sábado, 31 de maio de 2025

A PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO DA CIDADE BRASILEIRA: SUBALTERNIDADE PERIFÉRICA (SESSÃO TEMÁTICA: ST 9 – CIDADE, HISTÓRIA E CULTURA EM DISPUTAS)

 Pedro da Luz Moreira

Escola de Arquitetura e Urbanismo e Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense |daluzmoreira.pedro@gmail.com

ST 9 Cidade, história e cultura em disputas

Resumo:  A questão central do artigo aqui apresentado é a partir dos pressupostos teóricos de Antônio Gramsci, e seus atualizadores na contemporaneidade mais recente, no Brasil e no mundo, entender a questão da subalternidade, como visão de mundo, condicionadora e determinadora da produção e reprodução da cidade brasileira. Os exemplos selecionados de nossa história, no que se refere a articulação de movimentos sociais insurgentes, organizados para requalificar as condições espaciais dos grupos subalternos nos mostra como o esforço de invisibilização de nossas elites tem sido até agora vitorioso. Essa condição deriva de uma inserção periférica de nossas elites, que demonstra de forma recorrente uma incapacidade de entender o sistema das finanças mundiais, como condicionador de sua forma de pensar, sempre submissa às determinações do sistema globalmente engendrado. O reconhecimento dessa derrota, não significa, no entanto a sujeição às condições impostas pelo pensamento conservador, mas a compreensão de que o mapa das rebeliões e insurgências sociais precisam ser visibilizados e entendidos, para possibilitar a construção de uma espacialidade determinada pelas demandas moleculares e pulverizadas produzidas de baixo para cima. A mudança estrutural não se prende a uma pré concepção de um desenho ou modelo, mas celebra o processo de escuta do precariado, entendendo-o como única possibilidade de passar a ter um desenvolvimento social e econômico mais inclusivo. Se ao final são desenhados e explicitados uma série de princípios, eles devem ser entendidos como uma estratégia de provocação, que inicia um debate, mais do que um modelo.

Palavras-chave:  Cidade; Subalternidade; Equidade; Participação; Pulverização.


 

Title: THE PRODUCTION AND REPRODUCTION OF THE BRAZILIAN CITY: PERIPHERAL SUBALTERNITY

Abstract: The central issue of the article presented here is to understand the issue of subalternity, based on the theoretical assumptions of Antonio Gramsci and his recent followers in Brazil and the world, as a worldview that conditions and determines the production and reproduction of the Brazilian city. The examples selected from our history, regarding the articulation of insurgent social movements organized to requalify the spatial conditions of subaltern groups, show us how the effort to make our elites invisible has been successful so far. This condition derives from the peripheral insertion of our elites, which repeatedly demonstrates an inability to understand the global financial system as a conditioner of their way of thinking, always submissive to the determinations of the globally engendered system. The recognition of this defeat does not mean, however, submission to the conditions imposed by conservative thinking, but the understanding that the map of social rebellions and insurgencies needs to be made visible and understood, to enable the construction of a spatiality determined by the molecular and pulverized demands produced from the bottom up. Structural change is not tied to a preconception of a design or model, but celebrates the process of listening to the precariat, understanding it as the only possibility of achieving more inclusive social and economic development. If in the end a series of principles are designed and explained, they should be understood as a strategy of provocation, which initiates a debate, more than a model.

Keywords: City; Subalternity; Equity; Participation; Spraying..

Título: LA PRODUCCIÓN Y REPRODUCCIÓN DE LA CIUDAD BRASILEÑA: SUBALTERNIDAD PERIFÉRICA

Resumen: La cuestión central del artículo presentado aquí es, a partir de los presupuestos teóricos de Antônio Gramsci y sus actualizadores en la época contemporánea más reciente, en Brasil y en el mundo, comprender la cuestión de la subalternidad, como una cosmovisión que condiciona y determina la producción y reproducción de la ciudad brasileña. Los ejemplos seleccionados de nuestra historia, relacionados con la articulación de movimientos sociales insurgentes, organizados para recalificar las condiciones espaciales de grupos subordinados, nos muestran cómo el esfuerzo por invisibilizar a nuestras élites ha tenido éxito hasta ahora. Esta condición deriva de una inserción periférica de nuestras élites, que demuestra repetidamente una incapacidad para comprender el sistema financiero mundial, como un condicionante de su forma de pensar, siempre sumisa a las determinaciones del sistema engendrado globalmente. El reconocimiento de esta derrota, sin embargo, no significa el sometimiento a las condiciones impuestas por el pensamiento conservador, sino la comprensión de que el mapa de las rebeliones e insurgencias sociales necesita ser visibilizado y comprendido, para permitir la construcción de una espacialidad determinada por factores moleculares y demandas pulverizadas producidas desde abajo hacia arriba. El cambio estructural no está ligado a una preconcepción de un diseño o modelo, sino que celebra el proceso de escuchar al precariado, entendiéndolo como la única posibilidad de lograr un desarrollo social y económico más inclusivo. Si al final se diseñan y explican una serie de principios, deben entenderse como una estrategia provocadora, que inicia un debate, más que un modelo.

Palabras clave: Ciudad; Subalternidad; Equidad; Participación; Pulverización..

 INTRODUÇÃO

O presente texto aborda as conexões existentes entre o espaço construído pelo homem no Brasil (cidades e sua arquitetura), uma parte da filosofia contemporânea, e o termo Subalternidade, como um termo caracterizador da cultura brasileira. Essas anotações fazem parte de uma série de manuscritos que todo processo de montar uma aula disparam no seu professor, no âmbito da graduação, e na Pós graduação em Arquitetura e Urbanismo. Elas tentam explicitar a complexa relação existente em nossa sociedade entre uma visão de mundo (Weltanschauung) particular e a responsabilidade de uma formação inaugural e continuada para os estudantes e profissionais que militam no ofício crítico de produção do abrigo e da cidade, a arquitetura e urbanismo. A disponibilização desses apontamentos num artigo representam uma tentativa de sistematização de uma teoria, que parte de minha tese de doutorado defendida em 2007 para obtenção do título de Doutor, que pretendia compreender a forma de produção e reprodução da cidade brasileira, a partir dos conceitos de plano, projeto, ideologia, hegemonia e subalternidade. Essas reflexões e questionamentos sobre as formas de desenvolvimento, produção e reprodução da cidade brasileira, que derivam de um projeto exclusivista de suas elites, que está no cerne da sua própria sociedade. A acepção da Subalternidade, parte de um dos maiores dramaturgo de nosso país, Nelson Rodrigues, que num de seus lampejos críticos-provocativos determinou num sensível diagnóstico, a alma brasileira;

Por "complexo de vira-lata" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima. RODRIGUES, https://pt.wikipedia.org/wiki/Complexo_de_vira-lata

Além do genial dramaturgo, parte-se também do filósofo marxista e italiano Antônio Gramsci, que nasceu na Sardenha em 1891 e morreu em Roma em 1937, com apenas 46 anos, e, que apesar da pouca idade possui potentes reflexões para o nosso mundo contemporâneo sobre a subalternidade, notadamente no Quadern  25, que recebe o título;  Às Margens da História (História dos Grupos Sociais Subalternos)”. Além dele apresento os desdobramentos de seu pensamento, que chegaram a nós pelas reflexões de diversos pensadores atuais, que se auto denominaram como participantes de diversos grupos de pesquisas, denominados, subaltern studies, e que ancoram suas teorias nos seus pensamentos. Além do embasamento teórico de Gramsci são apresentados momentos de nossa história, que nos mostram o esforço de nossas elites para apagá-los. Logo após, busco explicitar de forma muito sucinta, a maneira da inserção de nosso desenvolvimento econômico social no contexto global do Ocidente, apontando como o capitalismo apresenta no longo prazo um desenvolvimento cíclico e repetitivo, que retorna de forma recorrente a tendências especulativas. Essa última, rápida argumentação está embasada na teoria desenvolvida por autores como ARRIGHI 1996 e PIKETI 2020, que compreendem o mundo como um sistema governado pelas altas finanças, que pautam nosso cotidiano, e portanto a construção de nossas cidades e moradias. Ao final, são apresentados quatro princípios que deveriam passar a pautar a produção e reprodução da cidade brasileira. Esses quatro princípios devem ser vistos como uma provocação, que na verdade deveria iniciar um debate sobre os rumos da ocupação do espaço em nosso país, que na verdade precisa encontrar formas possibilitadoras do pleno engajamento de sua população.

ANTÔNIO GRAMSCI:

A biografia de Antônio Gramsci apresenta um vínculo forte com os grupos sociais subalternos, uma vez que ele próprio nasce e aí permanece na rural, arcaica e pobre Ilha da Sardenha, migrando em 1911, com vinte anos, para a desenvolvida, industrializada, urbana e rica Turim, no norte da Itália. Além disso Gramsci era filho de pais muito pobres, teve de trabalhar desde criança, seu pai foi preso ainda na sua infância, tendo a família que se sustentar com os trabalhos de costura de sua mãe. Ainda muito cedo teve um problema de saúde muito sério, que foi uma tuberculosa óssea, que representou uma fragilidade física para toda sua vida. Apesar, disso tudo Gramsci sempre demonstrou uma grande capacidade de estudo, pesquisa e conexão de assuntos, recebendo uma bolsa de estudos para cursar na universidade de Turim, a escola de letras e línguas na cidade de Turim.

Turim era um local que concentrava fábricas como a FIAT e a LANCIA, que atraiam imensos contingentes de operários e nos primeiros anos do século XX concentrou importantes movimentos dos Conselhos de Fábrica, que lutavam pela auto-gestão dessas industrias. O sistema de pensamento de Gramsci terá sempre um sentido articulador das lógicas espaciais, econômicas, sociais e culturais, no qual está inserido, que se articulam numa complexidade crescente. Num sistema de centros hierarquicamente articulados, numa estrutura de dependências mútuas, aonde a relação entre hegemonia e subalternidade embasa e organiza processos complexos de auto-identidade, que partem de centralidades e periferias interdependentes. A subalternidade da Itália nesse sistema mundial, a minoridade da sua burguesia frente as burguesias; inglesa, americana e francesa, sua declaração de dependência do Estado Nacional, a fraqueza do liberalismo italiano frente a essas outras três nações. A posição da Sardenha e a parte meridional da Itália agrária, católica e arcaica, frente ao norte industrializado, urbano e moderno. O marco referencial será sempre a história particular desses diferentes lugares, que a partir da transformação moderna da constituição da Unidade Nacional inclui ou exclui uma participação maior das suas populações, que assumem um caráter conformador de completude ou incompletude.

“Da Sardenha, metade agrária, camponesa e pobre do Piemonte ao Mezzogiorno todo colonizado e feito periferia do norte do reino da Itália. Mas, a rigor, toda a Itália já era periferia da França, pois o Risorgimento italiano, como revolução burguesa com participação difusa das massas, como revolução passiva, fez da Itália uma região periférica e subalterna, de resto como toda a região mediterrânea. Em outro círculo, a própria Europa corre o risco sério de se tornar um centro periférico diante da ascensão dos Estados Unidos.” ROIO, Marco del 2017 página10

Nesse desenvolvimento, a busca por um desenvolvimento justo e equilibrado, que distribua benesses de forma mais equânime entre precariados e empoderados é o objetivo da estruturação do pensamento gramsciano. Uma forma, que entende a autoexpressão de cada cidadão como um processo de alcance da maioridade enquanto a capacidade de autodeterminação, e questiona a fórmula estratificada do “status quo” atual, cindido entre representantes e representados. O desenvolvimento histórico dos objetivos a serem alcançados, nesse sistema de pensamento, possui um profundo vínculo com o cotidiano prático e efetivo - filosofia da práxis - dos subalternos, que precisam ser levados a se diferenciar como os grandes prejudicados, pelo funcionamento geral da sociedade, e ganhar consciência dessa condição. A concentração de renda contínua na minoria da população, que desfruta da exclusividade da propriedade e a partir daí opera sua manutenção deve ser justificada por uma narrativa ou “ideologia”. Para Gramsci, o termo “ideologia” assumirá um caráter mais neutro, como um sistema de pensamento que estrutura o agir de qualquer pessoa, havendo ideologias progressistas e conservadoras, que lutam pela conquista do metabolismo social, na medida em que recebem a adesão por um maior número de defensores. No entanto, não significa que ela possa ser livre das determinações e interesses sociais dos diferentes grupos sociais, que sempre desenvolverão vínculos profundos com sua forma de pensar. A perspectiva de Gramsci é a de impossibilidade de libertação de qualquer agente das amarras ideológicas, estando todos os grupos sociais condicionados por suas determinações. Essa forma de conceber o conceito de “ideologia” não ficará restrito aos gramscianos, mas contaminará diferentes correntes, inclusive em nosso mundo contemporâneo.

“Desse modo, toda época produz um conjunto de discursos e ideologias contraditórios que visam legitimar a desigualdade tal como ela existe ou deveria existir e descrever as regras econômicas, sociais e políticas que permitem estruturar o todo.” PIKETI, 2020 pág.11

Esse tipo de pensamento, que não se conforma com a forma de operar do “status quo” do poder instituído, produzindo de forma contínua uma massa de excluídos, que precisa ganhar consciência de sua condição de subalterno. Em 1919, Gramsci funda com Palmiro Togliatti a Revista “L´Ordine Nuovo”, um periódico que discute política, cultura e sociedade pretendendo pelo didatismo atingir os temas e as preocupações desse mesmo precarizado. Em 1926, logo após ser eleito deputado pelo Partido Comunista Italiano (PCI) pelo Vêneto é preso pela polícia de Mussolini, que havia tomado conhecimento da capacidade do jovem sardo, quando ainda militava no Partido Socialista Italiano (PSI). Gramsci ficará preso nos cárceres do fascismo, legando uma reflexão importante para nossa contemporaneidade, nos seus apontamentos nos “Quaderni di Carceri”. Apesar de marxista, Gramsci critica fortemente o positivismo do marxismo da 2ª Internacional, que desde o advento da Revolução Russa de 1917 havia se restringido a um economicismo redutor, se aproximando muito dos questionamentos de Rosa Luxemburgo, a líder polonesa fundadora da Liga Spartakus na Alemanha, de então. O questionamento de Gramsci envolve sempre uma complexa interação dialética entre; Revolução-Ruptura, Reforma-Gradualismo, diferenças históricas entre Oriente e Ocidente, Estado e Sociedade Civil, Ideologia e Hegemonia. Por exemplo, a construção da hegemonia envolve um complexo gradualismo entre Coerção e Convencimento, onde existiria na relação entre representados e representantes um movimento que variava da submissão coercitiva unilateral até a legítima aceitação da representação. Um movimento entre a opressão supressora da identidade e a aceitação participativa da representação, nessa última condição se localizava a legitimidade efetiva da democracia. Questões como a centralidade e a subalternidade eram trespassadas por discursos, persuasão e convencimento dos diversos atores, que atingem a maioridade como representados, na medida em que controlam seus representantes. Há implicações claras nessa forma de raciocínio em todos os relacionamentos que envolvem o poder e seu exercício, aonde se concebe a História, como ciência de aprendizado contínuo, aonde a autoidentidade depende da formulação de uma narrativa de autoconstrução. Há também no campo da conformação do plano e do projeto, uma possível analogia entre as condições de usuários, desenhistas ou planejadores e o Estado, que na medida que se posicionam de forma equânime e transparente desenvolvem os desejos de forma madura e adequada. Na Itália, com a presença indelével da Igreja, a política como participação e construção coletiva era no tempo de Gramsci bloqueada pela orientação do abstencionismo por parte do catolicismo.

“Escreve Gramsci no Caderno25, que em seguida ao abstencionismo dos católicos da vida política, podia nascer entre os camponeses uma tendência subversiva-popular-elementar as massas rurais na ausência de partidos regulares, cercavam-se de dirigentes locais que emergiram dela própria, misturando a religião e o fanatismo ao conjunto das reinvindicações...”  ROIO 2017 página28

A consciência de Gramsci do desenvolvimento capitalista, sempre nos remete ao confronto entre o arcaico e o moderno, o subalterno e o dominante, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar e interessada. Mas logo após sua chegada a Turim, Gramsci circulava no meio sindical, como produtor de ensaios e textos para jornais ligados ao Partido Socialista Italiano (PSI), ao mesmo tempo, era demandado pela Faculdade de Letras de Turim para temas acadêmicos, como os estudos de glotologia[1] do professor Matteo Bartolli, uma referência dos neolinguistas. Também a língua, sua evolução e seu desenvolvimento irão sempre constituir para Gramsci como um ordenamento estruturado de forma molecular e dispersa, e de baixo para cima, com transformações contínuas, que lhe permitiam analogias com a política. Além disso, a questão da língua sempre esteve nas reflexões de Gramsci relacionada à organização da cultura e à função dos intelectuais orgânicos das diferentes classes sociais. Foi exatamente essa celebração do acaso no devir histórico, que sempre mobilizou a curiosidade de Gramsci, e sua capacidade de pensar estratégico, aonde a pretensão ao controle total, já denotava sua crítica aos processos revolucionários violentos. E, as formulações posteriores da distinção entre guerra de posição e guerra de manobras, e o próprio conceito de hegemonia, que dinamiza a ideologia como instrumento efetivo de ação no cotidiano. Mas, outro professor, que incentivou também Gramsci ao ensaísmo foi Umberto Cosmo, livre-docente de Literatura Italiana, que incentivou-o a escrever sobre Maquiavel desde 1917, buscando uma ponte entre a cultura e a política, que tanto seduzia o jovem sardo. Nesse sentido, sua simpatia pela ação de ruptura das vanguardas culturais, que contaminavam o ambiente italiano do início do século XX é apontado sempre com destaque de sua vivacidade intelectual, além de um traço de pertencimento geracional. A revista “La Voce” de caráter burguês e ”L´Ordine nuovo” fundado em 1919, da qual fazia parte mostram esse esforço de tentar dar agilidade e vivacidade à acadêmica e “balofa cultura italiana”, nas palavras do próprio Gramsci. Percebe-se nas posições do filósofo da Sardenha, já na sua juventude um profundo vínculo com a cultura humanista italiana, que muito além da política constroe uma conexão entre vida cotidiana e estratégia de construção socialista. Uma continuidade didática, e que celebra na atividade política uma capacidade pedagógica de constante aperfeiçoamento, cada vez mais distante do idealismo, fazendo um enorme esforço em direção ao materialismo e ao pragmatismo.

"Em 1913, nos meses de interrupção da atividade universitária, Gramsci pode assistir na sua ilha à campanha para as primeiras eleições com sufrágio semiuniversal[2]  e dela retirou uma impressão muito viva da eficácia da política como fator de mobilização e transformação das massas camponesas, admitidas pela primeira vez ao exercício do voto. Em setembro, na esteira das eleições, realizou seu primeiro ato político público, aderindo ao grupo de ação e propaganda dos interesses da Sardenha, de inspiração antiprotecionista, que se constituira no verão. São particularidades de certa importância, porque nos conduzem ao tema da desprovincialização e nos ajudam a entender a natureza do processo que se realizou no espírito do jovem sardo. A inscrição de Gramsci no PSI é parte integrante de sua nacionalização; com tal ato Gramsci não cortava as raizes territoriais, mas especificava a dimensão intelectual e política na qual buscaria a explicação e perseguiria a solução para as angústias e os problemas específicos da Sardenha, lugar originário e indelével da sua tomada de consciência dos antagonismos sociais." RAPONE 2014 p. 63 e 64 

Gramsci também construirá um forte vínculo entre linguagem e forma de estruturar o pensamento, negando de forma enfática o naturalismo, o economicismo e o mecanicismo, que imperava nos meios marxista do início do século XX. Mas ao mesmo tempo valorizando de sobremaneira a forma como a linguagem se estrutura, possibilitando a criação, a reformulação e a revolução dentro de parâmetros e regulações socialmente introjetadas em cada indivíduo. Para Gramsci, o estudo e o aprofundamento no fenômeno da linguagem sempre será proveitoso, reunindo criatividade e compreensão socialmente compartilhada, que na verdade impulsionam um devir histórico real e apartado do idealismo. Na questão da lingua internacional, o Esperanto, Gramsci sem dúvida já celebrava a internacionalização da solidariedade entre despossuídos, mas reafirmava a presença da necessidade pulverizada e molecular, que criaria as condições para a emergência da nova língua a partir do cotidiano, e não por decreto. Há nas referências linguísticas de Gramsci uma constante menção às energias sociais livres, que nunca irão parar de se desenvolver, fazendo pouco caso das narrativas que pensavam num estágio último e definitivo das contradições sociais, que para ele jamais cessariam. Há também aí, uma estratégia de combate ao capitalismo monopolista concentrador, que na Itália de então já operava procurando pautar os interesses gerais de forma unívoca e unidirecional, restringindo os interesses moleculares e pulverizados dos diversos agentes. A questão claramente entendia as sociedades ocidentais, com suas organizações da sociedade civil atuando de forma molecular, com uma pluralidade de interesses, com representações diversificadas que eram diferenciadas das sociedades orientais autocráticas e autoritárias, profundamente centralizadas.

“Gramsci sempre irá celebrar esse caráter indomável e avesso ao autoritarismo, que a língua carrega, como no caso da unidade linguística da Itália, proposta em seu tempo a partir do dialeto da toscana, proposta por Manzoni, ou no caso da adoção do Esperanto como facilitador da comunicação internacional. O linguista e filósofo sardo irá repelir com veemência a imposição de cima para baixo, sobre o argumento de que "a linguagem, ainda antes de mecanismo comunicativo, é produto em contínuo devir." RAPONE 2014 página56. 

Assim como, a linguagem, a cidade e a arquitetura, que é uma necessidade humana difundida e presente em toda a humanidade, afinal o homem em suas diversas culturas produz seu próprio abrigo, e não reconhece no planeta e no seu ambiente, tal qual está constituído, um acolhimento adequado. Afinal, existe a produção da arquitetura culta dos arquitetos, e aquela produzida pela autoconstrução, pela necessidade do abrigo, aonde as referências construtivas estão presentes, assim como na língua. Na historiografia da cidade e da arquitetura há sempre uma diferenciação entre os monumentos e as áreas habitação, onde o cotidiano, a reprodução da vida em suas necessidades objetivas se manifesta. Essa condição, de autorreprodução das técnicas de construção da sua própria sobrevivência se dissemina entre as pessoas conforme o vocabulário, que dominam, seja na materialidade disponível, ou na parcela aonde estão autorizados a realiza-la, o que vincula de forma definitiva, a linguagem à cultura do construir, que sempre tem profundas conexões com o lugar e com o tempo. Na materialidade disponível, nas tecnologias de domínio comum, na acessibilidade social do construir O que também constitui e está constituído na moradia, na cidade, na distribuição das infraestruturas, que nunca é a mesma em todos os lugares, justamente em função das variações dessa linguagem do construir, tanto no espaço, como na história.

"Mas aqui quem se pronuncia não é só o discípulo de Bartoli: é também o militante político para o qual opor-se ao esperanto equivale a declarar-se 'revolucionário' e 'historicista': de fato, significa afirmar que na base do devir histórico está 'a atividade das energias sociais livres', excluindo as utopias - isto é, a pretensão de buscar projetos abstratos, ao mesmo tempo arbitrários e ilusórios, sobrepostos ao agir dos homens - e combatendo a ideia de que o movimento da vida e da história, entendido por Gramsci como perpétuo 'fluir de matéria vulcânica liquefeita', possa atingir um estágio último e definitivo, porque hipoteticamente perfeito: 'Por isso abaixo o esperanto, tal como abaixo todos os privilégios, todas as mecanizações, todas as formas definitivas e enrijecidas de vida, cadáveres que empestam e agridem a vida em devir’” RAPONE 2014 página57

Aqui há uma profunda vinculação entre espaço nacional, esforço particular e individual, construção de uma mentalidade coletiva solidária, identidade linguística e cultural, consciência e determinação, particularidades que também estarão presentes na cidade e na arquitetura. Cosmopolitismo e Localismo. A ideia do Bem Viver, dos padrões socialmente compartilhados do que é a estruturação do território, da cidade e do habitar, que acaba sendo hegemonizado por representações impostas e manipuladas pelas classes dominantes. O sistema gramsciano de pensamento está fortemente estruturado em torno das dimensões da linguagem, do conceito de centro, periferia e de hierarquia, bem como a ideia de espacialidade e temporalidade diversificadas, que geraram especificidades, que precisam ser estudadas e entendidas. Tudo isso configura um instrumental importante para a compreensão da cidade e da arquitetura no nosso mundo contemporâneo, de nossa própria capacidade de autoidentificação como povo e cultura. Existe a coerção da hegemonia dominante, que será sempre a ideologia da classe dominante, mas também existe a potência das periferias ainda invisíveis e silenciadas, prontas, no entanto a ganharem sua autoexpressão, na medida em que promovem sua sobrevivência. A emergência das linguagens subalternizadas, invisibilizadas e silenciadas dependem da conquista e da formulação de sua auto-identidade, que não lhe será dada, mas precisa ser conquistada.

"O povo italiano, há cinquenta anos, não existia, era só uma expressão retórica, Não existia nenhuma unidade social na Itália, existia uma unidade geográfica. Existiam milhões de indivíduos dispersos no território italiano, cada qual vivendo para si mesmo, preso no seu torrão particular; ninguém sabia da Itália, cada qual falava um dialeto particular, acreditava que todo mundo estava limitado ao horizonte de sua aldeia. Conhecia o coletor de impostos, conhecia o carabineiro, conhecia o juiz e o tribunal: sua Itália. E, no entanto, esse indivíduo, muitos destes milhões de indivíduos superaram este estágio particularista, formaram uma unidade social, sentiram-se cidadãos, sentiram-se colaboradores de uma vida, que saia do horizonte da sua aldeia, que se estendia por espaços cada vez mais amplos do mundo, que se estendia ao mundo inteiro.... Ele fez com que um camponês da Puglia e um operário de Biella falassem a mesma língua, passassem, tão distantes, a se expressar de modo igual em relação ao mesmo fato, a dar um juízo igual sobre um acontecimento, um homem..." RAPONE 2014 páginas 66 e 67

Assim, nessa condição de subalterno no espaço social da Itália, Gramsci construirá uma das reflexões mais potentes do nosso tempo, aonde o sistema hierárquico de dominação é uma presença indelével, mas também uma possibilidade de transformação. Sua quase veneração pelo “Americanismo” e “Fordismo”, como inovações do capitalismo nos EUA, reconhecendo ao mesmo tempo maior liberdade das amarras da história européia, e mais dominação e exploração por sua eficiência de contornar o enfrentamento de classe, recalcado pela negação da alcunha de “operário”, soterrada pela conquista da denominação de “classe média consumidora”. A minoridade da burguesia italiana frente a inglesa, americana e francesa, sua permanente dependência do Estado Nacional, a fraqueza do liberalismo italiano frente a essas outras três nações vem da incompletude da sua reunificação (Risorgimento), sem a participação popular, numa transformação feita por cima com as elites temendo sempre a explosão das massas. A posição da Sardenha e a parte meridional da Itália agrária, católica e arcaica, frente ao norte industrializado, urbano e moderno. A reflexão de Gramsci terá sempre esse componente histórico espacial e cultural, que identifica especificidades, mapeia suas potencialidades e problemas, buscando sempre a estratégia da transformação. Mantendo sempre um otimismo propositivo; “Pessimismo da crítica e otimismo da práxis.” Há uma consciência do desenvolvimento capitalista, que sempre nos remete ao confronto-complementariedade entre o arcaico e o moderno, aonde as duas condições não são apenas polos antagônicos, mas realidades que tomam conhecimento mútuo, e muitas vezes exploram sua proximidade de forma complementar. Essa condição explica muito da nossa modernização no Brasil, sempre incompleta necessitando de forma contínua do arcaico, do precarizado. A questão dos intelectuais orgânicos, que nascem das condições objetivas da existência do precarizado, e que conseguem superar a sobrevivência, problematizando as razões de sua existência limitada. Capacidade de formulação de uma narrativa auto descritiva; Identidade e Representação. No campo do debate dos intelectuais orgânicos e dos intelectuais tradicionais, que no Brasil podem ser representados pelas trajetórias; de Marielle Franco, uma liderança orgânica da Favela da Maré, e a figura de Antônio Cândido, um intelectual paulista de grande abrangência e de cultura universalista, com amplo acesso à cultura e ao conhecimento, egresso da possibilidade conhecimento dado por sua condição de classe

“...processo histórico de formação das diversas categorias de intelectuais, que é observado em todo grupo social, por nascer na base originária de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe conferem homogeneidade e consciência de sua função no campo econômico.” GRAMSCI 2001, p.56

A questão das vivências como construtoras de narrativas, auto descritivas, das políticas de identidades do mundo contemporâneo possuem um grande vínculo com a ideia de intelectual orgânico de Gramsci. No sentido que a tarefa inicial de todo pensador seria a capacidade de se auto-representar, como uma experiência, que é também um saber a ser compartilhado por todos. Nesse sentido, o conhecimento assume uma outra dimensão, que considera as diversas vivências como saber, que ao ser compartilhado ilustra a todos. A humanidade se esclarece na medida em que toma conhecimento de sua diversidade e mistura, fazendo-nos relativizar nossos valores e crenças. Gramsci mantém viva a ideia advinda do marxismo do cosmopolitismo a ser compartilhado por todos que se ilustram com a inserção das novas narrativas, dando possibilidade de construção de uma História da |Humanidade. No entanto, ele reconhece a presença do conflito, do pensamento hegemônico, que é sempre o da classe dominante, que jamais cederá em sua condição de coerção e domínio. A capacidade de superar esse estágio não é encarado como um momento único e definitivo, mas um processo contínuo de afirmação de um conflito inacabável no seio da humanidade. A auto-organização da própria cultura é função dos intelectuais orgânicos das diferentes classes sociais, que conferem a auto-construção de sua própria identidade.. 

“Mas todo grupo social ao emergir da história da estrutura econômica, encontra, ou encontrou na história que desenvolveu até então, categorias intelectuais pré existentes, as quais se apresentam como figuras de uma continuidade histórica ininterrupta, não posta em discussão nem pelas mais complexas mudanças sociais e políticas. Desde os eclesiásticos, monopolizadores por longo tempo de alguns serviços essenciais até Croce que se percebe mais ligado a Aristóteles do que a Agnelli.” GRAMSCI 2001, p. 184

Gramsci entenderá como a função central do intelectual orgânico; organizar e conectar formas peculiares e historicamente determinadas nas próprias narrativas do grupo, superando a aparência dos interesses corporativos e se mimetizando com aspirações gerais humanas para ter sucesso nos processos de produção da hegemonia. A pergunta de Gramsci é; “quais são os limites máximos dentro dos quais é possível compreender e colocar a noção de intelectual?” Reconhecendo a dificuldade para se identificar um critério certo e eficaz, Gramsci identifica o erro metódico mais difuso, que busca no intrínseco da atividade do intelectual, isto é em sua qualidade de pensamento. Quando na verdade, tal caráter deve ser buscado no agrupamento que o personifica, que desvenda seus interesses práticos e objetivos, sua própria autoconstrução como sujeito. Tal perspectiva aponta para a possibilidade de universalização para toda humanidade do trabalho intelectual, a qual deveria ser acessível a todos, humanizando nossas existências. O exemplo clássico foi a superação pela burguesia da argumentação instituída no mundo de então da representação da nação pelo rei, ou por uma linhagem familiar, que passa a ser substituída pela competição eleitoral, que para não representar uma mudança ampla se restringiu aos critérios de eletividade do voto, sempre bloqueando a universalização do sufrágio ( apenas para: proprietários, alfabetizados, homens, etc...).

“A relação entre intelectuais e produção não é imediata, como acontece para os grupos sociais fundamentais, mas é mediada, e é mediada por dois tipos de organização social; a) pela sociedade civil, isto é, pelo conjunto de organizações privadas da sociedade, b) pelo Estado.” GRAMSCI 2001, p.138

O Caderno 25 faz uma reflexão sobre um período da História Italiana, da sua unificação tardia no século XIX, denominado o Risorgimento da Itália, no qual Gramsci claramente compara o processo de emergência do Estado Nacional no seu país, com as revoluções na Inglaterra (1688), EUA (1775-83), e França (1789-99), identificando uma reparação conservadora entre as massas e as lideranças. Na verdade Gramsci identifica uma minoridade nas massas e elites italianas, que ao serem simplesmente conduzidas e condutoras exclusivas não haviam feito o esforço de autoidentificação, que ele percebera nos casos da Inglaterra, EUA e França, que portanto se auto responsabizaram e ganharam visibilidade. Desenvolvendo uma relação complexa (histórica e geográfica) em relação ao par; hegemonia/subalternidade, não apenas econômica, mas também cultural e social.

“Nós não conhecemos a Itália. Pior ainda: faltam-nos os instrumentos adequados para conhecer a Itália como ela realmente é. Portanto, nos encontramos na quase impossibilidade de fazer previsões, de nos orientarmos...Não existe uma história da classe operária italiana. Não existe uma história da classe camponesa...” GRAMSCI 2001 p. 143

ANTÔNIO GRAMSCI E SEUS DESDOBRAMENTOS CONTEMPORÂNEOS:

Nesse sentido, o pensamento gramsciano gera em nossa contemporaneidade uma série de pensadores atuantes, que assumem sua filiação de forma explícita, pensando a partir de periferias diversas, que produzem uma grande variedade de construções. Os desdobramentos dessa reflexão terão um importante papel na emergência de identidades variadas, que possibilitarão lutas e conquistas variadas. É importante assinalar a mobilização e o engajamento dessas lutas muitas vezes giram em torno da espacialidade, da construção de um lugar, denunciando condições de exclusão a partir de suas condições físicas. O primeiro dos pensadores a ser mencionado é o historiador Indiano Ranajit Guha (1923-), que estabelece com grande pioneirismo na Universidade Sussex, na Inglaterra um grupo de pesquisadores em 1959, denominado “Subaltern Studies”. No qual desenvolve uma abordagem anti essencialista e multipolar, claramente baseada em Gramsci. A segunda menção é a pesquisadora indiana, Gayatri Chakravorty Spivak (1942-), que desenvolve nos EUA, na Universidade de Columbia, associada ao grupo do “Subaltern Studies,” escrevendo o livro “Pode o subalterno falar?” (versão em inglês 1988 e português em 2010-UFMG), usando Gramsci e o filósofo franco-magrebiano, Jaques Derrida (1930-2004). Ela é crítica literária, sendo sua tese de doutorado sobre o poeta irlandês Yeats, orientada pelo renomado Paul de Man. SPIVAK 2010 diferencia; o falar por, do representar alguém. Essas propostas claramente partem do Caderno 25 dos “Quardeni. di Carcieri” de Gramsci, um dos poucos com título, que recebe clara denominação de; “Às margens da História: História dos Grupos Sociais Subalternos”

"Sua crítica [de Spivak], de base marxista, pós-estruturalista e marcadamente desconstrucionista, frequentemente se alia a posturas teóricas que abordam o feminismo contemporâneo, o pós-colonialismo e, mais recentemente, as teorias do multiculturalismo e da globalização.“  ALMEIDA, Sandra Regina Goulart (UFMG – tradutora) 

No Brasil, há uma grande diversidade de gramscianos, começando por; Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), o tradutor dos  Quaderni di Carcere” formulador de um dos mais importantes artigos para a esquerda brasileira; “A democracia como valor universal” no final dos anos 70, que propunha se afastar das formas de conquista violenta do poder, e é fortemente influenciado pelas posturas do PCI de Enrico Berlinger, numa linha direta com Gramsci. Outro pensador brasileiro, de vertente gramsciana é Leandro Konder (1936-2014) filósofo e professor da UFF e da PUC-Rio, escreveu a “Questão da Ideologia”, no qual percorre a abordagem de uma série de pensadores sobre a estruturação da compreensão do real, e desse tema tão complexo, que envolve a auto justificação de nossas práticas particulares. Além desses, Luiz Werneck Vianna (1938-2024), sociólogo e professor da Puc-Rio, que escreve a “Revolução Passiva, iberismo e americanismo no Brasil”, analisando a transformação da sociedade brasileira de escravista e agrário-exportadora, em competitiva, urbano e industrial, numa transição acomodada e articulada de forma autoritária entre as elites apenas, sem envolvimento popular. Werneck também escreverá o “A Modernização sem o moderno: análises de conjuntura na era Lula”, no qual desenvolve a ideia de incompletude de nossa modernidade, que numa preservação conservadora insiste em manter parcelas expressivas da nossa população condenadas a exclusão. E, por último, Marcos del Roio (1954-) professor da UNESP no campus de Marília SP, que organizou o livro Gramsci, Periferia e Subalternidade em 2017 e escreveu Gramsci e Emancipação do Subalterno em 2018, destacando a identidade sarda, e seu combate ao positivismo e ao economicismo. Foi presidente da International Gramsci Society do Brasil, defende a tese de que o movimento operário no Brasil era americanista, e com uma visão maior de resultados para a categoria.

Esses são apenas alguns exemplos, dentre muitos outros, que nos mostram a permanência das questões levantadas pelo velho Gramsci, no mundo e no Brasil, e que aqui são destacadas a partir de três vertentes importantes para nosso país. A primeira, uma certa minoridade de nossas elites, que chegam tardiamente a modernização global, com um certo complexo de vira-latas, e que recorrentemente não se identificarão com seu próprio povo, produzindo uma forma de desenvolvimento excluidor. A segunda, uma clara vertente autocrática e autoritária, que bloqueia os movimentos sociais organizados, impedindo sua organização e também sua autoexpressão, mantendo um perfil paternalista e autoritário de suas ações, muitas vezes criminalizando os movimentos sociais organizados. E, por último, a presença de uma modernidade incompleta, que na verdade se transforma sem efetivamente mudar, mantendo uma estrutura espacial cheia de exclusões, vedando o Direito a Cidade, a partir da absolutização do Direito de Propriedade, em claro detrimento do Direito á Vida. Os reflexos dessa condição no nosso espaço construído estão por toda a parte de nosso território, cidades e moradias, sendo a manifestação física mais explícita de um desenvolvimento para poucos. A cidade brasileira se apresenta ocupada em áreas restritas por guetos de ricos, com grandes áreas empobrecidas sem infraestrutura e com antigos centros históricos abandonados. Um rodoviarismo hegemônico, que a condena a um engarrafamento continuado, e com um sistema de transportes público ineficiente de tarifas caras e com seus modais desarticulados. Dominada por um esgarçamento contínuo de periferias empobrecidas intermináveis, amorfas e dispersas sem qualquer infraestrutura. E, por último com uma relação predatória com o seu meio ambiente apresentando claras deficiências em seus sistemas de drenagem, esgotamento sanitário e coleta de resíduos sólidos.

EXEMPLOS DE MOVIMENTOS sociais URBANOS SUBALTERNOS e INVISIBILIZADOS

A partir desse momento é importante listar alguns movimentos sociais, que construíram manifestações espaciais variadas, entendendo a estruturação do espaço como item relevante para a autodeterminação e autoexpressão desses mesmos grupos sociais. Grande parte deles, como veremos estão invisibilizados, principalmente na perspectiva nacional do Brasil, mostrando-nos como grupos sociais subalternos muitas vezes ainda permanecem sem identidade, incapacitados de remontar sua própria história, a partir de seus lugares.

O primeiro é o movimento de 1695 do Quilombo de Palmares; em 20 de novembro com a morte de Zumbi, após uma série de expedições sobre um território de 27 mil M2, 1/3 do Reino de Portugal, com 10 aldeias em permanente luta com as forças coloniais nos séculos XVI e XVII. Houveram 17 missões destruidoras (2holandesas e 15portuguesas) que pretenderam suprimir a Rebelião do Quilombo de Palmares, na Serra da Barriga no Estado de Alagoas, que chegou a ter 11mil pessoas. Palmares era uma monarquia eletiva nos moldes do que existia na África de então foi dizimada pelas forças coloniais. Há apenas uma descrição sobre o Quilombo numa carta de 1687; “São muitos em número, e cada vez mais. Não lhes falta destreza nas armas, nem no coração ousadia.” GOMES 2019 p.11. No entanto, seu apagamento é um fato para qualquer um que visite a Serra da Barriga em Alagoas, grande parte dos vestígios das implantações e vilas foram dizimadas, e a compreensão de sua disposição e espacialidade é hoje impossível.

“Por força da lei 12.519, de 2011, a data se transformou no Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra...Em 2018, apenas 1047 municípios, de um total de 5561 optaram pelo feriado. Em alguns estados, como Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Pará e Rondonia, nenhuma cidade se animou a celebrá-lo como um dia de descanso... Os historiadores, Jean Marcel Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira, professores da UNESP... Afirmam que traçar a biografia de Zumbi seria hoje uma tarefa impossível.” GOMES 2019 página422

O segundo acontecimento histórico, que destaco fora do Brasil foi o movimento da Revolta do Haiti de 1791. A grande revolta negra contra a escravidão se iniciou em agosto, dois anos após a Revolução Francesa, após a Cerimônia de Bois Caiman, na Planície Norte, que contou com a participação de milhares de marrons (escravos fugitivos). O Haiti tinha 120mil escravos, 77% da população total da ilha, no Brasil em 1750, os escravos eram 50% da população. Importante aqui destacar uma citação de Thomas Piketi, que demonstra claramente como as narrativas centrais contemplam os grupos subalternos numa condição sempre periférica, mesmo quando se trata daquelas que defendiam a tese da ampliação libertária, o abolicionismo ou a supressão da monarquia;

“Alexandre Moreau de Jonnès – conhecido pelos muitos materiais estatísticos sobre os escravos e seus donos que compilou em diversas colônias a partir dos recenseamentos e pesquisas administrativas realizados desde o século XVII e abolicionista convicto – propõe em 1842, que os escravos ressarçam o valor total da indenização realizando “trabalhos especiais” não remunerados pelo tempo que for necessário. Ele insiste no fato de que isso também ensinará aos escravos o significado do trabalho.” PIKETI 2020 página210

É também interessante mencionar como Gramsci destaca aspectos sobre as complexas interações dos movimentos sociais subalternos, que envolvem; o espontaneísmo e a direção racional. Uma tendência de considerá-los como movimentos folclóricos, aonde sua apropriação social, pela historiografia hegemônica invariavelmente como; bizarros, desequilibrados, curiosidades, localizados na periferia da cultura e da Política. Um dos movimentos destacados pelo próprio intelectual sardo foi sobre Davide Lazzaretti (1834-1878); um pregador do Monte Amiata na Toscana Itália, chamado do Cristo dell´Amiata, personagem do Teatro Pobre de Montichiello e cantatas folclóricas, republicano, anti clerical, luta pela unificação da Itália contra as forças do pontificado de Roma.

“...Este era o costume cultural do tempo: em vez de estudar as origens de um acontecimento coletivo, e as razões de sua difusão, de seu ser coletivo, isolavam o protagonista e se limitavam a fazer sua biografia patológica, muito frequentemente partindo de motivos não comprovados ou passíveis de interpretação diferente: para uma elite social, os elementos dos grupos subalternos têm sempre algo bárbaro ou patológico” GRAMSCI 2001, p. 203

Esse movimento na Itália possui profundas analogias com outro acontecimento notável no Brasil, que foi a revolta de Antônio Conselheiro (1830-1897), o terceiro a ser destacado nesse texto. Conselheiro era um conselheirista, firmando-se numa revolta num povoado no sertão da Bahia em 1874, denominado Canudos (Arraial do Bom Jesus - 5 mil domicílios e 20 mil pessoas), caixeiro viajante, órfão de mãe aos 6 anos, gostava de ler, dava aulas numa fazenda no sertão do Ceará (Quixeramobim), abandonado pela mulher. Estabelece no Arraial de Canudos uma resistência aos Coronéis do Nordeste, sendo também monarquista, anti clerical e religioso. Atualmente, há no local o Parque Estadual de Canudos, um sítio notável no sentido de deixar registrado esse movimento, que ainda não teve sua narrativa inteiramente esclarecida. E principalmente, sua espacialidade plenamente entendida, como uma forma insurgente de resistir a um Estado autocrático e autoritário.

O quarto destaque aqui assinalado é mais um momento invisível de nossa historiografia foi o de 1904, na capital da República, o Rio de Janeiro, e em Niterói, denominado como; A Revolta da Vacina. Em 9 de novembro foi aprovada pelo Senado Federal a lei da obrigatoriedade da vacina da Febre Amarela. Em março de 1904, uma lei já havia regulamentado o serviço de profilaxia na cidade, concedendo poderes arbitrários ao Prefeito Pereira Passos nomeado pelo Presidente Rodrigues Alves, dentre eles o de demolir as edificações consideradas insalubres. Em novembro de 1904, a cidade era um verdadeiro canteiro de demolições e desalojamento do seu precarizado que habitava os cortiços e outras edificações insalubres, que recebiam ordem de abandonar suas habitações, nas quais eram locatários, sem qualquer compensação. As rebeliões e trincheiras se estenderam do dia 9 ao dia 15 de novembro, tendo os rebeldes se apoderado do Quartel da Polícia na Rua Frei Caneca, depredando edificações e o serviço de bondes da cidade. No dia 16, O Governo Federal decreta Estado de Sítio na cidade. Um autor assinala claramente a inadequação do nome da Revolta, que talvez deveria ser nomeada como a Revolta dos Desalojados.

“Ela (Revolta da Vacina) sacrificou grupos subalternos em proveito dos interesses mais gerais das classes dominantes, sob a hegemonizada burguesia cafeeira paulista...Ao mesmo tempo foi proveitosa aos interesses particulares do capital privado...desde o capital bancário internacional, de onde provieram os empréstimos...passando pelas grandes companhias empreiteiras, especuladores e construtores, até as diversas frações do capital comercial, financeiro e industrial que puderam permanecer ou vieram se instalar nas áreas remodeladas.” BENCHIMOL 1992 página328

Por último, destaco outro movimento sobre o qual ainda existem muitas lacunas de relatos, que é o da Escravidão Negra no Brasil, de 1500 a 1888, estruturado a partir da colonização portuguesa (1500-1822), mas mantido após a libertação do julgo colonial. O Brasil é o último país da unidade econômica do Atlântico Europeu a decretar seu fim, essa instituição marca o perfil do Brasil até hoje. Em 1808, quando a corte portuguesa se transfere para o país, o Brasil tinha cerca de 3milhões de habitantes, dos quais cerca de 50% eram escravos. No ano de 1850, a cidade do Rio de Janeiro contava 250 mil habitantes, dos quais 110mil ou 44% da sua população era escrava. Em 1865 é decretada a Lei do Sexagenário, libertando os escravos com mais de 60 anos, em 1871, a Lei do Ventre Livre, na qual os proprietários das mães dos escravos libertos, denominados “ingênuos”, deveriam cria-los até os 6 anos, para receber do Estado uma indenização, ou então mantê-los até os 21 anos fazendo-os trabalhar em troca de salários. Fato, que certamente determinava uma super exploração dessa mão de obra, beneficiando práticas patriarcais e senhoriais de nossa elite agrário-exportadora. Em 1888, com a supressão da escravidão se intensifica a política da imigração europeia e japonesa, o que certamente se constitui numa crueldade, numa falta de solidariedade com a massa de população negra existente no país, que então, se pautava por um claro desejo de embranquecimento de sua população, emblematicamente expresso no quadro A redenção de Cam, mostrado aqui. Em 2010, no último censo do IBGE; 48% da população se declarou branca, 43% mestiça, 8% negra, e 1% asiática e indígena. Sob a alegação de inviabilizar a indenização cobrada pelos ex proprietários de escravos, que já se mobilizavam para alcançar esse benefício, o Ministro da Fazenda manda queimar toda a documentação da escravidão, mais uma vez invisibilizando uma parte de nossa história.

“Não fazia muito tempo, Rui Barbosa, Ministro da Fazenda do Governo Provisório, mandara queimar toda a documentação relativa a escravidão existente no ministério, alegando que o fazia para apagar a mancha negra das páginas da nossa história.” BENCHIMOL 1992 página311

 

Figura 1: A Redenção de Cam, quadro do pintor espanhol Modesto Broco, 1895,
mostra-nos o desejo de embranquecimento da população brasileira.

 GIOVANNI ARRIGHI E A COMPREENSÃO DO NOSSO MUNDO CONTEMPORÂNEO

Ao final, no esforço de compor esse quadro de compreensão da estruturação de nossa espacialidade territorial, citadina e de nossas moradias cabe destacar uma interpretação notável de nossa estrutura econômica e social do mundo contemporâneo ocidental. Ainda pouco mencionada, o livro, “O Longo Século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo”, de Giovanni Arrighi, que destaca as diversas supremacias que operaram no sistema capitalista, desde seu advento nas Cidades Estado da Itália até a atual hegemonia dos EUA. ARRIGHI, 1996 parte de um mapeamento histórico e geográfico, das Cidades Estado Italianas no século XIV, que de forma pioneira viveram o processo de descoberta de que o poder não está na posse de mercadoria ou na propriedade de terras, mas na sua base monetária e financeira, na concentração e acúmulo de moedas. Cidades como Gênova e Veneza, que concentraram os primeiros banqueiros da história descobriram a contabilidade cruzada, se beneficiando muito mais das descobertas Ibéricas do que Espanha e Portugal, que promoveram as grandes viagens, mas acabaram endividados, com essas cidades e seus banqueiros. Giovanni Arrighi destaca o longo prazo, e o processo cíclico preso numa constante repetição, que se sucede da virtuosa concentração produtiva ao desenfreado processo especulativo abstrato. Esse processo se repetirá de forma recorrente migrando entre diferentes organizações estatais pelo mundo, mostrando-nos a história das grandes finanças. Depois das Cidades Estado Italianas (Gênova e Veneza), o segundo exemplo, será a Holanda, ou a Liga Hanseática, que descobriu e desenvolveu, na época do capitalismo mercantil, o potencial especulativo do armazenamento de especiarias e mercadorias e sua articulação numa bolsa de valores, que promete lucros no futuro, a partir da lógica dos negócios e promessas especulativas.

“Permitam-me enfatizar aquilo que me parece ser uma aspecto essencial da história do capitalismo; sua flexibilidade ilimitada, sua capacidade de mudança e adaptação. Se há, segundo creio, uma certa unidade no capitalismo, da Itália do século XIII até o Ocidente dos dias atuais, é aí, acima de tudo, que essa unidade deve ser situada e observada... Em certos períodos, inclusive períodos longos, o capitalismo de fato pareceu especializar-se, como no século XIX, quando se deslocou tão espetacularmente para o novo mundo da indústria.” ARRIGHI 1996 página4

“...quando os agentes capitalistas não têm expectativa de aumentar sua própria liberdade de escolha, ou quando essa expectativa é sistematicamente frustrada, o capital tende a retornar a formas mais flexíveis de investimento – acima de tudo sua forma monetária. Em outras palavras, os agentes capitalistas passam a preferir a liquidez, e uma parcela incomumente grande de seus recursos tende a permanecer sobre forma líquida.” ARRIGHI 1996 página5

Na sequência, logo depois da Liga Hanseática, a Inglaterra assume a supremacia no sistema capitalista internacional, com a retirada dos holandeses do comércio internacional para se transformarem nos banqueiros da Europa. A Inglaterra nos primeiros sinais da Revolução Industrial assume uma concentração de riqueza sem par, demonstrando inicialmente uma capacidade ímpar de super explorar seu entorno imediato (irlandeses) e depois o resto do mundo. Num segundo patamar, mas também de forma sincrônica com a Inglaterra, a França desenvolve uma forma particular de acumulação primitiva que é específica, na sua histórica beligerância com o Reino Unido, desde a guerra dos 100 anos. Sua inserção internacional será ideologicamente central com a Revolução Francesa, mas fomentará um capitalismo mais artesanal, agrário, disperso e qualitativo que investirá fortemente numa super exploração de suas colônias. 

“...as sociedades de proprietários que prosperavam na Europa no século XIX e início do século XX se caracterizavam por uma concentração extrema de propriedade. Na França, no Reino Unido e na Suécia os 10% mais ricos detinham durante a Belle Époche (1880-1914) entre 80% e 90% de tudo que havia para ser possuído (terras, imóveis, ativos profissionais e financeiros, líquidos de dívidas) e o 1% mais rico detinha, sozinho entre 60 e 70% de tudo o que havia para ser possuído.” PIKETI 2020, página247

 

Figura 2: Gráfico que mostra a apropriação da renda nacional, pelos 10% mais ricos no mundo, mostrando-nos como Brasil, Oriente Médio e India são países desiguais

Gráfico de barras

Descrição gerada automaticamente com confiança média

Em seguida a hegemonia inglesa emerge os EUA, uma nova base do domínio capitalista mundial, inicialmente no segundo pós-guerra, com um discurso anti-colonial no Oriente Médio, numa aparente domesticação do imperialismo inglês. Mas em seguida usando-se de expedientes de contra espionagem determina uma nova forma de dominação, realizada pelas suas grandes corporações e multi nacionais. Os EUA também hierarquizam as nações pelo mundo exercendo sua supremacia de forma diferenciada; nos paises mais desenvolvidos como na Europa e Japão a partir do soft power. E, nos países da periferia e semi-periferia do capitalismo, na América Latina, África e Oriente, a partir do hard power, ou da utilização de tropas ou promoção de golpes de Estado. Por fim, é preciso mencionar, que a sistematização de Arrighi e Piketi, ainda não contemplam o fenômeno da China, nova potência mundial, que vem dominando os ativos financeiros estadunidenses, território de atração do capitalismo de acumulação primitiva, combinado com Planejamento Estatal, mas também sem o mesmo poder bélico para se contrapor aos EUA. Mas assim como os BRICs; Brasil, Russia, India, China e África do Sul se apresentam como promotores de um desenvolvimento de grande concentração de renda, que na verdade atraem desenvolvimentos a partir de sua capacidade de super explorar seu próprio precarizado. ARRIGHI 1996 ainda irá destacar, que a partir da desarticulação do fordismo-keynesianismo, no final dos anos 1970, começo dos anos 1980, com as crises do petróleo, e com as eleições de Margareth Thatcher na Inglaterra (1979) e Ronald Reagan nos EUA (1980), a ascensão do neoliberalismo. O mundo a partir do declínio do Império Soviético (1989) passa a desmontar o Estado de Bem Estar Social elegendo a disciplina financeira como paradigma do comportamento de todos os Estados Nacionais, mais uma vez retornando a ciranda financeira, que passa então a pautar o mundo. É a hegemonia do capital financeiro, que mais uma vez assume a governança do mundo, mais uma vez abandonando a produtividade e se dedicando a uma especulação sem precedentes, agora potencializada pelas conquistas das Tecnologias de Informação  e Comunicação (TICs)

“Desde então, (final dos anos setenta) todas as nações tem estado a mercê da disciplina financeira, seja pelos efeitos da fuga de capitais, seja por pressões institucionais diretas; “Sempre houve, é claro, um equilíbrio delicado entre os poderes financeiros e estatais no capitalismo, mas a desarticulação do fordismo-keynesianismo significou uma evidente guinada para um aumento de poder do capital financeiro frente ao Estado nacional.”” ARRIGHI 1996, página03

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir desse mapeamento geral e breve estruturado a partir das reflexões de Gramsci, de seus discípulos, de Arrighi e de Piketi podemos compreender a forma de produção e reprodução da cidade brasileira. Uma realidade periférica, com péssimos índices de distribuição de renda, com uma incapacidade de suas elites de pensar por si mesma, na sua constante criminalização dos movimentos sociais de luta pela espacialidade. O campo do urbanismo e da arquitetura precisam reafirmar a necessidade premente de promoção de um desenvolvimento distribuidor de renda e benefícios, pelo e a partir do espaço. Torna-se central ouvir os movimentos sociais, usando mecanismos de participação, que visem reestruturar o local e o sistêmico das nossas cidades.

Portanto, acredita-se que os princípios de uma cidade com equidade precisam ser explicitados de forma a dar sentido as imensas manifestações de rebeldia e inconformismo das cidades, não para homogeneizá-los. Os movimentos insurgentes devem encontrar uma série de princípios gerais, que sintetizam a busca da promoção de uma maior equidade de rendas e oportunidades, um território urbano onde está universalizado o acesso às infraestruturas urbanas e as oportunidades. Por outro lado, é necessário reconhecer que precisamos enfrentar o problema urbano brasileiro reformando a cidade existente, promovendo ajustes em seus sistemas já instalados de forma a beneficiar a todos, e não apenas uma minoria privilegiada. Nesse sentido torna-se fundamental radicalizar as práticas democráticas, indo além da mera representação parlamentar, mas instituindo práticas cotidianas diretas de regulação dos orçamentos, planos e projetos. Busca-se portanto formular um conjunto de princípios norteadores para as cidades brasileiras, que precisam transformar o modo como vêm sendo construídas, para tanto, sugere-se priorizar quatro proposições objetivas:

1. A Cidade deve ser compacta e densa, evitando-se a dispersão interminável e enfatizando-se o papel aglutinador do antigo centro histórico. Os instrumentos contidos no Estatuto das Cidades devem ser operados no sentido da preservação de seu contínuo construído, regulando o Direito de Propriedade;

2. A Cidade deve ser lugar da convivência da diversidade de classes e de usos, evitando-se os guetos de ricos e pobres e a monofuncionalidade. A promoção da urbanização de favelas e a busca de sua integração aos tecidos dos bairros adjacentes deve reforçar o esforço de inserção social de todos seus estamentos e classes, utilizando-se inclusive dos sistemas de transportes sistêmicos para enfatizar sua reinserção integradora;

3. A Cidade deve ter mobilidade efetiva para todos, evitando-se a exclusão determinada pela ineficiência ou tarifação alta dos sistemas de transporte coletivo. As parcelas precarizadas da nossa população devem ter acesso ao passe livre reivindicado, permitindo o acesso amplo a diversidade de oportunidades que nossas cidades criam;

4. A Cidade deve ampliar o reconhecimento da ecologia e dos biomas naturais locais, construindo-se melhor relação com a natureza, permitindo uma apropriação social ampla dos ecossistemas e fomentando sua expansão e convivência com o mundo artificializado do humano. Devem ser implantadas obras e transformações que promovam maior ajuste entre a vida urbana e a natureza, se adequando principalmente as chuvas tropicais de maior intensidade.

NOTAS

[1] Glotologia, ciência que estuda comparativamente as diversas línguas, considerando suas origens e formação. (Sin.: glossologia, glótica.)

2. O sufrágio universal masculino foi decretado na Itália em 1912, e apenas em 1945 admitiu a participação das mulheres.

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