O livro O interior da História da crítica e historiadora argentina Marina Waisman (1920-1997) traduzido para o português em 2013, lançado na Argentina em 1990 é uma importante oportunidade para discutir a produção arquitetônica na América Latina, fora dos países centrais. Subdividido em duas partes muito claras; a primeira uma categorização geral da historiografia arquitetônica, e a segunda conceitua os instrumentos para avaliação da arquitetura de um ponto de vista latino americano. Como bem assinalou Gustavo Rocha Peixoto, num brilhante artigo para a Revista digital Vitruvius, Marina desmonta e remonta a arquitetura latino americana mostrando-nos seu funcionamento, seus impasses, suas fragilidades e potências. Como também bem coloca, Ruth Verde Zein na introdução para a edição brasileira é uma leitura fundamental, construtora de uma conceituação que dialoga com a práxis da disciplina abrindo possibilidades de desdobramentos importantes para a teoria e a projetação. Na minha leitura, há em Marina Waisman, no interior de seu estruturalismo, um certo excesso de localismo isolacionista cultural, que represa e desqualifica o profícuo diálogo entre culturas centrais e periféricas. Algo distante da antropofagia do nosso modernismo, que no campo mesmo da arquitetura moderna reinventou e ressignificou mensagens do racionalismo e do organicismo de forma criativa e inusitada.
"Quando parecia que um tipo de solução começava a ser avalizada, quando parecia que começava a haver um aprofundamento em resposta a determinado problema, quando se perfila apenas uma linha de pensamento próprio, sobrevém a nova solução ou a nova resposta ou a nova teoria elaborada nos países centrais e , sem mais, desloca o incipiente desenvolvimento. Essa condição de descontinuidade histórica não só afeta o devir das ideias arquitetônicas, mas também, como será visto, caracteriza os mais diversosos aspectos da práxis até chegar a converter-se em um elemento básico para a elaboração de pautas valorativas." WAISMAN 2013 página64
Ao meu ver, a continuidade e a descontinuidade das culturas contemporâneas ou modernas não podem ser vistas a partir de um isolamento autônomo, mas a partir de um diálogo horizontal entre princípios e manifestações de formas de expressão, que precisam permanecer e se contaminar mutuamente. O isolamento, ou sua necessidade denota uma certa minoridade, um recorrente encaixe num particular folclorizado Se a valoração parte do pressuposto, de que o formulado nos países centrais possui maior qualidade significa que as culturas não estão horizontalmente avalizadas, o que é um fato. Mas a rebelião contra este estágio de dominação não pode ser o isolamento, tão propalado pelo localismo, típico dos anos 90. Muito menos por um cosmopolitismo colonizado, que automaticamente se subordina à centralidade de forma acrítica, o universalismo solidário apenas reconhece a situação efetiva de edxclusão continuada das periferias, mesmo nos países centrais. E, aqui nada melhor do que recorrer a Antônio Gramsci (1891-1937), um autor sensível as pautas dos subalternizados pelas culturas centrais, que identifica este mesmo desequilíbrio entre centro e periferia. O pensador da Sardenha agrária e atrasada, diante da cidade de Turim industrializada e desenvolvida elaborou um marxismo peculiar, no qual a ideia de um inventário particular como patrimônio de sujeitos coletivos deve ser trabalhada, não de forma romântica ou folclórica, mas objetivamente;
"O ponto de partida da elaboração crítica é a consciência do que você é realmente, é o conhece-te a ti mesmo como um produto do processo histórico até aquele momento, o qual depositou em você uma infinidade de traços, sem deixar um inventário, portanto, é imperativo no início compilar esse inventário." GRAMSCI Quadernos 2 página76
O ponto de partida de discussão de um mundo multipolar é a expressão particular das diferenciadas aldeias, entendendo que a perda na capacidade valorativa, mesmo do centro, advém exatamente desta insuficiência ou cegueira em não tratar em sua plena maioridade, os grupos periféricos. GRAMSCI nos chamou a atenção sobre a História dos Grupos Subalternos apontando que a narrativa histórica só estaria completa quando permitisse a plena expressão dos grupos periféricos, sem romantismos e folclorização. Não apenas por parte dos países centrais, mas também pelos próprios grupos da periferia, que ainda não dimensionaram seu próprio inventário. A absolutização da pauta localista, dos anos 90, nos levou a lutas identitárias fragmentadas, que só antendem as estratégias do poder instituído, ou centro, que manipula esta dispersão ao seu interesse de dominação. A questão não é simples e dicotômica, mas talvez envolva mais a leitura de Machado de Assis ou Jorge Luis Borges, que sempre a partir de suas aldeias tocaram fundo no drama humano. O mérito do livro de Marina Waisman, O interior da História, é abrir este e outros debates complexos e importantes, que seguem na pauta da nossa contemporaneidade nos mostrando que arquiteturas como as de Rogélio Salmoná (Colômbia), Eladio Dieste (Uruguai), Severiano Mario Porto (Brasil), Miguel Angel Roca (Argentina) e outros estabelecem um diálogo nivelador com o centro.
BIBLIOGRAFIA:
GRAMSCI, Antônio - Cadernos do Cárcere, Os intelecuais. O princípio educativo. Jornalismo. volume 2 - Editora Civilização Brasileira Rio de Janeiro 2001
WAISMAN, Marina - O interior da História, historiografia arquitetônica para uso de latino americanos - Editora Perspectiva, São Paulo 2013
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