de minha obra. Uma vida não é suficiente. Recorde Marx, esse gênio colossal. Apenas conseguiu dar um esboço de seu método. Não se encontram em sua obra todas as respostas. Ele pertencia a seu tempo. Utilizo seu método para minha obra sobre a estética. Se ele vivesse hoje, estou persuadido de que escreveria sobre a estética." LUCKÁCS, 2020, pág.29 e 30

"Para Tafuri, também a ideologia possui uma estrutura própria (afinal ele nunca abriu inteiramente mão desta abordagem), mas é preciso passar da crítica meramente descritiva para a explicitação das características e funcionalidade relativamente aos fins gerais que as forças dominantes se propõem. É preciso proceder não apenas a uma crítica da arquitetura como produção ideológica, mas da própria crítica e de seus instrumentos de análise, por exemplo, a semiologia. Isto é, de que maneira a crítica entra nos processos de produção. “A combinação entre antecipações intelectuais, modos de produção e modos de consumo há de fazer ‘saltar’ a síntese contida na obra”, há de evidenciar sua ambiguidade. O que por sua vez se reflete numa “fecunda incerteza” da própria análise — a necessidade de voltar sempre de novo sobre o material examinado e sobre si mesmo." ARANTES 2020, pág.23

A questão é o retorno ao Renascimento, que tanto Luckács, quanto Tafuri retomam como sendo um tempo idílico, no qual a cisão humana pelas especializações variadas ainda não havia gerado o homem moderno compartimentado e preso ao discurso ideológico. Três temas centrais são a alienação, a objetivação e a coisificação que produziram e reproduzem as condições de nossa atual existência, medíocre, improdutiva e burocratizada, pela perda da administração de nosso próprio tempo. Para Tafuri, a ideologia da projetação e do plano, aplicada ao âmbito da cidade moderna representou apenasa a busca de eficência do valor de troca. Enquanto, para Luckács a trincheira se centrava num retorno a Marx e ao realismo, não como um esteticismo desvinculado da ética, mas como um processo compositivo, que nos faria compreender a dimensão social do ser.

BIBLIOGRAFIA:

ARANTES, Otília - Manfredo Tafuri, por uma crítica da ideologia arquitetônica, 1994-2015; A arquitetura da cidade, um ponto de vista e A "dialética negativa" de Manfredo Tafuri - um diálogo com Asor RosaSentimento da Dialética (sentimentodadialetica.org), acesso em julho de 2024

DUAYER, Juarez - Luckács e a Arquitetura - Niterói, EDUFF 2008

LUCKÁCS, György - A Destruição da razão - São Paulo, Instituto Luckács, 2010

LUCKÁCS, György - Essenciais são os livros não escritos: últimas entrevistas 1966-1971 - São Paulo, Boitempo 2020

TAFURI, Manfredo - Teorias e História da arquitetura - Editorial Presença Lisboa 1979 

TAFURI, Manfredo - Projecto e Utopia; arquitetura e desenvolvimento capitalista - Editorial Presença Lisboa 1985 

TAFURI, Manfredo - Sobre el Renascimiento; principios, ciudades, arquitectos - Editôra Cátedra Madrid 1995