Pedro da Luz Moreira
Escola de Arquitetura e Urbanismo e Programa de Pós
Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense |daluzmoreira.pedro@gmail.com
Resumo: A questão central do artigo aqui apresentado é
a partir dos pressupostos teóricos de Antônio Gramsci, e seus atualizadores na
contemporaneidade mais recente, no Brasil e no mundo, entender a questão da
subalternidade, como visão de mundo, condicionadora e determinadora da produção
e reprodução da cidade brasileira. Os exemplos selecionados de nossa história,
no que se refere a articulação de movimentos sociais insurgentes, organizados
para requalificar as condições espaciais dos grupos subalternos nos mostra como
o esforço de invisibilização de nossas elites tem sido até agora vitorioso.
Essa condição deriva de uma inserção periférica de nossas elites, que demonstra
de forma recorrente uma incapacidade de entender o sistema das finanças
mundiais, como condicionador de sua forma de pensar, sempre submissa às
determinações do sistema globalmente engendrado. O reconhecimento dessa
derrota, não significa, no entanto a sujeição às condições impostas pelo
pensamento conservador, mas a compreensão de que o mapa das rebeliões e
insurgências sociais precisam ser visibilizados e entendidos, para possibilitar
a construção de uma espacialidade determinada pelas demandas moleculares e
pulverizadas produzidas de baixo para cima. A mudança estrutural não se prende
a uma pré concepção de um desenho ou modelo, mas celebra o processo de escuta
do precariado, entendendo-o como única possibilidade de passar a ter um
desenvolvimento social e econômico mais inclusivo. Se ao final são desenhados e
explicitados uma série de princípios, eles devem ser entendidos como uma
estratégia de provocação, que inicia um debate, mais do que um modelo.
Palavras-chave: Cidade; Subalternidade; Equidade; Participação;
Pulverização.
Title: THE PRODUCTION AND REPRODUCTION OF THE BRAZILIAN
CITY: PERIPHERAL SUBALTERNITY
Abstract: The central
issue of the article presented here is to understand the issue of subalternity,
based on the theoretical assumptions of Antonio Gramsci and his recent
followers in Brazil and the world, as a worldview that conditions and
determines the production and reproduction of the Brazilian city. The examples
selected from our history, regarding the articulation of insurgent social
movements organized to requalify the spatial conditions of subaltern groups,
show us how the effort to make our elites invisible has been successful so far.
This condition derives from the peripheral insertion of our elites, which
repeatedly demonstrates an inability to understand the global financial system
as a conditioner of their way of thinking, always submissive to the
determinations of the globally engendered system. The recognition of this
defeat does not mean, however, submission to the conditions imposed by
conservative thinking, but the understanding that the map of social rebellions
and insurgencies needs to be made visible and understood, to enable the
construction of a spatiality determined by the molecular and pulverized demands
produced from the bottom up. Structural change is not tied to a preconception
of a design or model, but celebrates the process of listening to the precariat,
understanding it as the only possibility of achieving more inclusive social and
economic development. If in the end a series of principles are designed and
explained, they should be understood as a strategy of provocation, which
initiates a debate, more than a model.
Keywords: City;
Subalternity; Equity; Participation; Spraying..
Título: LA PRODUCCIÓN Y REPRODUCCIÓN DE LA
CIUDAD BRASILEÑA: SUBALTERNIDAD PERIFÉRICA
Resumen:
La cuestión central del artículo presentado aquí es, a partir de los
presupuestos teóricos de Antônio Gramsci y sus actualizadores en la época
contemporánea más reciente, en Brasil y en el mundo, comprender la cuestión de
la subalternidad, como una cosmovisión que condiciona y determina la producción
y reproducción de la ciudad brasileña. Los ejemplos seleccionados de nuestra
historia, relacionados con la articulación de movimientos sociales insurgentes,
organizados para recalificar las condiciones espaciales de grupos subordinados,
nos muestran cómo el esfuerzo por invisibilizar a nuestras élites ha tenido
éxito hasta ahora. Esta condición deriva de una inserción periférica de
nuestras élites, que demuestra repetidamente una incapacidad para comprender el
sistema financiero mundial, como un condicionante de su forma de pensar,
siempre sumisa a las determinaciones del sistema engendrado globalmente. El
reconocimiento de esta derrota, sin embargo, no significa el sometimiento a las
condiciones impuestas por el pensamiento conservador, sino la comprensión de
que el mapa de las rebeliones e insurgencias sociales necesita ser visibilizado
y comprendido, para permitir la construcción de una espacialidad determinada
por factores moleculares y demandas pulverizadas producidas desde abajo hacia
arriba. El cambio estructural no está ligado a una preconcepción de un diseño o
modelo, sino que celebra el proceso de escuchar al precariado, entendiéndolo
como la única posibilidad de lograr un desarrollo social y económico más
inclusivo. Si al final se diseñan y explican una serie de principios, deben
entenderse como una estrategia provocadora, que inicia un debate, más que un
modelo.
Palabras
clave: Ciudad; Subalternidad; Equidad; Participación; Pulverización..
O presente texto aborda as conexões existentes entre
o espaço construído pelo homem no Brasil (cidades e sua arquitetura), uma parte
da filosofia contemporânea, e o termo Subalternidade, como um termo caracterizador
da cultura brasileira. Essas anotações fazem parte de uma série de manuscritos
que todo processo de montar uma aula disparam no seu professor, no âmbito da
graduação, e na Pós graduação em Arquitetura e Urbanismo. Elas tentam
explicitar a complexa relação existente em nossa sociedade entre uma visão de
mundo (Weltanschauung) particular e a responsabilidade de uma formação
inaugural e continuada para os estudantes e profissionais que militam no ofício
crítico de produção do abrigo e da cidade, a arquitetura e urbanismo. A
disponibilização desses apontamentos num artigo representam uma tentativa de
sistematização de uma teoria, que parte de minha tese de doutorado defendida em
2007 para obtenção do título de Doutor, que pretendia compreender a forma de
produção e reprodução da cidade brasileira, a partir dos conceitos de plano,
projeto, ideologia, hegemonia e subalternidade. Essas reflexões e
questionamentos sobre as formas de desenvolvimento, produção e reprodução da
cidade brasileira, que derivam de um projeto exclusivista de suas elites, que
está no cerne da sua própria sociedade. A acepção da Subalternidade, parte de
um dos maiores dramaturgo de nosso país, Nelson Rodrigues, que num de seus
lampejos críticos-provocativos determinou num sensível diagnóstico, a alma
brasileira;
Por "complexo de vira-lata" entendo eu a inferioridade em que
o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O
brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a
verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima. RODRIGUES, https://pt.wikipedia.org/wiki/Complexo_de_vira-lata
Além do genial dramaturgo, parte-se também do
filósofo marxista e italiano Antônio Gramsci, que nasceu na Sardenha em 1891 e
morreu em Roma em 1937, com apenas 46 anos, e, que apesar da pouca idade possui
potentes reflexões para o nosso mundo contemporâneo sobre a subalternidade,
notadamente no Quadern 25, que recebe o título; “Às Margens da História (História dos
Grupos Sociais Subalternos)”. Além dele apresento os desdobramentos de seu
pensamento, que chegaram a nós pelas reflexões de diversos pensadores atuais,
que se auto denominaram como participantes de diversos grupos de pesquisas,
denominados, subaltern studies, e que ancoram suas teorias nos seus
pensamentos. Além do embasamento teórico de Gramsci são apresentados momentos
de nossa história, que nos mostram o esforço de nossas elites para apagá-los.
Logo após, busco explicitar de forma muito sucinta, a maneira da inserção de
nosso desenvolvimento econômico social no contexto global do Ocidente,
apontando como o capitalismo apresenta no longo prazo um desenvolvimento
cíclico e repetitivo, que retorna de forma recorrente a tendências
especulativas. Essa última, rápida argumentação está embasada na teoria
desenvolvida por autores como ARRIGHI 1996 e PIKETI 2020, que compreendem o
mundo como um sistema governado pelas altas finanças, que pautam nosso
cotidiano, e portanto a construção de nossas cidades e moradias. Ao final, são
apresentados quatro princípios que deveriam passar a pautar a produção e
reprodução da cidade brasileira. Esses quatro princípios devem ser vistos como
uma provocação, que na verdade deveria iniciar um debate sobre os rumos da
ocupação do espaço em nosso país, que na verdade precisa encontrar formas
possibilitadoras do pleno engajamento de sua população.
ANTÔNIO GRAMSCI:
A biografia de Antônio Gramsci apresenta um vínculo
forte com os grupos sociais subalternos, uma vez que ele próprio nasce e aí
permanece na rural, arcaica e pobre Ilha da Sardenha, migrando em 1911, com
vinte anos, para a desenvolvida, industrializada, urbana e rica Turim, no norte
da Itália. Além disso Gramsci era filho de pais muito pobres, teve de trabalhar
desde criança, seu pai foi preso ainda na sua infância, tendo a família que se
sustentar com os trabalhos de costura de sua mãe. Ainda muito cedo teve um
problema de saúde muito sério, que foi uma tuberculosa óssea, que representou
uma fragilidade física para toda sua vida. Apesar, disso tudo Gramsci sempre
demonstrou uma grande capacidade de estudo, pesquisa e conexão de assuntos,
recebendo uma bolsa de estudos para cursar na universidade de Turim, a escola
de letras e línguas na cidade de Turim.
Turim era um local que concentrava fábricas como a
FIAT e a LANCIA, que atraiam imensos contingentes de operários e nos primeiros
anos do século XX concentrou importantes movimentos dos Conselhos de Fábrica,
que lutavam pela auto-gestão dessas industrias. O sistema de pensamento de
Gramsci terá sempre um sentido articulador das lógicas espaciais, econômicas,
sociais e culturais, no qual está inserido, que se articulam numa complexidade
crescente. Num sistema de centros hierarquicamente articulados, numa estrutura
de dependências mútuas, aonde a relação entre hegemonia e subalternidade embasa
e organiza processos complexos de auto-identidade, que partem de centralidades
e periferias interdependentes. A subalternidade da Itália nesse sistema
mundial, a minoridade da sua burguesia frente as burguesias; inglesa, americana
e francesa, sua declaração de dependência do Estado Nacional, a fraqueza do
liberalismo italiano frente a essas outras três nações. A posição da Sardenha e
a parte meridional da Itália agrária, católica e arcaica, frente ao norte
industrializado, urbano e moderno. O marco referencial será sempre a história
particular desses diferentes lugares, que a partir da transformação moderna da
constituição da Unidade Nacional inclui ou exclui uma participação maior das
suas populações, que assumem um caráter conformador de completude ou
incompletude.
“Da Sardenha, metade agrária, camponesa e pobre do Piemonte ao
Mezzogiorno todo colonizado e feito periferia do norte do reino da Itália. Mas,
a rigor, toda a Itália já era periferia da França, pois o Risorgimento
italiano, como revolução burguesa com participação difusa das massas, como
revolução passiva, fez da Itália uma região periférica e subalterna, de resto
como toda a região mediterrânea. Em outro círculo, a própria Europa corre o
risco sério de se tornar um centro periférico diante da ascensão dos Estados
Unidos.” ROIO, Marco del 2017
página10
Nesse desenvolvimento, a busca por um desenvolvimento
justo e equilibrado, que distribua benesses de forma mais equânime entre
precariados e empoderados é o objetivo da estruturação do pensamento
gramsciano. Uma forma, que entende a autoexpressão de cada cidadão como um
processo de alcance da maioridade enquanto a capacidade de autodeterminação, e
questiona a fórmula estratificada do “status quo” atual, cindido entre
representantes e representados. O desenvolvimento histórico dos objetivos a
serem alcançados, nesse sistema de pensamento, possui um profundo vínculo com o
cotidiano prático e efetivo - filosofia da práxis - dos subalternos, que
precisam ser levados a se diferenciar como os grandes prejudicados, pelo
funcionamento geral da sociedade, e ganhar consciência dessa condição. A
concentração de renda contínua na minoria da população, que desfruta da
exclusividade da propriedade e a partir daí opera sua manutenção deve ser
justificada por uma narrativa ou “ideologia”. Para Gramsci, o termo “ideologia”
assumirá um caráter mais neutro, como um sistema de pensamento que
estrutura o agir de qualquer pessoa, havendo ideologias progressistas e
conservadoras, que lutam pela conquista do metabolismo social, na medida em que
recebem a adesão por um maior número de defensores. No entanto, não significa
que ela possa ser livre das determinações e interesses sociais dos diferentes
grupos sociais, que sempre desenvolverão vínculos profundos com sua forma de
pensar. A perspectiva de Gramsci é a de impossibilidade de libertação de
qualquer agente das amarras ideológicas, estando todos os grupos sociais
condicionados por suas determinações. Essa forma de conceber o conceito de “ideologia”
não ficará restrito aos gramscianos, mas contaminará diferentes correntes,
inclusive em nosso mundo contemporâneo.
“Desse modo, toda época produz um conjunto de discursos e ideologias
contraditórios que visam legitimar a desigualdade tal como ela existe ou
deveria existir e descrever as regras econômicas, sociais e políticas que
permitem estruturar o todo.” PIKETI,
2020 pág.11
Esse tipo de pensamento, que não se conforma com a
forma de operar do “status quo” do poder instituído, produzindo de forma
contínua uma massa de excluídos, que precisa ganhar consciência de sua condição
de subalterno. Em 1919, Gramsci funda com Palmiro Togliatti a Revista “L´Ordine
Nuovo”, um periódico que discute política, cultura e sociedade pretendendo pelo
didatismo atingir os temas e as preocupações desse mesmo precarizado. Em 1926,
logo após ser eleito deputado pelo Partido Comunista Italiano (PCI) pelo Vêneto
é preso pela polícia de Mussolini, que havia tomado conhecimento da capacidade
do jovem sardo, quando ainda militava no Partido Socialista Italiano (PSI).
Gramsci ficará preso nos cárceres do fascismo, legando uma reflexão importante
para nossa contemporaneidade, nos seus apontamentos nos “Quaderni di Carceri”.
Apesar de marxista, Gramsci critica fortemente o positivismo do marxismo da 2ª
Internacional, que desde o advento da Revolução Russa de 1917 havia se
restringido a um economicismo redutor, se aproximando muito dos questionamentos
de Rosa Luxemburgo, a líder polonesa fundadora da Liga Spartakus na Alemanha,
de então. O questionamento de Gramsci envolve sempre uma complexa interação
dialética entre; Revolução-Ruptura, Reforma-Gradualismo, diferenças históricas
entre Oriente e Ocidente, Estado e Sociedade Civil, Ideologia e Hegemonia. Por
exemplo, a construção da hegemonia envolve um complexo gradualismo entre
Coerção e Convencimento, onde existiria na relação entre representados e
representantes um movimento que variava da submissão coercitiva unilateral até
a legítima aceitação da representação. Um movimento entre a opressão supressora
da identidade e a aceitação participativa da representação, nessa última
condição se localizava a legitimidade efetiva da democracia. Questões como a
centralidade e a subalternidade eram trespassadas por discursos, persuasão e
convencimento dos diversos atores, que atingem a maioridade como representados,
na medida em que controlam seus representantes. Há implicações claras nessa
forma de raciocínio em todos os relacionamentos que envolvem o poder e seu
exercício, aonde se concebe a História, como ciência de aprendizado contínuo,
aonde a autoidentidade depende da formulação de uma narrativa de autoconstrução.
Há também no campo da conformação do plano e do projeto, uma possível analogia
entre as condições de usuários, desenhistas ou planejadores e o Estado, que na
medida que se posicionam de forma equânime e transparente desenvolvem os
desejos de forma madura e adequada. Na Itália, com a presença indelével da
Igreja, a política como participação e construção coletiva era no tempo de
Gramsci bloqueada pela orientação do abstencionismo por parte do catolicismo.
“Escreve Gramsci no Caderno25, que em seguida ao abstencionismo dos
católicos da vida política, podia nascer entre os camponeses uma tendência
subversiva-popular-elementar as massas rurais na ausência de partidos
regulares, cercavam-se de dirigentes locais que emergiram dela própria, misturando
a religião e o fanatismo ao conjunto das reinvindicações...” ROIO 2017 página28
A consciência de Gramsci do desenvolvimento
capitalista, sempre nos remete ao confronto entre o arcaico e o moderno, o
subalterno e o dominante, aonde as duas condições não são apenas polos
antagônicos, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes
exploram sua proximidade de forma complementar e interessada. Mas logo após sua
chegada a Turim, Gramsci circulava no meio sindical, como produtor de ensaios e
textos para jornais ligados ao Partido Socialista Italiano (PSI), ao mesmo
tempo, era demandado pela Faculdade de Letras de Turim para temas acadêmicos,
como os estudos de glotologia[1]
do professor Matteo Bartolli, uma referência dos neolinguistas. Também a
língua, sua evolução e seu desenvolvimento irão sempre constituir para Gramsci
como um ordenamento estruturado de forma molecular e dispersa, e de baixo para
cima, com transformações contínuas, que lhe permitiam analogias com a política.
Além disso, a questão da língua sempre esteve nas reflexões de Gramsci
relacionada à organização da cultura e à função dos intelectuais orgânicos das
diferentes classes sociais. Foi exatamente essa celebração do acaso no devir
histórico, que sempre mobilizou a curiosidade de Gramsci, e sua capacidade de
pensar estratégico, aonde a pretensão ao controle total, já denotava sua
crítica aos processos revolucionários violentos. E, as formulações posteriores
da distinção entre guerra de posição e guerra de manobras, e o próprio conceito
de hegemonia, que dinamiza a ideologia como instrumento efetivo de ação no
cotidiano. Mas, outro professor, que incentivou também Gramsci ao ensaísmo foi
Umberto Cosmo, livre-docente de Literatura Italiana, que incentivou-o a
escrever sobre Maquiavel desde 1917, buscando uma ponte entre a cultura e a
política, que tanto seduzia o jovem sardo. Nesse sentido, sua simpatia pela
ação de ruptura das vanguardas culturais, que contaminavam o ambiente italiano
do início do século XX é apontado sempre com destaque de sua vivacidade
intelectual, além de um traço de pertencimento geracional. A revista “La
Voce” de caráter burguês e ”L´Ordine nuovo” fundado em 1919, da qual
fazia parte mostram esse esforço de tentar dar agilidade e vivacidade à
acadêmica e “balofa cultura italiana”, nas palavras do próprio
Gramsci. Percebe-se nas posições do filósofo da Sardenha, já na sua juventude
um profundo vínculo com a cultura humanista italiana, que muito além da
política constroe uma conexão entre vida cotidiana e estratégia de construção socialista.
Uma continuidade didática, e que celebra na atividade política uma capacidade
pedagógica de constante aperfeiçoamento, cada vez mais distante do idealismo,
fazendo um enorme esforço em direção ao materialismo e ao pragmatismo.
"Em 1913, nos meses de interrupção da atividade universitária,
Gramsci pode assistir na sua ilha à campanha para as primeiras eleições com
sufrágio semiuniversal[2] e dela retirou uma impressão muito viva da
eficácia da política como fator de mobilização e transformação das massas
camponesas, admitidas pela primeira vez ao exercício do voto. Em setembro, na
esteira das eleições, realizou seu primeiro ato político público, aderindo ao
grupo de ação e propaganda dos interesses da Sardenha, de inspiração
antiprotecionista, que se constituira no verão. São particularidades de certa
importância, porque nos conduzem ao tema da desprovincialização e nos ajudam a
entender a natureza do processo que se realizou no espírito do jovem sardo. A
inscrição de Gramsci no PSI é parte integrante de sua nacionalização; com tal
ato Gramsci não cortava as raizes territoriais, mas especificava a dimensão
intelectual e política na qual buscaria a explicação e perseguiria a solução
para as angústias e os problemas específicos da Sardenha, lugar originário e
indelével da sua tomada de consciência dos antagonismos sociais." RAPONE 2014 p. 63 e 64
Gramsci também construirá um forte vínculo entre
linguagem e forma de estruturar o pensamento, negando de forma enfática o
naturalismo, o economicismo e o mecanicismo, que imperava nos meios marxista do
início do século XX. Mas ao mesmo tempo valorizando de sobremaneira a forma
como a linguagem se estrutura, possibilitando a criação, a reformulação e a
revolução dentro de parâmetros e regulações socialmente introjetadas em cada
indivíduo. Para Gramsci, o estudo e o aprofundamento no fenômeno da linguagem
sempre será proveitoso, reunindo criatividade e compreensão socialmente
compartilhada, que na verdade impulsionam um devir histórico real e apartado do
idealismo. Na questão da lingua internacional, o Esperanto, Gramsci sem dúvida
já celebrava a internacionalização da solidariedade entre despossuídos, mas
reafirmava a presença da necessidade pulverizada e molecular, que criaria as
condições para a emergência da nova língua a partir do cotidiano, e não por
decreto. Há nas referências linguísticas de Gramsci uma constante menção às
energias sociais livres, que nunca irão parar de se desenvolver, fazendo pouco
caso das narrativas que pensavam num estágio último e definitivo das
contradições sociais, que para ele jamais cessariam. Há também aí, uma
estratégia de combate ao capitalismo monopolista concentrador, que na Itália de
então já operava procurando pautar os interesses gerais de forma unívoca e
unidirecional, restringindo os interesses moleculares e pulverizados dos
diversos agentes. A questão claramente entendia as sociedades ocidentais, com
suas organizações da sociedade civil atuando de forma molecular, com uma
pluralidade de interesses, com representações diversificadas que eram
diferenciadas das sociedades orientais autocráticas e autoritárias,
profundamente centralizadas.
“Gramsci sempre irá celebrar esse caráter indomável e avesso ao
autoritarismo, que a língua carrega, como no caso da unidade linguística da
Itália, proposta em seu tempo a partir do dialeto da toscana, proposta por
Manzoni, ou no caso da adoção do Esperanto como facilitador da comunicação
internacional. O linguista e filósofo sardo irá repelir com veemência a
imposição de cima para baixo, sobre o argumento de que "a linguagem, ainda
antes de mecanismo comunicativo, é produto em contínuo devir." RAPONE 2014 página56.
Assim como, a linguagem, a cidade e a arquitetura,
que é uma necessidade humana difundida e presente em toda a humanidade, afinal
o homem em suas diversas culturas produz seu próprio abrigo, e não reconhece no
planeta e no seu ambiente, tal qual está constituído, um acolhimento adequado.
Afinal, existe a produção da arquitetura culta dos arquitetos, e aquela
produzida pela autoconstrução, pela necessidade do abrigo, aonde as referências
construtivas estão presentes, assim como na língua. Na historiografia da cidade
e da arquitetura há sempre uma diferenciação entre os monumentos e as áreas
habitação, onde o cotidiano, a reprodução da vida em suas necessidades
objetivas se manifesta. Essa condição, de autorreprodução das técnicas de
construção da sua própria sobrevivência se dissemina entre as pessoas conforme
o vocabulário, que dominam, seja na materialidade disponível, ou na parcela
aonde estão autorizados a realiza-la, o que vincula de forma definitiva, a
linguagem à cultura do construir, que sempre tem profundas conexões com o lugar
e com o tempo. Na materialidade disponível, nas tecnologias de domínio comum,
na acessibilidade social do construir O que também constitui e está constituído
na moradia, na cidade, na distribuição das infraestruturas, que nunca é a mesma
em todos os lugares, justamente em função das variações dessa linguagem do
construir, tanto no espaço, como na história.
"Mas aqui quem se pronuncia não é só o discípulo de Bartoli: é
também o militante político para o qual opor-se ao esperanto equivale a
declarar-se 'revolucionário' e 'historicista': de fato, significa afirmar que
na base do devir histórico está 'a atividade das energias sociais livres',
excluindo as utopias - isto é, a pretensão de buscar projetos abstratos, ao
mesmo tempo arbitrários e ilusórios, sobrepostos ao agir dos homens - e
combatendo a ideia de que o movimento da vida e da história, entendido por Gramsci
como perpétuo 'fluir de matéria vulcânica liquefeita', possa atingir um estágio
último e definitivo, porque hipoteticamente perfeito: 'Por isso abaixo o
esperanto, tal como abaixo todos os privilégios, todas as mecanizações, todas
as formas definitivas e enrijecidas de vida, cadáveres que empestam e agridem a
vida em devir’” RAPONE 2014
página57
Aqui há uma profunda vinculação entre espaço
nacional, esforço particular e individual, construção de uma mentalidade
coletiva solidária, identidade linguística e cultural, consciência e
determinação, particularidades que também estarão presentes na cidade e na arquitetura.
Cosmopolitismo e Localismo. A ideia do Bem Viver, dos padrões socialmente
compartilhados do que é a estruturação do território, da cidade e do habitar,
que acaba sendo hegemonizado por representações impostas e manipuladas pelas
classes dominantes. O sistema gramsciano de pensamento está fortemente
estruturado em torno das dimensões da linguagem, do conceito de centro,
periferia e de hierarquia, bem como a ideia de espacialidade e temporalidade
diversificadas, que geraram especificidades, que precisam ser estudadas e
entendidas. Tudo isso configura um instrumental importante para a compreensão
da cidade e da arquitetura no nosso mundo contemporâneo, de nossa própria
capacidade de autoidentificação como povo e cultura. Existe a coerção da hegemonia
dominante, que será sempre a ideologia da classe dominante, mas também existe a
potência das periferias ainda invisíveis e silenciadas, prontas, no entanto a
ganharem sua autoexpressão, na medida em que promovem sua sobrevivência. A
emergência das linguagens subalternizadas, invisibilizadas e silenciadas
dependem da conquista e da formulação de sua auto-identidade, que não lhe será
dada, mas precisa ser conquistada.
"O povo italiano, há cinquenta anos, não existia, era só uma
expressão retórica, Não existia nenhuma unidade social na Itália, existia uma
unidade geográfica. Existiam milhões de indivíduos dispersos no território
italiano, cada qual vivendo para si mesmo, preso no seu torrão particular;
ninguém sabia da Itália, cada qual falava um dialeto particular, acreditava que
todo mundo estava limitado ao horizonte de sua aldeia. Conhecia o coletor de
impostos, conhecia o carabineiro, conhecia o juiz e o tribunal: sua Itália. E,
no entanto, esse indivíduo, muitos destes milhões de indivíduos superaram este
estágio particularista, formaram uma unidade social, sentiram-se cidadãos,
sentiram-se colaboradores de uma vida, que saia do horizonte da sua aldeia, que
se estendia por espaços cada vez mais amplos do mundo, que se estendia ao mundo
inteiro.... Ele fez com que um camponês da Puglia e um operário de Biella
falassem a mesma língua, passassem, tão distantes, a se expressar de modo igual
em relação ao mesmo fato, a dar um juízo igual sobre um acontecimento, um
homem..." RAPONE 2014
páginas 66 e 67
Assim, nessa condição de subalterno no espaço social
da Itália, Gramsci construirá uma das reflexões mais potentes do nosso tempo,
aonde o sistema hierárquico de dominação é uma presença indelével, mas também
uma possibilidade de transformação. Sua quase veneração pelo “Americanismo” e
“Fordismo”, como inovações do capitalismo nos EUA, reconhecendo ao mesmo tempo
maior liberdade das amarras da história européia, e mais dominação e exploração
por sua eficiência de contornar o enfrentamento de classe, recalcado pela
negação da alcunha de “operário”, soterrada pela conquista da denominação de “classe
média consumidora”. A minoridade da burguesia italiana frente a inglesa,
americana e francesa, sua permanente dependência do Estado Nacional, a fraqueza
do liberalismo italiano frente a essas outras três nações vem da incompletude
da sua reunificação (Risorgimento), sem a participação popular, numa
transformação feita por cima com as elites temendo sempre a explosão das
massas. A posição da Sardenha e a parte meridional da Itália agrária, católica
e arcaica, frente ao norte industrializado, urbano e moderno. A reflexão de
Gramsci terá sempre esse componente histórico espacial e cultural, que
identifica especificidades, mapeia suas potencialidades e problemas, buscando
sempre a estratégia da transformação. Mantendo sempre um otimismo propositivo;
“Pessimismo da crítica e otimismo da práxis.” Há uma consciência do
desenvolvimento capitalista, que sempre nos remete ao
confronto-complementariedade entre o arcaico e o moderno, aonde as duas
condições não são apenas polos antagônicos, mas realidades que tomam
conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma
complementar. Essa condição explica muito da nossa modernização no Brasil,
sempre incompleta necessitando de forma contínua do arcaico, do precarizado. A
questão dos intelectuais orgânicos, que nascem das condições objetivas da
existência do precarizado, e que conseguem superar a sobrevivência, problematizando
as razões de sua existência limitada. Capacidade de formulação de uma narrativa
auto descritiva; Identidade e Representação. No campo do debate dos
intelectuais orgânicos e dos intelectuais tradicionais, que no Brasil podem ser
representados pelas trajetórias; de Marielle Franco, uma liderança orgânica da
Favela da Maré, e a figura de Antônio Cândido, um intelectual paulista de
grande abrangência e de cultura universalista, com amplo acesso à cultura e ao
conhecimento, egresso da possibilidade conhecimento dado por sua condição de
classe
“...processo histórico de formação das diversas categorias de
intelectuais, que é observado em todo grupo social, por nascer na base
originária de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria ao
mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe
conferem homogeneidade e consciência de sua função no campo econômico.” GRAMSCI 2001, p.56
A questão das vivências como construtoras de
narrativas, auto descritivas, das políticas de identidades do mundo
contemporâneo possuem um grande vínculo com a ideia de intelectual orgânico de
Gramsci. No sentido que a tarefa inicial de todo pensador seria a capacidade de
se auto-representar, como uma experiência, que é também um saber a ser
compartilhado por todos. Nesse sentido, o conhecimento assume uma outra
dimensão, que considera as diversas vivências como saber, que ao ser
compartilhado ilustra a todos. A humanidade se esclarece na medida em que toma
conhecimento de sua diversidade e mistura, fazendo-nos relativizar nossos
valores e crenças. Gramsci mantém viva a ideia advinda do marxismo do
cosmopolitismo a ser compartilhado por todos que se ilustram com a inserção das
novas narrativas, dando possibilidade de construção de uma História da
|Humanidade. No entanto, ele reconhece a presença do conflito, do pensamento
hegemônico, que é sempre o da classe dominante, que jamais cederá em sua
condição de coerção e domínio. A capacidade de superar esse estágio não é
encarado como um momento único e definitivo, mas um processo contínuo de
afirmação de um conflito inacabável no seio da humanidade. A auto-organização
da própria cultura é função dos intelectuais orgânicos das diferentes classes
sociais, que conferem a auto-construção de sua própria identidade..
“Mas todo grupo social ao emergir da história da estrutura econômica,
encontra, ou encontrou na história que desenvolveu até então, categorias
intelectuais pré existentes, as quais se apresentam como figuras de uma
continuidade histórica ininterrupta, não posta em discussão nem pelas mais
complexas mudanças sociais e políticas. Desde os eclesiásticos, monopolizadores
por longo tempo de alguns serviços essenciais até Croce que se percebe mais
ligado a Aristóteles do que a Agnelli.” GRAMSCI
2001, p. 184
Gramsci entenderá como a função central do
intelectual orgânico; organizar e conectar formas peculiares e historicamente
determinadas nas próprias narrativas do grupo, superando a aparência dos
interesses corporativos e se mimetizando com aspirações gerais humanas para ter
sucesso nos processos de produção da hegemonia. A pergunta de Gramsci é; “quais
são os limites máximos dentro dos quais é possível compreender e colocar a
noção de intelectual?” Reconhecendo a dificuldade para se identificar um critério
certo e eficaz, Gramsci identifica o erro metódico mais difuso, que busca no
intrínseco da atividade do intelectual, isto é em sua qualidade de pensamento.
Quando na verdade, tal caráter deve ser buscado no agrupamento que o
personifica, que desvenda seus interesses práticos e objetivos, sua própria autoconstrução
como sujeito. Tal perspectiva aponta para a possibilidade de universalização
para toda humanidade do trabalho intelectual, a qual deveria ser acessível a
todos, humanizando nossas existências. O exemplo clássico foi a superação pela
burguesia da argumentação instituída no mundo de então da representação da
nação pelo rei, ou por uma linhagem familiar, que passa a ser substituída pela
competição eleitoral, que para não representar uma mudança ampla se restringiu
aos critérios de eletividade do voto, sempre bloqueando a universalização do
sufrágio ( apenas para: proprietários, alfabetizados, homens, etc...).
“A relação entre intelectuais e produção não é imediata, como acontece
para os grupos sociais fundamentais, mas é mediada, e é mediada por dois tipos
de organização social; a) pela sociedade civil, isto é, pelo conjunto de
organizações privadas da sociedade, b) pelo Estado.” GRAMSCI 2001, p.138
O Caderno 25 faz uma reflexão sobre um período da
História Italiana, da sua unificação tardia no século XIX, denominado o
Risorgimento da Itália, no qual Gramsci claramente compara o processo de
emergência do Estado Nacional no seu país, com as revoluções na Inglaterra
(1688), EUA (1775-83), e França (1789-99), identificando uma reparação
conservadora entre as massas e as lideranças. Na verdade Gramsci identifica uma
minoridade nas massas e elites italianas, que ao serem simplesmente conduzidas
e condutoras exclusivas não haviam feito o esforço de autoidentificação, que
ele percebera nos casos da Inglaterra, EUA e França, que portanto se auto responsabizaram
e ganharam visibilidade. Desenvolvendo uma relação complexa (histórica e
geográfica) em relação ao par; hegemonia/subalternidade, não apenas econômica,
mas também cultural e social.
“Nós não conhecemos a Itália. Pior ainda: faltam-nos os instrumentos
adequados para conhecer a Itália como ela realmente é. Portanto, nos
encontramos na quase impossibilidade de fazer previsões, de nos
orientarmos...Não existe uma história da classe operária italiana. Não existe
uma história da classe camponesa...” GRAMSCI
2001 p. 143
ANTÔNIO GRAMSCI E SEUS DESDOBRAMENTOS CONTEMPORÂNEOS:
Nesse sentido, o pensamento gramsciano gera em nossa contemporaneidade
uma série de pensadores atuantes, que assumem sua filiação de forma explícita,
pensando a partir de periferias diversas, que produzem uma grande variedade de
construções. Os desdobramentos dessa reflexão terão um importante papel na
emergência de identidades variadas, que possibilitarão lutas e conquistas
variadas. É importante assinalar a mobilização e o engajamento dessas lutas
muitas vezes giram em torno da espacialidade, da construção de um lugar,
denunciando condições de exclusão a partir de suas condições físicas. O
primeiro dos pensadores a ser mencionado é o historiador Indiano Ranajit Guha
(1923-), que estabelece com grande pioneirismo na Universidade Sussex, na
Inglaterra um grupo de pesquisadores em 1959, denominado “Subaltern Studies”.
No qual desenvolve uma abordagem anti essencialista e multipolar, claramente
baseada em Gramsci. A segunda menção é a pesquisadora indiana, Gayatri
Chakravorty Spivak (1942-), que desenvolve nos EUA, na Universidade de
Columbia, associada ao grupo do “Subaltern Studies,” escrevendo o livro “Pode
o subalterno falar?” (versão em inglês 1988 e português em 2010-UFMG),
usando Gramsci e o filósofo franco-magrebiano, Jaques Derrida (1930-2004). Ela
é crítica literária, sendo sua tese de doutorado sobre o poeta irlandês Yeats,
orientada pelo renomado Paul de Man. SPIVAK 2010 diferencia; o falar por, do
representar alguém. Essas propostas claramente partem do Caderno 25 dos “Quardeni.
di Carcieri” de Gramsci, um dos poucos com título, que recebe clara
denominação de; “Às margens da História: História dos Grupos Sociais
Subalternos”
"Sua crítica [de Spivak], de base marxista,
pós-estruturalista e marcadamente desconstrucionista, frequentemente se alia a
posturas teóricas que abordam o feminismo contemporâneo, o pós-colonialismo e,
mais recentemente, as teorias do multiculturalismo e da globalização.“ ALMEIDA, Sandra Regina Goulart (UFMG –
tradutora)
No Brasil, há uma grande diversidade de gramscianos,
começando por; Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), o tradutor dos Quaderni
di Carcere” formulador de um dos mais importantes artigos para a esquerda
brasileira; “A democracia como valor universal” no final dos anos
70, que propunha se afastar das formas de conquista violenta do poder, e é
fortemente influenciado pelas posturas do PCI de Enrico Berlinger, numa linha
direta com Gramsci. Outro pensador brasileiro, de vertente gramsciana é Leandro
Konder (1936-2014) filósofo e professor da UFF e da PUC-Rio, escreveu a “Questão
da Ideologia”, no qual percorre a abordagem de uma série de pensadores
sobre a estruturação da compreensão do real, e desse tema tão complexo, que
envolve a auto justificação de nossas práticas particulares. Além desses, Luiz
Werneck Vianna (1938-2024), sociólogo e professor da Puc-Rio, que escreve a “Revolução
Passiva, iberismo e americanismo no Brasil”, analisando a transformação da
sociedade brasileira de escravista e agrário-exportadora, em competitiva,
urbano e industrial, numa transição acomodada e articulada de forma autoritária
entre as elites apenas, sem envolvimento popular. Werneck também escreverá o “A
Modernização sem o moderno: análises de conjuntura na era Lula”, no qual
desenvolve a ideia de incompletude de nossa modernidade, que numa preservação
conservadora insiste em manter parcelas expressivas da nossa população
condenadas a exclusão. E, por último, Marcos del Roio (1954-) professor da
UNESP no campus de Marília SP, que organizou o livro Gramsci, Periferia
e Subalternidade em 2017 e escreveu Gramsci e Emancipação do
Subalterno em 2018, destacando a identidade sarda, e seu combate ao
positivismo e ao economicismo. Foi presidente da International Gramsci
Society do Brasil, defende a tese de que o movimento operário no
Brasil era americanista, e com uma visão maior de resultados para a categoria.
Esses são apenas alguns exemplos, dentre muitos
outros, que nos mostram a permanência das questões levantadas pelo velho
Gramsci, no mundo e no Brasil, e que aqui são destacadas a partir de três
vertentes importantes para nosso país. A primeira, uma certa minoridade de
nossas elites, que chegam tardiamente a modernização global, com um certo
complexo de vira-latas, e que recorrentemente não se identificarão com seu
próprio povo, produzindo uma forma de desenvolvimento excluidor. A segunda, uma
clara vertente autocrática e autoritária, que bloqueia os movimentos sociais
organizados, impedindo sua organização e também sua autoexpressão, mantendo um
perfil paternalista e autoritário de suas ações, muitas vezes criminalizando os
movimentos sociais organizados. E, por último, a presença de uma modernidade
incompleta, que na verdade se transforma sem efetivamente mudar, mantendo uma
estrutura espacial cheia de exclusões, vedando o Direito a Cidade, a partir da
absolutização do Direito de Propriedade, em claro detrimento do Direito á Vida.
Os reflexos dessa condição no nosso espaço construído estão por toda a parte de
nosso território, cidades e moradias, sendo a manifestação física mais
explícita de um desenvolvimento para poucos. A cidade brasileira se apresenta
ocupada em áreas restritas por guetos de ricos, com grandes áreas empobrecidas
sem infraestrutura e com antigos centros históricos abandonados. Um
rodoviarismo hegemônico, que a condena a um engarrafamento continuado, e com um
sistema de transportes público ineficiente de tarifas caras e com seus modais
desarticulados. Dominada por um esgarçamento contínuo de periferias
empobrecidas intermináveis, amorfas e dispersas sem qualquer infraestrutura. E,
por último com uma relação predatória com o seu meio ambiente apresentando
claras deficiências em seus sistemas de drenagem, esgotamento sanitário e
coleta de resíduos sólidos.
EXEMPLOS DE MOVIMENTOS sociais URBANOS SUBALTERNOS e
INVISIBILIZADOS
A partir desse momento é importante listar alguns
movimentos sociais, que construíram manifestações espaciais variadas,
entendendo a estruturação do espaço como item relevante para a autodeterminação
e autoexpressão desses mesmos grupos sociais. Grande parte deles, como veremos
estão invisibilizados, principalmente na perspectiva nacional do Brasil,
mostrando-nos como grupos sociais subalternos muitas vezes ainda permanecem sem
identidade, incapacitados de remontar sua própria história, a partir de seus
lugares.
O primeiro é o movimento de 1695 do Quilombo de
Palmares; em 20 de novembro com a morte de Zumbi, após uma série de expedições
sobre um território de 27 mil M2, 1/3 do Reino de Portugal, com 10 aldeias em
permanente luta com as forças coloniais nos séculos XVI e XVII. Houveram 17
missões destruidoras (2holandesas e 15portuguesas) que pretenderam suprimir a
Rebelião do Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga no Estado de Alagoas, que
chegou a ter 11mil pessoas. Palmares era uma monarquia eletiva nos moldes do
que existia na África de então foi dizimada pelas forças coloniais. Há apenas uma
descrição sobre o Quilombo numa carta de 1687; “São muitos em número, e cada
vez mais. Não lhes falta destreza nas armas, nem no coração ousadia.” GOMES
2019 p.11. No entanto, seu apagamento é um fato para qualquer um que visite a
Serra da Barriga em Alagoas, grande parte dos vestígios das implantações e
vilas foram dizimadas, e a compreensão de sua disposição e espacialidade é hoje
impossível.
“Por força da lei 12.519, de 2011, a data se transformou no Dia Nacional
de Zumbi e da Consciência Negra...Em 2018, apenas 1047 municípios, de um total
de 5561 optaram pelo feriado. Em alguns estados, como Rio Grande do Norte,
Ceará, Pernambuco, Pará e Rondonia, nenhuma cidade se animou a celebrá-lo como
um dia de descanso... Os historiadores, Jean Marcel Carvalho França e Ricardo
Alexandre Ferreira, professores da UNESP... Afirmam que traçar a biografia de
Zumbi seria hoje uma tarefa impossível.” GOMES
2019 página422
O segundo acontecimento histórico, que destaco fora
do Brasil foi o movimento da Revolta do Haiti de 1791. A grande revolta negra
contra a escravidão se iniciou em agosto, dois anos após a Revolução Francesa,
após a Cerimônia de Bois Caiman, na Planície Norte, que contou com a
participação de milhares de marrons (escravos fugitivos). O Haiti tinha 120mil
escravos, 77% da população total da ilha, no Brasil em 1750, os escravos eram
50% da população. Importante aqui destacar uma citação de Thomas Piketi, que
demonstra claramente como as narrativas centrais contemplam os grupos
subalternos numa condição sempre periférica, mesmo quando se trata daquelas que
defendiam a tese da ampliação libertária, o abolicionismo ou a supressão da
monarquia;
“Alexandre Moreau de Jonnès – conhecido pelos muitos materiais
estatísticos sobre os escravos e seus donos que compilou em diversas colônias a
partir dos recenseamentos e pesquisas administrativas realizados desde o século
XVII e abolicionista convicto – propõe em 1842, que os escravos ressarçam o
valor total da indenização realizando “trabalhos especiais” não remunerados
pelo tempo que for necessário. Ele insiste no fato de que isso também ensinará
aos escravos o significado do trabalho.” PIKETI
2020 página210
É também interessante mencionar como Gramsci destaca
aspectos sobre as complexas interações dos movimentos sociais subalternos, que
envolvem; o espontaneísmo e a direção racional. Uma tendência de considerá-los
como movimentos folclóricos, aonde sua apropriação social, pela historiografia
hegemônica invariavelmente como; bizarros, desequilibrados, curiosidades,
localizados na periferia da cultura e da Política. Um dos movimentos destacados
pelo próprio intelectual sardo foi sobre Davide Lazzaretti (1834-1878); um
pregador do Monte Amiata na Toscana Itália, chamado do Cristo
dell´Amiata, personagem do Teatro Pobre de Montichiello e cantatas
folclóricas, republicano, anti clerical, luta pela unificação da Itália contra
as forças do pontificado de Roma.
“...Este era o costume cultural do tempo: em vez de estudar as origens
de um acontecimento coletivo, e as razões de sua difusão, de seu ser coletivo,
isolavam o protagonista e se limitavam a fazer sua biografia patológica, muito
frequentemente partindo de motivos não comprovados ou passíveis de
interpretação diferente: para uma elite social, os elementos dos grupos
subalternos têm sempre algo bárbaro ou patológico” GRAMSCI 2001, p. 203
Esse movimento na Itália possui profundas analogias
com outro acontecimento notável no Brasil, que foi a revolta de Antônio
Conselheiro (1830-1897), o terceiro a ser destacado nesse texto. Conselheiro
era um conselheirista, firmando-se numa revolta num povoado no sertão da Bahia em
1874, denominado Canudos (Arraial do Bom Jesus - 5 mil domicílios e 20 mil
pessoas), caixeiro viajante, órfão de mãe aos 6 anos, gostava de ler, dava
aulas numa fazenda no sertão do Ceará (Quixeramobim), abandonado pela mulher. Estabelece
no Arraial de Canudos uma resistência aos Coronéis do Nordeste, sendo também
monarquista, anti clerical e religioso. Atualmente, há no local o Parque
Estadual de Canudos, um sítio notável no sentido de deixar registrado esse
movimento, que ainda não teve sua narrativa inteiramente esclarecida. E
principalmente, sua espacialidade plenamente entendida, como uma forma
insurgente de resistir a um Estado autocrático e autoritário.
O quarto destaque aqui assinalado é mais um momento
invisível de nossa historiografia foi o de 1904, na capital da República, o Rio
de Janeiro, e em Niterói, denominado como; A Revolta da Vacina. Em 9 de
novembro foi aprovada pelo Senado Federal a lei da obrigatoriedade da vacina da
Febre Amarela. Em março de 1904, uma lei já havia regulamentado o serviço de
profilaxia na cidade, concedendo poderes arbitrários ao Prefeito Pereira Passos
nomeado pelo Presidente Rodrigues Alves, dentre eles o de demolir as edificações
consideradas insalubres. Em novembro de 1904, a cidade era um verdadeiro
canteiro de demolições e desalojamento do seu precarizado que habitava os
cortiços e outras edificações insalubres, que recebiam ordem de abandonar suas
habitações, nas quais eram locatários, sem qualquer compensação. As rebeliões e
trincheiras se estenderam do dia 9 ao dia 15 de novembro, tendo os rebeldes se apoderado
do Quartel da Polícia na Rua Frei Caneca, depredando edificações e o serviço de
bondes da cidade. No dia 16, O Governo Federal decreta Estado de Sítio na
cidade. Um autor assinala claramente a inadequação do nome da Revolta, que
talvez deveria ser nomeada como a Revolta dos Desalojados.
“Ela (Revolta da Vacina) sacrificou grupos subalternos em proveito dos
interesses mais gerais das classes dominantes, sob a hegemonizada burguesia
cafeeira paulista...Ao mesmo tempo foi proveitosa aos interesses particulares
do capital privado...desde o capital bancário internacional, de onde provieram
os empréstimos...passando pelas grandes companhias empreiteiras, especuladores
e construtores, até as diversas frações do capital comercial, financeiro e
industrial que puderam permanecer ou vieram se instalar nas áreas remodeladas.” BENCHIMOL 1992 página328
Por último, destaco outro movimento sobre o qual
ainda existem muitas lacunas de relatos, que é o da Escravidão Negra no Brasil,
de 1500 a 1888, estruturado a partir da colonização portuguesa (1500-1822), mas
mantido após a libertação do julgo colonial. O Brasil é o último país da
unidade econômica do Atlântico Europeu a decretar seu fim, essa instituição
marca o perfil do Brasil até hoje. Em 1808, quando a corte portuguesa se
transfere para o país, o Brasil tinha cerca de 3milhões de habitantes, dos
quais cerca de 50% eram escravos. No ano de 1850, a cidade do Rio de Janeiro
contava 250 mil habitantes, dos quais 110mil ou 44% da sua população era
escrava. Em 1865 é decretada a Lei do Sexagenário, libertando os escravos com
mais de 60 anos, em 1871, a Lei do Ventre Livre, na qual os proprietários das
mães dos escravos libertos, denominados “ingênuos”, deveriam cria-los até os 6
anos, para receber do Estado uma indenização, ou então mantê-los até os 21 anos
fazendo-os trabalhar em troca de salários. Fato, que certamente determinava uma
super exploração dessa mão de obra, beneficiando práticas patriarcais e
senhoriais de nossa elite agrário-exportadora. Em 1888, com a supressão da
escravidão se intensifica a política da imigração europeia e japonesa, o que
certamente se constitui numa crueldade, numa falta de solidariedade com a massa
de população negra existente no país, que então, se pautava por um claro desejo
de embranquecimento de sua população, emblematicamente expresso no quadro A
redenção de Cam, mostrado aqui. Em 2010, no último censo do IBGE; 48% da
população se declarou branca, 43% mestiça, 8% negra, e 1% asiática e indígena.
Sob a alegação de inviabilizar a indenização cobrada pelos ex proprietários de
escravos, que já se mobilizavam para alcançar esse benefício, o Ministro da
Fazenda manda queimar toda a documentação da escravidão, mais uma vez
invisibilizando uma parte de nossa história.
“Não fazia muito tempo, Rui Barbosa, Ministro da Fazenda do Governo
Provisório, mandara queimar toda a documentação relativa a escravidão existente
no ministério, alegando que o fazia para apagar a mancha negra das páginas da
nossa história.” BENCHIMOL 1992
página311
Figura 1: A Redenção de Cam, quadro do pintor espanhol
Modesto Broco, 1895, mostra-nos o desejo de embranquecimento da população brasileira. |
Ao final, no esforço de compor esse quadro de
compreensão da estruturação de nossa espacialidade territorial, citadina e de
nossas moradias cabe destacar uma interpretação notável de nossa estrutura
econômica e social do mundo contemporâneo ocidental. Ainda pouco mencionada, o
livro, “O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo”, de
Giovanni Arrighi, que destaca as diversas supremacias que operaram no sistema
capitalista, desde seu advento nas Cidades Estado da Itália até a atual
hegemonia dos EUA. ARRIGHI, 1996 parte de um mapeamento histórico e geográfico,
das Cidades Estado Italianas no século XIV, que de forma pioneira viveram o
processo de descoberta de que o poder não está na posse de mercadoria ou na propriedade
de terras, mas na sua base monetária e financeira, na concentração e acúmulo de
moedas. Cidades como Gênova e Veneza, que concentraram os primeiros banqueiros
da história descobriram a contabilidade cruzada, se beneficiando muito mais das
descobertas Ibéricas do que Espanha e Portugal, que promoveram as grandes
viagens, mas acabaram endividados, com essas cidades e seus banqueiros.
Giovanni Arrighi destaca o longo prazo, e o processo cíclico preso numa
constante repetição, que se sucede da virtuosa concentração produtiva ao
desenfreado processo especulativo abstrato. Esse processo se repetirá de forma
recorrente migrando entre diferentes organizações estatais pelo mundo,
mostrando-nos a história das grandes finanças. Depois das Cidades Estado
Italianas (Gênova e Veneza), o segundo exemplo, será a Holanda, ou a Liga
Hanseática, que descobriu e desenvolveu, na época do capitalismo mercantil, o
potencial especulativo do armazenamento de especiarias e mercadorias e sua
articulação numa bolsa de valores, que promete lucros no futuro, a partir da
lógica dos negócios e promessas especulativas.
“Permitam-me enfatizar aquilo que me parece ser uma aspecto essencial da
história do capitalismo; sua flexibilidade ilimitada, sua capacidade de mudança
e adaptação. Se há, segundo creio, uma certa unidade no capitalismo, da Itália
do século XIII até o Ocidente dos dias atuais, é aí, acima de tudo, que essa
unidade deve ser situada e observada... Em certos períodos, inclusive períodos
longos, o capitalismo de fato pareceu especializar-se, como no século XIX,
quando se deslocou tão espetacularmente para o novo mundo da indústria.” ARRIGHI 1996 página4
“...quando os agentes capitalistas não têm expectativa de aumentar sua
própria liberdade de escolha, ou quando essa expectativa é sistematicamente
frustrada, o capital tende a retornar a formas mais flexíveis de investimento –
acima de tudo sua forma monetária. Em outras palavras, os agentes capitalistas
passam a preferir a liquidez, e uma parcela incomumente grande de seus recursos
tende a permanecer sobre forma líquida.” ARRIGHI
1996 página5
Na sequência, logo depois da Liga Hanseática, a
Inglaterra assume a supremacia no sistema capitalista internacional, com a
retirada dos holandeses do comércio internacional para se transformarem nos
banqueiros da Europa. A Inglaterra nos primeiros sinais da Revolução Industrial
assume uma concentração de riqueza sem par, demonstrando inicialmente uma
capacidade ímpar de super explorar seu entorno imediato (irlandeses) e depois o
resto do mundo. Num segundo patamar, mas também de forma sincrônica com a Inglaterra,
a França desenvolve uma forma particular de acumulação primitiva que é
específica, na sua histórica beligerância com o Reino Unido, desde a guerra dos
100 anos. Sua inserção internacional será ideologicamente central com a
Revolução Francesa, mas fomentará um capitalismo mais artesanal, agrário,
disperso e qualitativo que investirá fortemente numa super exploração de suas
colônias.
“...as sociedades de proprietários que prosperavam na Europa no século
XIX e início do século XX se caracterizavam por uma concentração extrema de
propriedade. Na França, no Reino Unido e na Suécia os 10% mais ricos detinham
durante a Belle Époche (1880-1914) entre 80% e 90% de tudo que havia para ser
possuído (terras, imóveis, ativos profissionais e financeiros, líquidos de
dívidas) e o 1% mais rico detinha, sozinho entre 60 e 70% de tudo o que havia
para ser possuído.” PIKETI 2020,
página247
Figura 2: Gráfico que mostra
a apropriação da renda nacional, pelos 10% mais ricos no mundo, mostrando-nos
como Brasil, Oriente Médio e India são países desiguais |
Em seguida a hegemonia inglesa emerge os EUA, uma
nova base do domínio capitalista mundial, inicialmente no segundo pós-guerra,
com um discurso anti-colonial no Oriente Médio, numa aparente domesticação do
imperialismo inglês. Mas em seguida usando-se de expedientes de contra
espionagem determina uma nova forma de dominação, realizada pelas suas grandes
corporações e multi nacionais. Os EUA também hierarquizam as nações pelo mundo
exercendo sua supremacia de forma diferenciada; nos paises mais desenvolvidos
como na Europa e Japão a partir do soft power. E, nos países da periferia e
semi-periferia do capitalismo, na América Latina, África e Oriente, a partir do
hard power, ou da utilização de tropas ou promoção de golpes de Estado. Por
fim, é preciso mencionar, que a sistematização de Arrighi e Piketi, ainda não
contemplam o fenômeno da China, nova potência mundial, que vem dominando os
ativos financeiros estadunidenses, território de atração do capitalismo de
acumulação primitiva, combinado com Planejamento Estatal, mas também sem o
mesmo poder bélico para se contrapor aos EUA. Mas assim como os BRICs; Brasil,
Russia, India, China e África do Sul se apresentam como promotores de um
desenvolvimento de grande concentração de renda, que na verdade atraem
desenvolvimentos a partir de sua capacidade de super explorar seu próprio precarizado.
ARRIGHI 1996 ainda irá destacar, que a partir da desarticulação do
fordismo-keynesianismo, no final dos anos 1970, começo dos anos 1980, com as
crises do petróleo, e com as eleições de Margareth Thatcher na Inglaterra
(1979) e Ronald Reagan nos EUA (1980), a ascensão do neoliberalismo. O mundo a
partir do declínio do Império Soviético (1989) passa a desmontar o Estado de
Bem Estar Social elegendo a disciplina financeira como paradigma do
comportamento de todos os Estados Nacionais, mais uma vez retornando a ciranda
financeira, que passa então a pautar o mundo. É a hegemonia do capital financeiro,
que mais uma vez assume a governança do mundo, mais uma vez abandonando a
produtividade e se dedicando a uma especulação sem precedentes, agora
potencializada pelas conquistas das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs)
“Desde então, (final dos anos setenta) todas as nações tem estado a
mercê da disciplina financeira, seja pelos efeitos da fuga de capitais, seja
por pressões institucionais diretas; “Sempre houve, é claro, um equilíbrio
delicado entre os poderes financeiros e estatais no capitalismo, mas a
desarticulação do fordismo-keynesianismo significou uma evidente guinada para
um aumento de poder do capital financeiro frente ao Estado nacional.”” ARRIGHI 1996, página03
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir desse mapeamento geral e breve estruturado a
partir das reflexões de Gramsci, de seus discípulos, de Arrighi e de Piketi
podemos compreender a forma de produção e reprodução da cidade brasileira. Uma
realidade periférica, com péssimos índices de distribuição de renda, com uma
incapacidade de suas elites de pensar por si mesma, na sua constante
criminalização dos movimentos sociais de luta pela espacialidade. O campo do
urbanismo e da arquitetura precisam reafirmar a necessidade premente de
promoção de um desenvolvimento distribuidor de renda e benefícios, pelo e a
partir do espaço. Torna-se central ouvir os movimentos sociais, usando
mecanismos de participação, que visem reestruturar o local e o sistêmico das
nossas cidades.
Portanto, acredita-se que os princípios de uma cidade
com equidade precisam ser explicitados de forma a dar sentido as imensas
manifestações de rebeldia e inconformismo das cidades, não para homogeneizá-los.
Os movimentos insurgentes devem encontrar uma série de princípios gerais, que
sintetizam a busca da promoção de uma maior equidade de rendas e oportunidades,
um território urbano onde está universalizado o acesso às infraestruturas
urbanas e as oportunidades. Por outro lado, é necessário reconhecer que precisamos
enfrentar o problema urbano brasileiro reformando a cidade existente,
promovendo ajustes em seus sistemas já instalados de forma a beneficiar a
todos, e não apenas uma minoria privilegiada. Nesse sentido torna-se
fundamental radicalizar as práticas democráticas, indo além da mera
representação parlamentar, mas instituindo práticas cotidianas diretas de
regulação dos orçamentos, planos e projetos. Busca-se portanto formular um
conjunto de princípios norteadores para as cidades brasileiras, que precisam
transformar o modo como vêm sendo construídas, para tanto, sugere-se priorizar
quatro proposições objetivas:
1. A Cidade deve ser compacta e densa, evitando-se a
dispersão interminável e enfatizando-se o papel aglutinador do antigo centro
histórico. Os instrumentos contidos no Estatuto das Cidades devem ser operados
no sentido da preservação de seu contínuo construído, regulando o Direito de
Propriedade;
2. A Cidade deve ser lugar da convivência da
diversidade de classes e de usos, evitando-se os guetos de ricos e pobres e a
monofuncionalidade. A promoção da urbanização de favelas e a busca de sua
integração aos tecidos dos bairros adjacentes deve reforçar o esforço de
inserção social de todos seus estamentos e classes, utilizando-se inclusive dos
sistemas de transportes sistêmicos para enfatizar sua reinserção integradora;
3. A Cidade deve ter mobilidade efetiva para todos,
evitando-se a exclusão determinada pela ineficiência ou tarifação alta dos
sistemas de transporte coletivo. As parcelas precarizadas da nossa população
devem ter acesso ao passe livre reivindicado, permitindo o acesso amplo a
diversidade de oportunidades que nossas cidades criam;
4. A Cidade deve ampliar o reconhecimento da ecologia
e dos biomas naturais locais, construindo-se melhor relação com a natureza,
permitindo uma apropriação social ampla dos ecossistemas e fomentando sua
expansão e convivência com o mundo artificializado do humano. Devem ser
implantadas obras e transformações que promovam maior ajuste entre a vida
urbana e a natureza, se adequando principalmente as chuvas tropicais de maior
intensidade.
NOTAS
[1]
Glotologia, ciência que estuda comparativamente as diversas línguas,
considerando suas origens e formação. (Sin.: glossologia, glótica.)
2. O sufrágio universal masculino foi decretado na
Itália em 1912, e apenas em 1945 admitiu a participação das mulheres.
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