sábado, 11 de fevereiro de 2023

O livro Passagens da Antiguidade ao Feudalismo de Perry Anderson

 

Anfiteatro da cidade de Luca na Itália

O livro Passagens da Antiguidade ao Feudalismo do historiador marxista e professor de história e sociologia da Universidade Católica de Los Angeles (UCLA) Perry Anderson (1938 - ) é um mergulho curioso no período de transição da Antiguidade Clássica (Grega, Helenística e Romana) à Idade Média, principalmente, mas não exclusivamente na Europa Ocidental. Um período pouco estudado pela vertente do materialismo histórico e dialético, a qual o autor está filiado, que majoritariamente se dedica a construir uma compreensão sobre o desenvolvimento do capitalismo, a partir do Renascimento. Isto é, se debruça mais sobre a transição do sistema feudal para o capitalista, portanto no período histórico pós Idade Média, do Renascimento a nossa contemporaneidade, onde se identifica a ampliação, expansão e disseminação do capitalismo e da propriedade privada pelo mundo. O fulcro central do livro é a construção das variadas identidades culturais e nacionais, que emergem na Europa, e conformam essa unidade geográfica contemporânea, a partir da confluência de dois grandes sistemas culturais, de um lado a antiguidade clássica greco-romana e de outro a vertente bárbara. Como, se os dois sistemas culturais tivessem presenças variadas nas diversas unidades geográficas, que hoje compõe a Europa, ou o Ocidente. Tal desenvolvimento, inclusive terá forte atuação na distinção clássica das diferenças estruturais da nossa compreensão das condições Ocidentais e Orientais, que permeiam nossa compreensão do nosso mundo cultural e ideológico contemporâneo, como marcações culturais condicionadas pelos desenvolvimentos históricos particulares. A simplificação redutora, que de forma recorrente os meios de comunicação ocidentais reproduzem, afirmando o ocidente democrático e o oriente autocrático, a partir da contraposição entre impérios orientais autoritários e a antiguidade clássica greco-romana democrática é relativizada e problematizada.

"... gira a todo momento em torno das diferenças estruturais entre Ocidente e Oriente. O Oriente, com suas ricas e numerosas cidades, sua economia desenvolvida, suas pequenas propriedades camponesas, sua relativa unidade cívica e boa distância geográfica dos impactos dos ataques bárbaros, sobreviveu. Já o Ocidente, com sua população mais esparsa  e suas cidades mais fracas, com sua aristocracia pomposa e seu campesinato oprimido, sua anarquia política e sua vulnerabilidade estratégica às invasões bárbaras, soçobrou." ANDERSON 2016, página18

Arles na França e o processo de longo prazo de permanência
da forma

A caracterização do ocidente como dotado de população esparsa, cidades fracas e com uma aristocracia pomposa, contraposto ao oriente com, suas ricas e numerosas cidades, sua economia desenvolvida, suas pequenas propriedades camponesas e sua unidade cívica nos apontam exatamente o reverso do senso comum ocidental, pelo menos no momento da longa transição entre Antiguidade Clássica e Renascimento. A permanência do Império Romano do Oriente, a partir do comando da cidade de Bizâncio ou Constantinopla, atual Istambul, durante todo o período da Idade Média vai também determinar especificidades para esta parte do mundo, que chegam até nós. ANDERSON 2016 pág.166 também assinala a emergência ou "três especificidades estruturais do feudalismo ocidental"; a existência ou sobrevivência de terras aldeãs comunais que representam uma significativa autonomia e resistência camponesa, com impactos na produtividade agrícola. Esta primeira característica, foi inclusive destacada por ENGELS, na Origem da Família, da propriedade privada e do Estado, como um fator de coesão local dos camponeses da Idade Média europeia, que "mesmo sob as mais duras condições da servidão medieval" garantiram meios de resistência, "que nem os escravos da Antiguidade nem os proletários modernos tiveram em mãos." ENGELS 2019 pág 45. Em segundo lugar, e talvez mais importante  para o campo da ordenação espacial é que este arranjo determinará o parcelamento feudal das soberanias, acabando por produzir "o fenômeno da cidade medieval na Europa ocidental." ANDERSON 2016 pág.168 Esta condição, segundo Perry Anderson permitiu e impulsionou nas cidade medievais um desenvolvimento autônomo numa economia predominantemente agrária-natural, que por nunca terem rivalizado em tamanho com as cidades da Antiguidade ou dos impérios asiáticos, escondeu a importância de suas funções mais avançadas dentro da formação social do medievo. Por último, o autor localiza uma ambiguidade ou oscilação na hierarquia instituída nos espaços feudais; "o cume da cadeia também era, em certos aspectos importantes o elo mais fraco." ANDERSON 2016 pág.169 Afinal, o suserano feudal dispunha de recursos econômicos que provinham quase exclusivamente de seus domínios, sendo suas reinvindicações sobre os vassalos tinham uma natureza essencialmente militar, havendo também várias camadas de vassalagem que intermediam seu acesso político à população. Tais condições, irão garantir a celebração romântica, típica dos críticos dos séculos XVIII e XIX no campo da arquitetura e do urbanismo, da Idade Média tão recorrente em autores como PUGIN, RUSKIN, MORRIS, e outros, que celebram uma certa des hierarquização das manifestações construtivas medievais.

"No Império Romano, com sua civilização urbana altamente sofisticada, as cidades se subordinavam ao mando de proprietários nobres que viviam nelas, mas não delas. Na China, vastas aglomerações provinciais eram controladas por burocratas mandarins que residiam em distritos especiais, separados de toda atividade comercial. Em contraste as paradigmáticas cidades medievais que praticavam o comércio e a manufatura eram comunas autogovernadas, com autonomia política e militar frente à nobreza e à Igreja. Marx viu essa diferença com muita clareza e lhe conferiu uma expressão memorável: "A história da Antiguidade clássica é a história das cidades, mas de cidades baseadas na propriedade da terra e na agricultura: a história da Ásia é a de uma espécie de unidade indiferenciada entre campo e cidade (deve-se encarar a grande cidade propriamente dita como um mero acampamento militar do príncipe, sobreposto á estrutura econômica real); a Idade Média (período germânico) começa com o campo como lócus da história, cujo o desenvolvimento prossegue até a oposição entre cidade e campo; a história moderna é a da urbanização do campo e não, como entre os antigos, a da ruralização da cidade."" ANDERSON 2016 pág.169

Esta é uma definição, e um corte histórico no mínimo particular, pois a precariedade representativa da cidade medieval ocidental, lhe garante intrinsecamente uma potência, que decorre da fragilidade histórica da sua representação, no seio daquela transição entre Antiguidade clássica e sociedade medieval. No campo da arquitetura e do urbanismo estas condições materiais erigiram uma forma construtiva que espelha uma certa ausência da localização do poder instituído, e ao mesmo tempo, uma consciência comunitária e coletiva arraigada, que determinou processos construtivos de longa duração no tempo. As cidades medievais, no seu "período germânico" apresentam-nos processos construtivos de longa estratificação no tempo, que muitas vezes eram determinados por um desenho "espontâneo, despreocupado e infinitamente variável" BENEVOLO 1983, pág.255. Antigas estruturas das cidades romanas eram reaproveitadas e reutilizadas como fortalezas, habitação ou praças, como em Arles na França, ou Luca na Itália que se reconstroem no interior do Anfiteatro romano. Ou a cidade de Spalato, denominada Split na Croácia, que é construída dentro do recinto do palácio de Diocleciano, imperador de Roma de 284 a 305 d.C. A cidade medieval é construída a partir da urgência, das necessidades de sobrevivência e de defesa, da presença de uma cultura do construir precária e em crise de transição, mas também a partir de um senso identitário e comunitário notável. A inscrição que encimava a portada de entrada de algumas cidades germânicas - Die Luft Stadt macht Frei, O ar da cidade faz a liberdade - era uma determinação objetiva, que impunha a libertação do escravizado se este tivesse uma permanência longa no território da cidade. Era uma legislação, que identificava o território da cidade, a área intramuros, com o trabalho assalariado, que mesmo que sub valorado, tornava a coerção dos poderosos menos ilimitada. Perry Anderson descreve uma grande variedade de tipologias de formações sociais na época medieval; em função de sua localização, mais próxima ou mais distante das centralidades clássicas, ou de ordem topográfica, onde o solo em terras rochosas e estéreis não fomentaram a organização senhorial, tendendo a conservar bolsões de comunidades camponesas pobres mas independentes. 

"Os historiadores soviéticos Liublinskaya, Gutnova e Udatsova sugeriram com acerto, uma classificação tríplice. De fato, a região central do feudalismo europeu foi aquela onde ocorreu uma síntese equilibrada de elementos romanos e germânicos: em essência, o norte da França e zonas contíguas, o berço do Império Carolíngio. Ao sul desta área, na Provença, na Itália e na Espanha, a dissolução e a recombinação dos modos de produção bárbaros e antigos se deram sob o legado dominante da Antiguidade. Ao norte e ao leste na Germânia, na Escandinávia e na Inglaterra, onde o jugo romano jamais chegara ou apenas fincara raízes superficiais, houve ao contrário, uma lenta transição para o feudalismo sob o domínio nativo da herança bárbara. A síntese "equilibrada" gerou o feudalismo de maneira mais rápida e completa e também proporcionou sua forma clássica - que por sua vez, teve grande impacto sobre zonas periféricas com um sistema feudal menos articulado [...] Por toda a Europa, a dispersão de relações feudais sempre foi desigual em termos topográficos dentro de cada região. Pois, em toda parte, as zonas montanhosas resistiram à organização senhorial, a qual era invariavelmente difícil de impor e desvantajosa de manter em terras rochosas e estéreis. Por este motivo, as montanhas tenderam a conservar bolsões de comunidades camponesas pobres, mas independentes, econômica e culturalmente mais atrasadas que as planícies senhoriais, mas, muitas vezes, militarmente capazes de defender seus esquálidos redutos. [...] Na Escandinávia na Germânia e na Inglaterra anglo-saxã, um campesinato alodial com fortes instituições comunais persistiu até bem depois do começo da crescente diferenciação hierárquica na sociedade rural, do aumento dos laços de dependência e da consolidação de clãs guerreiros em uma aristocracia dona de terras." ANDERSON 2016 pág.174

Enfim, o livro Passagens da Antiguidade ao feudalismo de Perry Anderson é um importante testemunho, para entendermos a variedade e diversidade do território da Europa, desde a península Ibérica até a região das atuais Turquia e Síria, e desde a península Itálica até os países Escandinavos, no norte. Uma leitura que desvenda muito da diversidade de ocupação do território europeu, e suas variadas formas de gerenciar a ocupação humana.

BIBLIOGRAFIA:

ANDERSON, Perry - Passagens da Antiguidade ao feudalismo - Editora UNESP São Paulo 2016

BENEVOLO, Leonardo - História da Cidade - Editôra Perspectiva São Paulo 1983

ENGELS, Friedrich - A origem da família, da Propriedade Privada e do Estado - Editora Boitempo São Paulo 2019

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