sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Hoje meu filho especial Felipe completa 30 anos de idade

Hoje, dia 28 de fevereiro de 2020 meu filho especial Felipe completa 30 anos de idade. Felipe é autista não verbal, e apesar dessa condição se comunica de uma forma bastante peculiar, através de algumas ecolalias, que são a repetição de frases e palavras sem sentido. Uma das mais recorrentes, pelo menos comigo, é; "Cadê o Pinguim?" Uma pergunta meio surrealista, que sempre me remete ao isolamento das geleiras da Antártica dentro de um enorme grupo de pinguins, aonde Felipe parece condenado a só utilizar as formas de interação dessa ave meio particular e inusitada. A frase é claramente utilizada para chamar a atenção, quase como que fosse; "Oi estou por aqui." Há outras também, como; "Fecha a geladeira!" ou "No copo!", que se remetem a situações mais concretas de repressão a seus comportamentos como o de abrir a geladeira ou beber água nas garrafas.  O autismo é uma síndrome grave, que afeta o relacionamento social de determinadas pessoas, num amplo espectro de gravidade, que envolve capacidades variadas e diversos comportamentos de isolamento social. Em 30 de março de 2017 escrevi um texto aqui mesmo no blog sobre ele, quando já tinha 27 anos. O link é; 

https://arquiteturacidadeprojeto.blogspot.com/2017/03/meu-filho-cacula-felipe-e-autista.html.

Felipe não é violento, nem pratica auto mutilamento ou agressividade que alguns autistas apresentam, possuindo apenas alguns comportamentos repetidos e obsessivos, como pular e rir de forma aparentemente inusitada e inesperada. Apesar disso manifesta uma imensa capacidade de afeto e carinho, com as mais variadas pessoas, mais próximas ou nunca vistas. Suas maiores manifestações de violência estão invariavelmente direcionadas a seu irmão mais velho, Daniel, que me parecem expressões claras de ciúme, manifestações de sua consciência da fragilidade de sua capacidade de comunicação e interação pela falta da linguagem. Há aqui, uma presença confusa da consciência de suas limitações de linguagem, a afirmação do seu espaço essencial e uma competição originária ou inconsciente, que na verdade o perturba mais que o reconforta. Muitas vezes, após a ocorrência desses eventos conversei particularmente com êle de forma dura e repressora, fazendo-o muitas vezes chorar. Apesar dessa clara demonstração de arrependimento e reconhecimento das suas limitações, Felipe volta a repetir invariavelmente a ação, muitas vezes de forma inesperada, como uma reação involuntária e impensada.

Tudo isso é um grande mistério, e a nossa consciência das limitações e potencialidades dos comportamentos de Felipe e dos autistas em geral me parecem ainda campos inexplorados, que demandam da sociedade uma maior capacidade de convívio com o especial. Essa maior convivência e disponibilidade certamente representaria um significativo apuro civilizatório e pessoal de inteligência e sensibilidade nas pessoas. A convivência com o autismo, como já afirmado aqui nesse blog é um eterno aprendizado, principalmente de respeito a alteridade humana, que mesmo ao desfrutar de uma plena capacidade de expressão parece e pode sempre esconder mistérios. Muito além de uma funcionalidade prática, Felipe parece sempre nos lembrar, que há um manifesto em toda existência humana.

Feliz Aniversário, meu filho...

domingo, 23 de fevereiro de 2020

A segunda aula de Arquitetura, Cidade, Filosofia Moderna no contexto do Programa IAB-RJ Compartilha


Cartaz do Curso Arquitetura, Cidade, Filosofia Moderna
Nos dias 04 e 05 de fevereiro de 2020 na sede do IAB-RJ  ministrei um workshop sobre Cidade, Arquitetura, Filosofia Moderna para um grupo de alunos de composição variada, sugerindo um exercício ao final, através de um texto vinculando os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e nossa espacialidade contemporânea. Esse texto é uma compilação expandida da segunda aula. De acordo com o final da primeira aula foi identificado um decréscimo da confiança na técnica e no progresso científico, a partir das bombas atômicas lançadas pelos EUA nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, que marcam o final da 2a Guerra Mundial (1945). Com isso, emerge uma hegemonia da diversidade entre os seres humanos, que passam a ser vistos como especificidades culturais, raciais, de gênero, ou de qualquer outra natureza, que correspondem à políticas de afirmação identitárias. Há uma forte crítica a um racionalismo unitário e unidirecionado do mundo ocidental, que enxergava a modernidade como a ampliação capitalista pelo mundo, a partir de países tidos como centrais. A história e o patrimônio construído passam a ser valores celebrados, numa multiplicidade de casos, que exatamente constroem a diferenciação enraizadora de identidades específicas. A crítica já estava em Gramsci, na sua percepção e identificação de um centro para o desenvolvimento capitalista no mundo, e o desenvolvimento de relações de supremacia e subalternidade entre e intra países.


Arts United Center em Fort Dale Loui I. Khan
No campo específico da arquitetura e da construção emergem críticas, como a de Loui I. Khan (1901-1974), que recupera sistemas de pré moldagem ancestrais, como o tijolo de barro, numa clara reapropriação de tecnologias adormecidas. Nos anos 1950 o arquiteto Loui I. Khan retoma o tema da monumentalidade de maneira silenciosa e quebra a unidirecionalidade tecnológica dos materiais, retomando o tijolo como elemento pré-moldado mais potente, numa reinterpretação da forma de construir dos romanos. Sua crítica é principalmente construída, possuindo uma enorme concisão no que escreve. De certa forma, recebe o reconhecimento ideológico oficial do modernismo, quando em 1947 assume a cadeira de arquitetura em Yale, fazendo reflexões fundamentais, sobre a metodologia de projetar. As perguntas de Khan acabam refletindo na própria construção do campus de Yale, com a realização de dois edifícios emblemáticos; O Centro de Artes Britânicas e a Galeria de Artes de Yale. As perguntas que Khan incita a seus estudantes, para que pensem o ato de projetar como algo muito além da objetividade funcionalista são: “O que o lugar quer ser?”, ou “A ordenação das demandas do programa arquitetônico em;  Programa morto e vivo”, ou ainda  “A hierarquização desse mesmo programa de necessidades em; Espaços que servem e os que são servidos

No âmbito mais amplo da comunicação, a jornalista Jane Jacobs toma partido dos bairros e comunidades ameaçados pelo rodoviarismo imperante no urbanismo americano em Boston e Nova York, discordando da objetividade dos planos de Robert Moses, publicando o livro; Morte e Vida das Grandes cidades Americanas em 1961. Jane Jacobs proclama a perda da vitalidade das cidades americanas em função de um rodoviarismo exacerbado, presente no modernismo que devasta bairros e unidades de vizinhança em função da objetividade do circular. A crítica de Jacobs focava na vitalidade de algumas partes da cidade, que exatamente não haviam sido projetadas sobre premissas higienistas ou rodoviaristas, como nos projetos de Le Corbusier do Plano Voisin para Paris. A jornalista claramente celebrava a presença e a opinião dos usuários, acusando urbanistas de positivismo e tecnocracia exagerada. A arquitetura e a cidade precisavam ser vivenciadas no seu cotidiano, a partir de parâmetros que pressupunham uma relação entre espaço privado e público, que mantinham proporcionalidades que o modernismo havia rompido.


"As cidades tem a capacidade de prover algo para alguém, somente porque, e apenas quando, são criadas por todos... Não existe melhor expert na cidade do que aqueles que vivem e experimentam seu dia a dia." JACOBS 2011 página 47

Na verdade, a crítica de Jane Jacobs mencionava além do rodoviarismo imperante, a preferência da classe média americana pela baixa densidade nos subúrbios próximos a idílios naturais, com total dependência do automóvel. A habitação unifamiliar de baixa densidade é contraposta aos bairros densos das classes populares estadounidenses, nos centros e guetos, que acabavam possuindo uma vida de interação social intensa e muito mais rica. Sem dúvida, as intervenções de Robert Moses em Nova York elegem o rodoviarismo e destroem relações de vizinhança e de comunidades, descritas no livro; Tudo que é sólido desmancha no ar de Marshall Bermann, que descreve a hegemonia do automóvel a partir dos anos cinquenta nas cidades estadounidenses, e um pouco mais tarde no resto do mundo. Tal situação determina um certo isolamento do indivíduo na grande metrópole, reduzindo o espírito de participação na cidadania, aonde casas unifamiliares, com garagens abarrotadas de carros fazem a fortuna do american way of live. A cidade de Los Angeles, na costa oeste emerge como paradigma do bem viver, onde o automóvel se articula com a baixa densidade, surgindo um modelo de baixa densidade e de interação social, com um isolamento do ser humano na cidade.


Por outro lado, a década de 60, explode com a emergência de um mundo que decreta o fim das vanguardas e a presença de uma grande massificação, que é determinada pela maior acessibilidade garantida aos cursos superiores e a informação em geral. O mundo elitizado da primeira modernidade, dominado pelas vanguardas dá lugar a uma imensa massificação, que está emblematicamente representada nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs), que começam em La Sarraz no ano de 1928 com vinte e oito arquitetos e terminam em Dubrovnick no ano de 1956 com uma multidão de estudantes. Essa deselitização do horizonte determina a presença de uma pluralidade de visões, tornando-se difícil a construção de posicionamentos com sentido e manifestações claras. As posições, teses e manifestos tornam-se mais difíceis de serem construídos pela presença e participação de uma variedade de agentes e atores, que muitas vezes dispersam os alinhamentos.

Entre as décadas de 80 e 90, pensadores ou filósofos como Lyotard e Fukuyama decretam o fim dos discursos explicadores da modernidade, como o marxismo e o iluminismo, que construiam uma ética do agir e do pensar, compartilhado por muitos. Françoise Lyotard lança em 1986 A condição pós Moderna declarando a morte de relatos legitimadores da modernidade como o iluminismo e o marxismo, colocando em seu lugar a transparência comunicacional. Em 1989, Francis Fukuyama publica em Washington O Fim da História?, decretando um profundo divórcio entre o pensamento dos intelectuais, ou as elites dirigentes, que após sucessivos desapontamentos se colocam equidistantes da massa indiferenciada de pessoas, declarando o fim das macro narrativas ou das verdades compartilhadas. O Fim da História era determinado pela vitória final do capital e do liberalismo como a representação do Estado Universal de Hegel, aonde a supressão do socialismo do horizonte da humanidade era decretada de forma interessada, Há uma emergência de uma lógica localista, que se rebela contra o pensamento sistêmico e estruturador do modernismo, que se baseava num discurso mais generalista e global. Desenvolve-se a consciência de que a utopia modernista era autoritária e congelava as aspirações de realização das futuras gerações, que possuiam uma predominância euro cêntrica, branca, ocidental, masculina e heterosexual.

No campo filosófico mais estrito emerge a figura de Michel Foucault (1926-1984), um pensador essencialmente desconfiado da racionalidade ocidental, com aquilo que José Guilherme Merchior identificou como um certo Nihilismo de Cátedra. Em 1979 lança o livro Microfísica do Poder, aonde defende a ideia da onipresença das dominações e coerções em qualquer interação humana, que está impossibilitada de se desvencilhar do interesse pessoal. Há uma denuncia da constante presença do desnivelamento hierárquico nas relações entre seres humanos, que estão imbricados numa luta constante de dominação. A impossibilidade de nivelamento desinteressado bloqueia o desenvolvimento mediado pela razão, que enxerga nas interações sociais o reino de uma disputa constante e ferrenha, aonde o diálogo é desacreditado. Há uma constante negação da racionalidade estrutural do ocidente, que na verdade se confunde com objetivos coloniais e neo coloniais de constante dominação, e uma, celebração da alteridade como geradora e impulsionadora de outras narrativas.

No campo da política, em 1979 Margareth Thatcher assume como primeira ministra britânica, prometendendo quebrar o mundo do trabalho inglês, que é visto como privilegiado e usurpador da carga tributária do país. Do outro lado do Atlântico, em 1980 Ronald Reagan assume a presidência dos EUA, desenvolvendo-se uma enorme desregulamentação do capital, particularmente em sua vertente financeira, que passa a atuar sem as amarras do Estado regulador. Começa então o desmonte do wellfare state ou estado de bem estar social, que foi a política que emergiu ao final do segundo pós guerra, que havia consolidado um horror a desregulamentação especulativa e liberal do Crack da Bolsa de Nova York em 1929. Um acontecimento histórico, que gerou a eleição de Hitler em 1933, naquele que era o país mais alfabetizado da Europa, desembocando na 2a Guerra Mundial. O esvaziamento industrial representou uma transformação que determinou seu declínio como principal empregador e fez emergir um contínuo de serviços, principalmente financeiros, que passam a ser o principal mobilizador da mão de obra. De uma hora para outra, as empresas de serviços financeiros e seguros passaram a representar no mundo anglo saxão, um terço do emprego disponível, enfraquecendo o movimento sindical em todo o mundo. O Estado é apontado como um estrutura burocrática e ineficiente, enquanto a Empresa privada é celebrada como dinâmica e eficiente Inicia-se uma forte hegemonia do capital financeiro no mundo, que dita a política do Estado, forçando sempre para a desregulamentação livre dos fluxos.
"Em suma, o neoliberalismo se tornou hegemônico como modalidade de discurso e passou a afetar tão amplamente os modos de pensamento que se incorporou às maneiras cotidianas de muitas pessoas interpretarem, viverem e compreenderem o mundo." HARVEY 2008 página 13


No campo mais geral do comportamento societário, em meados dos anos 1990 o advento da Internet e das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) lançam para a humanidade a possibilidade de acessar um amplo acervo de informações, que determinam uma imensa dispersão de energias, parecendo inviabilizar a possibilidade de construção de prioridades e consensos. A dispersão é enfatizada em todos os campos do cotidiano. Há estudos de instituições educacionais de que se amplia o Déficit de Atenção Continuada (DAC), uma síndrome identificada entre jovens, que não conseguem se concentrar de forma continuada num único assunto por um período superior a 15 minutos. É a cultura do zapping, impulsionada pela internet, em pesquisas que se mantém na superficialidade da busca ansiosa, com a perda da prática da leitura e do aprofundamento continuado num assunto. Por outro lado, a política se fragmenta numa infinidade de interesses que parecem irreconciliáveis, apontando para a impossibilidade da construção de consensos, uma vez que a troca de posicionamentos se acelera de uma maneira exponencial.

Também em meados dos anos 1990 o filósofo Habermas decreta num texto, Modernismo e Pós modernismo, no qual ironiza a tendência contemporânea de se utilizar do prefixo pós para caracterização do nosso tempo, dando a impressão dúbia de uma superação com continuidade. O texto de Habermas distingue a modernidade do modernismo, dizendo que a pretensão humana de desígnio do seu futuro, que as revoluções americana e francesa tinham expressado permanecia inalcançado. Habermas se mantém fiel a sua teoria da racionalidade comunicativa, que se contrapõe a uma racionalidade meramente instrumental, determinando que a razão não deve estar carregada de personalismos, mas construída a partir de consensos interpessoais. O filósofo da Escola de Frnakfurt se mantém fiel ao Iluminismo, abrindo uma nova perspectiva utópica, que não mais condena as gerações futuras a uma construção congelada e fixa, mas que celebra o processo de auto-construção e de auto-determinação, instalado pela modernidade.

No campo mais específico da arquitetura e do urbanismo, desde os anos 60, Kevin Linch e Aldo Rossi apontam para a processualidade da construção da cidade, reforçando conceitos como o da Legibilidade, e o da História. Eles reforçam a ideia da impessoalidade da produção da cidade, que apesar disso se remete sempre a um projeto coletivo, mediado seja pelos elementos primários de Rossi, ou pela capacidade de registro dos Mapas Mentais de Lynch. Por outro lado, o crítico italiano, Manfredo Tafuri, elabora a idéia do arquiteto como ideólogo do habitar, um formulador de conceitos e proposições que propõe o Bem Viver e possuem a capacidade de contaminar a sociedade para suas formas de operação e de prática. Sua crítica é envolta num pessimismo angustiante e numa melancolia, que não mais distingue no capitalismo tardio um espaço para a construção do ambiente humano, uma vez que os fluxos e a realização do lucro assumiram velocidades inimagináveis.

No campo mais específico da metodologia de plano ou projeto celebra se primeiro no mundo Anglo Saxão, o advocacing planning de Christopher Alexander, que publica livros como; Ensayo sobre la sínteses de la forma ou Uma Linguagem de Patterns, nos quais se articulam uma reflexão sobre a síntese projetual mais participativa. No Brasil, Carlos Nelson dos Santos lança o livro A cidade como jogo de cartas, no qual celebra uma certa neutralidade do desenho da grelha, que impulsiona sua apropriação por diferentes agentes no longo prazo da cidade. O Plano de Nova York de 1811 decreta uma imensa homogenização do território baseado na malha xadrez, os elementos aí celebrados são a rua, a quadra e o lote como unidades em torno dos quais o jogo da cidade é jogado. Num paradoxo, Carlos Nelsom dos Santos aponta que apesar desse inicio homogenizador a ilha de Manhattan apresenta hoje grande diversidade de tipologias, usos e contínuos diferenciados. O livro restabelece a possibilidade da construção utópica, que deixa de ser um objetivo fixo e congelado, mas a celebração de uma processualidade, que restabelece a necessidade da presença contínua da criatividade das futuras gerações. O jogo do plano e do projeto pressupõe agentes e atores, igualmente empoderados, que declaram suas intenções e negociam objetivos, a racionalidade abandona a subjetividade isolada e se aproxima da inter-subjetividade.

Em 2002, Kenneth Frampton lança o livro Studies on Tectonic Culture, no qual identifica a saturação do problema do símbolo e da representação no campo da arquitetura, apontando como saída o desenvolvimento da tectônica. O compromisso com o construído, e com sua ética particular. As obras de grandes arquitetos são analisadas a partir da escolha de diferenciados modos de construção, que recolocam a complexa relação entre custo e benefício no projeto.  Um pouco depois o arquiteto Rafael Moneo lança em 2008 lança, Inquietação Teórica e Estratégias Projetuais, no qual rejeita a adoção de um personalismo de linguagem por parte dos arquitetos, celebrando a idéia da reinvenção do arquiteto a cada novo projeto. A linguagem não é mais uma constante específica e particular, mas cada novo projeto representa uma oportunidade, que demanda do arquiteto uma leitura específica de cada lugar. No Brasil, Pedro Fiori Arantes lança o livro a Arquitetura na era digital-financeira, que faz uma reflexão importante sobre o ato de construir numa era sobre a hegemonia do capital financeiro, aonde a realização dos lucros assume grande rapidez e ansiedade. A partir de um livro de Frederic Jameson de 2001, A cultura do dinheiro, no qual há um ensaio; O Balão e o tijolo, arquitetura, idealismo e especulação imobiliária, Pedro Fiori Arantes em 2012 desenvolve a ideia de que o tempo de investimento inviabiliza a produção da arquitetura pela financeirização geral da sociedade. Há aqui a retomada de uma importante reflexão da arquitetura paulista dos anos sessenta e setenta de Sérgio Ferro e Rodrigo Lefévre, que pensavam os vínculos entre arquitetura e poder, arquitetura e relações de produção no canteiro de obras.

“É o momento em que a lógica do capital fictício assume o comando das forças produtivas reais, como previra Marx, em O Capital... , o tempo se projeta para frente com os juros comandando, de forma ditatorial, a expectativa de lucros futuros e as decisões do presente.” ARANTES 2012 pág116

Por outro lado, na França, a partir de uma releitura dos textos do jovem Marx, num jornal Renano (Reinish Zeitung), dois autores de formação sociológica; Pierre Dardot e Christhian Laval constroem uma alternativa ao módus operandi do neo liberalismo. sintetizado na ideia de Comum. Marx, nesses artigos, irá sobre a visão estrita do Direito demonstrar a ampliação da lógica do Estado Burguês da propriedade privada sobre áreas comuns como florestas, áreas de pastoreio na Alemanha do século XIX. A questão levantada por Marx se refere aos galhos, caídos das árvores pelo efeito dos ventos, e que eram catados e usados pelos pobres na produção do calor, e que esse costume/direito havia sido impedido pela ampliação do cercamento das áreas. O Comum, portanto é visto como um valor que o capitalismo em sua longa transição sente dificuldade em cercar e privatizar. Os mares, os gravetos caídos das árvores, os frutos silvestres, os oceanos, a Arquitetura e o Patrimônio construído pela humanidade, o Meio Ambiente são patrimônios comuns. Primeiro os dois autores escrevem, A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal (2016), e logo depois, O Comum, ensaio sobre a revolução do século XXI (2017). No primeiro livro, a história do Neo liberalismo, suas diferenças marcantes com relação ao liberalismo tradicional e suas estratégias de penetração no cotidiano humano, reconhecendo sua capacidade de persuasão e convencimento desde a década de 80. No segundo livro, uma forte auto crítica do comportamento de esquerda, que precisa voltar a problematizar sua relação com o Estado, apontando daí um claro declínio da sua capacidade de oferecer um projeto alternativo, tendo sido suplantada pela nova direita e pelo neo liberalismo. Para eles, a nova estratégia do confronto com o capitalismo vem da explicitação e aprofundamento do conceito de Comum.

Enfim, esse me parece num rápido apanhado, o debate das ideias mais importantes do nosso tempo, uma luta entre pensamentos e práticas que possuem de um lado a premissa da solidariedade, e de outro, a da competição. O mundo do plano e do projeto precisa escolher um lado...

BIBLIOGRAFIA:

ALEXANDER, Christopher - Una Linguage de patterns - Editora Gustavo Gilli Barcelona 1990

ALEXANDER, Christopher - Ensayo sore la sintesis de la forma - Editora Gustavo Gilli Barcelona 1966 

ARANTGES, Pedro Fiori - Arquitetura na era digital-financeira - Editora 34 Letras São Paulo 2012

BERMANN, Marshal - Tudo que é sólido desmancha no ar - Editora Companhia de Bolso São Paulo 2007

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neo liberal - Editora Boitempo São Paulo 2016

DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian - Comum, ensaio sobre a revolução do século XXI- Editora Boitempo São Paulo 2017

FRAMPTON, Kenneth - Studies in Tectonic Culture: the poetics of construction in ninenteenth and twentieth century architecture - MIT Press John Cavas Chicago 2001

FUKUYAMA, Francis - O fim da História? - Editora Roccio Rio de Janeiro 1989

HARVEY, David - O neoliberalismo, história e implicações - Edições Loyola São Paulo 2008

JACOBS, Jane - Morte e Vida das Grandes cidades americanas - Editora Martins Fontes São Paulo 2011

JAMESON, Frederic - A cultura do Dinheiro, ensaios sobre a globalização - Editora Vozes Petrópolis 2001

LYOTARD, Francis - A condição pós Moderna - Editora José Olympio Rio de Janeiro 1986

MERCHIOR, José Guilherme - Foucault ou o Nihilismo de Cátedra - Editora Nova Fronteira Rio de Janeiro 1985

MONEO, Rafael -Inquietação Teórica e Estratégias Projetuais, na obra de oito arquitetos contemporâneos - Editora Cosac Naif São Paulo 2008

SANTOS, Carlos Nelson dos - A cidade como jogo de cartas - Editora Projeto 1986 Rio de Janeiro

domingo, 16 de fevereiro de 2020

A primeira aula de Cidade, arquitetura, filosofia moderna dentro do programa IAB compartilha

Cartaz de divulgação do Workshop Arquitetura,
Cidade,  Filosofia Moderna
Nos dias 04 e 05 de fevereiro de 2020 na sede do IAB-RJ  ministrei um workshop sobre Cidade, Arquitetura, Filosofia Moderna para um grupo de alunos de composição variada, sugerindo um exercício ao final, através de um texto vinculando os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e nossa espacialidade contemporânea. Esse texto é uma compilação expandida da primeira aula. Meu filho Daniel, já havia me alertado, que o mais correto seria chamar de pensamento moderno, e não filosofia, uma vez que recorria a pensadores como; Adam Smith, Schumpeter, David Harvey dentre outros que não se enquadram na definição. Com muito mais preparo que eu, pois formado em filosofia e professor de sociologia no ensino básico meu filho Daniel argumentava, que o livre pensar divagante era um fenômeno histórico e geográfico restrito a antiga Grécia, que a humanidade havia definitivamente perdido, a partir da divisão social do trabalho moderna. Sem exatamente questionar esses argumentos mantive o termo filosofia quase que o entendendo como um esforço para desnaturalizar e problematizar determinados comportamentos e práticas, no campo da produção do espaço. Enfim, concordava com sua argumentação mas mantinha o termo filosofia, buscando uma reflexão sobre alguns alinhamentos e práticas naturalizadas, sem reflexão, em nosso cotidiano contemporâneo. Ao final o objetivo seria refletir como a produção de nossa espacialidade, representada pela cidade, pela arquitetura e pela ocupação do território eram manifestações de nossas concepções societárias e de suas formas de reprodução. E, como diante da ameaça contemporânea dos desequilíbrios ecológicos e das mudanças climáticas as ações de planejar e projetar deviam refletir e se problematizar.

Na ementa do workshop estava proposto, que pretendia-se abordar as complexas relações entre matéria e espírito, objeto e sujeito no campo do espaço construído pelo homem, pensando a partir de duas categorias de valor de uso; a primeira material e objetiva, e a segunda ideal e simbólica. A arquitetura e a cidade se destacam nesse campo dos objetos por ser um esforço ancestral do homem, que não encontra no nosso planeta, seu lugar no mundo, impulsionando um desejo de transformação capaz de produzir seu habitat. Há portanto, em suas essências, do habitar e da cidade, uma função precípua objetiva, que é o abrigo, que não anula a beleza e a contemplação. O habitat e a cidade são obras de arte muitas vezes despersonalizadas, porque envolvidas nessa tradição objetiva, coletiva e pragmática de proteção das intempéries do nosso planeta, que se sucedem desde tempos imemoráveis. A ideia do workshop é se debruçar sobre conceitos caros ao ofício da arquitetura e do urbanismo, pensando-os como um discurso articulado, que produz um contra-plano ou contra-projeto para a sociedade contemporânea. A partir do paradigma ambiental imaginar discursos e possibilidades de novas práticas e ações, que buscam uma maior adequação aos desafios de sustentação do nosso planeta. Pensar os conceitos de cidade, moradia, comunidade, arquitetura, infraestrutura não apenas do ponto de vista do que são, mas do que devem vir a ser para se adequar aos desafios da contemporaneidade. A espinha dorsal do workshop conta com reflexões de Kant, Hegel, Schopenhauer, Marx, Gramsci, Foulcault, Adorno e Habermas, propriamente filósofos modernos, mas também; Adam Smith, Max Weber, Scumpeter, Richard Sennet, Perry Anderson, David Harvey, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Luiz Werneck Vianna, José Guilherme Merchior, Umberto Eco e Giovanni Arrighi. Mas também com pensadoras como; Rosa Luxemburgo e Hannah Arendt, que nos trazem reflexões fundamentais contra o militarismo, o valor da diversidade de pensamentos na democracia, a emergência de totalitarismos na nossa contemporaneidade e da presença dissimulada do poder. A proposta pretende oferecer uma oportunidade de reflexão sobre nosso ofício na contemporaneidade, a partir das divagações de vários pensadores sobre; cidade e arquitetura, pensamento e ente, artificial e natural, partes e todo, ente inerte e ente ativo, objeto e sujeito, fruição e sentidos, prática e teoria, espaço e materialidade, descrição e assertividade, projeto e contraprojeto, ideologia e hegemonia, prática e teoria, forma e conteúdo, pureza e labirinto, parte e todo.

A partir do final da segunda Guerra Mundial, com as  explosões das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki emerge uma consciência no mundo humano de que a técnica acumulara um poder de destruição sem par, e que ela representava um perigo não só para a espécie humana, mas também para o planteta Terra. O paradigma ambiental, que se instala na experiência contemporânea, a partir da década de 50 do século XX, a chamada Era Antropocena, aonde o homem concentra uma capacidade de destruição inusitada dos recursos do planeta forçam uma mudança de comportamentos e pensamentos na humanidade. Como buscar formas de comportamento e de prática mais adequadas para o planteta e para as futuras gerações, que passam a não mais acreditar no unidirecionamento do desenvolvimento? Como nosso ofício, arquitetura e urbanismo, se posiciona dentro desse contexto? Qual a construção ideológica capaz de dar resposta aos desafios do paradigma ambiental, redirecionando o habitar e a vida pública a essas novas demandas?

Há aqui a emergência de uma outra racionalidade, que declina de uma pessoalidade isolada, e assume uma dinâmica interpessoal e coletiva, construída a partir do associativismo, que investe fortemente na impessoalidade. Uma ideia de construção coletiva de argumentos, que declina do personalismo e investe fortemente na intersubjetividade e no coletivo. O Instituto de Arquitetos  do Brasil (IAB) é uma entidade associativa centenária que debate desde 1921, as formas do ser humano ocupar o território do planeta, fundado por arquitetos de ideologia eclética, ou proto moderna, que logo serão suplantados pelos de ideologia modernista. O IAB segue sendo um fórum de debates e de aglutinação dos arquitetos e urbanistas, que pensam o desenvolvimento e a reprodução da casa e da cidade brasileira. No mundo contemporâneo, o associativismo ganha uma dimensão fundamental, pois as ideias não são mais individualizadas mas coletivas, segundo HABERMAS, o maior vigor da racionalidade está em sua intersubjetividade, e não mais em seu isolamento. Na França realizam-se mais de 2000 concursos públicos de projeto por ano. No Brasil apenas 10 concursos públicos de projeto por ano, não havendo a obrigatoriedade de contratação nas obras de interesse público de forma mais transparente e democrática. A partir da  comparação dessas práticas denota-se uma maior importância para o pensar (plano e projeto), do que para o executar (obra). As formas de reprodução do habitar e da cidade ganham mais transparência e possibilidade de participação a partir do privilegiamento do plano e do projeto (antecipações), em comparação com a materialização da obra (empreiteiros). Tais práticas apontam graus diferenciados de democratização, uma vez que pensar antes de fazer possibilita a problematização da iniciativa, sua exposição a um fórum mais amplo e a checagem de sua adequação aos variados interesses. Qual a relevância social da obra? A quem ela atende? Sua premissa é de inclusão social, gerando coesão social?

A partir desse ponto, considero importante explicitar e discutir alguns conceitos expressos nos termos destacados abaixo;

Projeto e Plano: A palavra projeto é constituída por um prefixo "Pro", e uma finalização "Jactare", que denotam juntas lançar com antecedência. O projeto e o plano são discursos que pretendem persuadir a sociedade para avaliação consciente dos custos e benefícios das intervenções sugeridas, nesses termos está contida a ideia de pré figuração, simulação e antecipação. Os termos foram dissecados pelo teórico italiano da arquitetura, Manfredo Tafuri, que no livro História e Teorias da Arquitetura, caracterizou-os como a "crítica operativa do real" (TAFURI, 1981). Não se restringindo portanto a mera resolução dos problemas, mas a elaboração de uma crítica a costumes e práticas arraigadas. O processo de plano e projeto, quando se inicia jamais estará pré determinado com precisão, mas será invariavelmente uma revisão e reformulação de conceitos arraigados, se auto constituindo enquanto evolui.

Ideologia: É um dos termos mais complexos das ciências sociais possuindo diferentes qualificações dependendo da estrutura de pensamento adotada. Marx no livro Ideologia Alemã, qualificou-o como um véu que nos impede de perceber o real, a partir de nossa condição e interesses de classe, lhe incomodava um certo idealismo alemão, no desenvolvimento da filosofia germânica, que em contraposição a França e a Inglaterra, apenas pensava, mas não realizava. Mais tarde identificou uma maior positividade no termo, identificando a presença de ideologias progressistas e conservadoras, que lutavam no tecido social. Gramsci conceberá o termo em sua maneira mais afortunada, qualificando ideologia de uma forma mais neutra, a partir de Lenin, que já colocava o confronto entre ideologias; burguesa e socialista. Gramsci reconhece a existência de uma totalidade do real, que foge a nossa consciência, que é dominada pela parcialidade do nosso conhecimento e da nossa experiência enquanto agentes e atores fazedores da história. Seria como o discurso ou narrativa sobre a totalidade, que por sua subjetividade possui sempre um caráter parcial, mas que ganha força na medida em que é partilhado por mais agentes.


"A ideologia não é em si negativa, mas nem todas são iguais. Elas constituem o terreno comum e necessário da consciência e também do conhecimento, mas a superioridade da ideologia marxista é dada pela consciência do próprio caráter não absoluto e não eterno: consciência da parcialidade, ligada a uma classe e a um momento histórico." LIGUORI  e VOZA 2017 página399

Hegemonia: É a dinamização do conceito de Ideologia, sendo a capacidade dessa de conquistar o metabolismo social, isto é o maior número de agentes e atores, se conformando como uma ideia partilhada e naturalizada no cotidiano. Gramsci usará também os termos supremacia e preeminência como sinônimo da hegemonia política ou cultural, há em seu pensamento um sentido para o termo mais restrito na direção, em oposição ao domínio. Como um hegeliano, Gramsci concebe o termo entre duas oposições; coerção e convencimento, acreditando que as ideologias libertadoras operam com maior grau de convencimento e aceitação, do que de coerção. Uma de suas concepções mais libertadoras e revolucionárias é a compreensão do mundo a partir dos conceitos espaciais de centralidade e periferia, ou grupos hegemônicos e subalternos, aonde essa superação é dependente da passagem da razão econômico-corporativa à política-intelectual;


"A essa altura , o grupo até então subalterno pode sair de sua fase econômico-corporativa para elevar-se à fase de hegemonia político-intelectual na sociedade civil e tornar dominante na sociedade política.  LIGUORI  e VOZA 2017 página366

Importante salientar que minha tese de doutorado defendida em 2007 no âmbito do PROURB, na FAU-UFRJ tinha como título; Projeto, ideologia e Hegemonia, em busca de um conceito operativo para as cidades brasileiras. Nesse sentido, é de suma importância explicitar com maior precisão dois outros termos - cidade e habitar - presentes nessa reflexão, que são fundamentais para as ações de plano e projeto no âmbito da nossa disciplina.

A cidade é aqui vista como um valor ideológico, um conceito que representa uma forma de vida concreta, que concentra e mobiliza diversas energias e conhecimentos, sendo o lugar do encontro das diferenças. Os antropólogos identificaram na Revolução Urbana um grande momento na história da humanidade, quando os clãs e familias são superados e abandonados, constituindo-se as cidades, que reúnem diferentes expertises e tecnologias num espaço exíguo. Por outro lado, outro conceito que deve ser explicitado de forma mais clara é o de Habitar, um direito fundamental de todo cidadão urbano, que não vem sendo atendido. No Projeto, ou Discurso, ou ainda Narrativas das vanguardas centro-europeias, que fundaram o modernismo na arquitetura, antes da hegemonia corbusieana, era o ítem fundamental a ser atendido. Basta acompanharmos os esforços de municipalidades governadas por partidos social democratas notadamente na Alemanha e na Austria, aonde se implantam os conjuntos habitacionais emblemáticos em Frankfurt, Berlim e Viena. Num projeto planificação, que sinaliza para o conjunto da sociedade uma coesão social, aonde ninguém deverá ser deixado para trás. A Cidade Habitação tem sido o desafio da geração modernista e da contemporaneidade, aonde os arquitetos declinam dos temas da monumentalidade, para produzir a residência do cidadão urbano comum, que passa cada vez mais a habitar a grande cidade industrial.

Mas é preciso entender que a cidade e o habitar mudam qualitativamente e quantitativamente a partir da Revolução Industrial, aonde pela primeira vez na história humana se constituirá uma maioria de população urbana frente ao mundo rural. Aquilo que hoje somos, um planeta urbano começa a ser construído na Inglaterra do século XVIII com a Revolução Industrial, que privatiza os campos comuns no interior da Inglaterra, concentrando população nas cidades.  Afinal, na Inglaterra entre os séculos XVIII e XIX, a cidade de Manchester tinha no ano de 1760 doze mil habitantes, transformando-se em 1850 para atingir quatrocentos mil habitantes. Há nesse processo de rápida urbanização e de explosão do tamanho das cidades, uma perda da noção de comunidade unificada, desenvolvendo-se de uma pluralidade de bairros e partes. A cidade se divide num conjunto de identidades diferenciadas; os bairros burgueses, os guetos de pobreza, os bairros operários, etc... No Brasil a cidade de São Paulo tinha em 1930 novecentos mil habitantes, chegando em 2020 a vinte milhões de habitantes, em sua área metropolitana.  Nos próximos dez anos está previsto um êxodo rural da ordem de 200 milhões de pessoas na China (10 São Paulos!). Como fazer frente a esse afluxo de pessoas? Como abrigar as grandes massas que chegam a grande cidade industrial, garantindo direito à cidade?

Imanuel Kant(1724-1804) nasceu numa modesta família de artesãos, depois de um longo período como professor secundário de geografia, Kant veio a estudar filosofia, física e matemática na Universidade de Konigsberg e em 1755 começou a lecionar ensinando Ciências Naturais. Em 1770 foi nomeado professor catedrático da Universidade de Königsberg, cidade da qual nunca saiu, levando uma vida monotonamente pontual e só dedicada aos estudos filosóficos. Apesar disso foi o definidor do cosmopolitismo kantiano, que celebrava a diversidade entre pessoas, que fomenta o desenvolvimento humano. Realizou numerosos trabalhos sobre ciências naturais e exatas, fazendo uma crítica importante a ciência e ao positivismo, na Crítica da Razão Pura, apontando que além das relações de causa e efeito haviam premissas ético morais. Kant é reconhecido por formular o idealismo transcendental: todos nós trazemos formas e conceitos apriori (aqueles que não vêm da experiência) para a experiência concreta do mundo, os quais seriam de outra forma impossíveis de determinar.A  modernidade é definida por Kant e a crítica ao seu positivismo na sua abordagem da razão prática.

Georg Wilhem Friedrich Hegel (1770-1831) é unanimemente considerado um dos mais importantes e influentes filósofos da história, criador de uma geração de discípulos de esquerda e direita, materialistas e idealistas. Pode ser incluído naquilo que se classifica como Idealismo Histórico Alemão, uma espécie de movimento filosófico entre pensadores de cultura alemã (Prússia) do final do século XVIII e início do XIX. Suas discussões tiveram por base a publicação da Crítica da Razão Pura de Kant. Hegel, ainda no seminário de Tübingen, escreveu, juntamente com dois renomados colegas, os filósofos Schelling e Höderlin, o que chamaram de "O Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão". Hegel era particularmente preocupado com a forma que capturamos o real, a partir da razão, buscando uma relaçao absoluta entre o real e racional, na citação; "o real é racional, e o racional é real". Posteriormente Hegel desenvolveu um sistema filosófico que denominou "Idealismo Absoluto", uma filosofia capaz de compreender discursivamente o absoluto (de atingir um saber do absoluto, saber cuja possibilidade fora, de modo geral, negada pela crítica de Kant à metafísica). 

Karl Marx, nasce em 1818 na cidade de Trier na Prussia, filho de um judeu que renegou sua religiosidade para poder exercer a função de funcionário público na Prússia, morre em Londres 1883, sem ter noção do impacto que sua teoria representaria para o mundo. Marx é considerado um hegeliano de esquerda, materialista e interessado na destruição da metafísica, que de certa forma havia sido reconstruída por Hegel. Em 1845 escreve, As teses sobre Feuerbach (1804-1872) um jovem hegeliano materialista, foram escritas em 1845 e apenas publicadas por Engels em 1888, nas quais aprofunda sua visão a respeito do protagonismo dos pensadores, negando a posição de mero intérprete do real, para se declarar, como um interessado na mudança. Expressos de forma mais enfática, em duas dessas teses; “A prática como critério da verdade”, ou a 11ª Tese; “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.” Em 1848 escreve com Engels, O Manifesto Comunista, um tratado que celebra a expansão do espectro comunista na Europa, com fortes tintas teleológicas. Em 1867 escreve O Capital, sua maior obra e uma tentativa exaustiva e sempre inacabada de compreender o sistema capitalista, que nas entrelinhas chega a ser celebrado, como um propulsor de mudanças contínuas e inesperadas. Em 1897 é lançado o Segundo volume do Capital, editado e compilado por Engels, a partir das intermináveis anotações de Marx, no Museu Britânico. Marx é um filósofo em eterna evolução e revolucionamento, um pensamento que se transforma num sistema de interpretação da modernidade.

No contexto arquitetônico e urbanístico, vivemos de meados do século XIX até a década de 1930, a primeira modernidade, aonde o reformismo urbano assume um caráter claramente higienista, manifestos nos projetos de Cerdá de expansão de Barcelona 1849, ou a Paris de Hausmann de 1853. No qual emerge a figura das avenidas e boulevards, que pretendem dar eficiência ao circular das mercadorias e das pessoas no seio da cidade, há uma clara ampliação do espaço público das ruas e praças. Mas conservam-se as estruturas permanentes da cidade, como o lote, a rua e a quadra, como elementos primários dos planos, que assinalam a convivência da esfera pública e privada, que na evolução consolidam um vocabulário de negociação. Há nesses elementos a recorrência de medidas exatamente iguais nas dimensões das ruas vicinais (20metros), avenidas (35 metros), quadras (120x120 metros), entre Barcelona, La Plata na Argentina, e Belo Horizonte no Brasil. Esse mesmo contexto histórico assiste a emergência da cultura estadounidense, como representação da nação mais poderosa do sistema capitalista, superando a hegemonia inglesa de forma completa no final da 2a Guerra Mundial.


Bruno Taut e o Conjunto da Ferradura em Berlim, 
continuidade e descontinuidade com a cidade do século XIX
Duas cidades emergem nesse contexto como expressões desse Espírito de Época, de 1850 a 1930, Chicago e Viena serão a manifestação dessa primeira modernidade, em países colocados na periferia imediata das nações então centrais (Inglaterra e França). Chicago com a luta entre o academicismo do movimento city beautiful, que ainda celebra o neo clássico branco, contraposto ao modernismo de Sullivan e Frank Lloyd Wright, com seu funcionalismo orgânico. Viena pelo movimento da Secessão, e pela constituição de poderosas redes de infraestrutura, como o Metrô da cidade, todo desenhado por Oto Wagner. Viena também reúne uma diversidade de movimentos políticos e culturais que vão da psicanálise de Freud ao movimento da Neue Sachlichtikeit (Nova Objetividade) de Adolf Loos, que proclama não estar mais interessado em produzir monumentos, mas a casa do operário comum e indiferenciado. As vanguardas centro europeias mencionadas por TAFURI 1981, que comanda o primeiro impulso de formulação do modernismo, nas cidades alemãs e austríacas. O tema principal desses arquitetos será o conjunto habitacional para o operário e para a classe média, os exemplares de Bruno Taut e Karl Ehn mantém uma certa continuidade com a cidade do século XIX.

A hegemonia de Le Corbusier será construída no momento seguinte, segundo FRAMPTON 1997, na sequência dos encontros nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs), o de 1930 realizado a bordo de um navio, opera a predominância do arquiteto suíço, frente às vanguardas centro-europeias. A partir de Le Corbusier, a moradia urbana declina como tema, assumindo em seu lugar a cidade jardim, aonde não há mais continuidade com a cidade do século XIX, aonde avenidas para veículos se contrapões a torres, que devem destruir a ocupação pré existente. É o Plano Voisin para Paris, uma fábrica de automóveis, que marca a hegemonia dos veículos particulares frente as estruturas de transporte sobre trilhos, que até então encarnavam a modernidade. Esse será o modernismo hegemônico no Brasil, aonde a cidade é resolvida a partir de superestruturas arquitetônicas, que abrigam viadutos, e onde os carros ganham cada vez mais espaço no urbano.

No campo filosófico, destaca-se a figura de Antonio Gramsci, que nasce na Sardenha na cidade de Ales em 1891, e morre em Roma em 1937, após um longo período nas prisões fascistas de Mussolini, que lhe permitem produzir uma das mais profícuas reflexões no campo do marxismo. Sua origem na Sardenha numa família precarizada, será um marco nas suas reflexões sobre os subalternos, não só econômica, mas principalmente cultural. Em 1911, sai da Sardenha com uma bolsa de estudos para o curso de Linguistica, no ramo da Glotologia, na cidade industrial de Turim, desenvolvendo por isso uma forma de pensar com muitas analogias com o processo evolutivo sonoro das línguas. Isto é, uma manipulação aberta, incontrolável e contínua pelos seus usuários, que muito dificilmente são regulados pelo poder. A dialética gramsciana terá sempre uma dinâmica complexa e ampla entre erudição, manipulação popular livre e o esforço geral de ser compreendido ou assimilado, ou ainda reconhecido presente na lingua. Em 1919 funda com Togliatti a Revista L´Ordine Nuovo, que será uma referência nos debates político culturais da Itália, principalmente na crítica ao economicismo marxista. Em 1926 é preso pela polícia de Mussolini, já como deputado do Partido Comunista da Itália, pela região de Veneza por seus questionamentos ao fascismo, e por suas visões a respeito das relações de dominação entre centro e periferia, dominação e subalternidade. Nos anos de cárcere desenvolverá reflexões importantes sobre; revolução e reforma, ruptura e gradualismo, coerção e convencimento, centro e periferia, representante e representado, ideologia e hegemonia sempre a partir de uma radical filosofia da história. Seu pensamento também estará sempre vinculado a uma dinâmica espacial e geográfica, identificando núcleos irradiadores  e periferias dependentes, que por isso possuem potencial de rebelião e inconformismo. Como observador da Revolução Russa empreendeu uma crítica ferrenha ao burocratismo e a perda do aprofundamento da democracia radical. 


No final dessa primeira aula assinalava como a modernidade havia perdido sua inocência com o final da Segunda Guerra Mundial, quando as bombas de Hiroshima e Nagasaki demonstram uma imensa capacidade destrutiva vinculada fortemente à tecnologia e a ciência. O poderio industrial e militar americano e soviético ganham uma lógica particular, que se torna independente das aspirações comuns, se envolvendo numa espiral competitiva interminável. O homem toma consciência da finitude dos recursos do planeta e percebe sua enorme capacidade destrutiva. A técnica e ciência demonstram uma enorme capacidade de destruição e desequilíbrio por seu caráter limitado e restritivo, que não enxerga a complexidade dos sistemas. A crença na industrialização, padronização e repetição intermináveis como uma promessa de redenção das misérias da humanidade sofre um abalo definitivo, passando a ser encarada com desconfiança. A alteridade e a diferença entre seres humanos passa a ser celebrada, como expressão de identidades que conformam novas formas de racionalidade e de construção da interpretação do mundo.

BIBLIOGRAFIA: 

FRAMPTON, Kenneth - História crítica da Arquitetura Moderna - Editora Martins Fontes São Paulo 1997

HABERMAS, Jürgen - O discurso filosófico da modernidade, doze lições - Editora Martins Fontes São Paulo 2000

LIGUORI, Guido e VOZA, Pasquale orgs. - Dicionário Gramsciano - Editora Boitempo São Paulo 2017

MARX, Karl - O Capital, livro I - editora Boitempo São Paulo 2013

TAFURI, Manfredo - Teorias e História da Arquitetura - Editorial Presença Lisboa 1981

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas e a Arquitetura

Os dezessete Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)
da ONU
Em 2015 a Organização das Nações Unidas (ONU) fixaram 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), para que em 15 anos eles sejam atingidos por todas as nações do mundo, principalmente as 150, que o assinaram. É um desafio imenso colocado pela ONU, e, pelo estágio atual de penetração na sociedade da mentalidade neoliberal considera-se difícil seu alcance, principalmente no que se refere a uma melhor distribuição de renda. É um fato comprovado por diferentes estudiosos, que a concentração de renda tem se intensificado, nos últimos anos determinando que poucos tenham muitos recursos. Tal situação decorre de uma série de desregulamentações, que foram implantadas em nossa contemporaneidade por essa mentalidade, que vem de forma sistemática endemonizando o Estado, e celebrando a iniciativa privada. É importante firmar que historicamente a figura do Estado com sua arrecadação de impostos e a promoção de urbanidade, educação e saúde universalizadas é a  forma conhecida de promoção de divisão de renda. Segundo a OXFAM, organização da sociedade civil criada no Brasil em 2014, que apresentou relatório para a tradicional reunião de Davos na Suíça em janeiro de 2020 "...em 2019, os bilionários do mundo, que somam apenas 2.153 indivíduos, detinham mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas." Tal situação confronta de forma veemente uma série dos 17 ODS da ONU, e principalmente o seu primeiro; "Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares."

Mas de uma maneira geral, a sociedade contemporânea, e particularmente a brasileira não consegue fazer as conecções desses objetivos com nossa condição espacial do mundo de hoje, em nossas cidades e na forma como ocupamos o território do planeta. Esse artigo pretende exatamente relacionar cada um dos dezessete ODS, com nossa concepção do que é o "bem viver"(1) e a "boa cidade"(2). As formas de produção e reprodução da cidade contemporânea, e a maneira como encaramos a boa moradia foram geradas em outros tempos da humanidade, aonde os recursos do planeta como os combustíveis fósseis ou os mananciais de água doce pareciam intermináveis e inesgotáveis. O modelo anglo saxão de cidade com subúrbios jardins de baixa densidade, próximos da natureza, afastados dos centros urbanos com o uso exclusivo habitacional, contraposto às centralidades dominadas pelo uso do trabalho e da concentração de empresas continuam dominando o senso comum (3) como o paradigma do "bem viver". O rodoviarismo continua sendo celebrado de uma maneira irresponsável, na perspectiva inocente ou as vezes interessada de que a transformação do combustível de fóssil para o elétrico garantirá carros para todos. Comprovando a presença dessa mentalidade basta vermos os imensos investimentos feitos na China contemporânea para incrementar o uso do carro particular para todos. Imensas estradas para automóveis particulares, complexos de viadutos que articulam variadas interconexões, imensas torres de escritórios com vidros espelhados, complexos comerciais concentrados e pontuais continuam fazendo a fantasia do cidadão comum em todos os quadrantes. Esse fetiche da boa vida urbana permanece sendo a representação do bem viver em diferentes pates do mundo, isto é, uma cidade dispersa de baixa densidade, dependente do automóvel particular e centrada numa vida competitiva e pouco solidária. Enfim, um desastre social e ambiental anunciado. 

Mas listemos os ODS. O primeiro fala literalmente em extinção da pobreza, e decreta; "Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares." Em nossas cidades aonde encontramos a pobreza; em favelas ou bairros precarizados que não desfrutam da plenitude dos serviços urbanos, faltando infraestruturas básicas, tais como água, esgoto, lixo, segurança, iluminação, lazer, educação, habitação salubre, saúde, etc. A implantação desses serviços deve ser fruto de um projeto de urbanização, um ordenamento territorial que permita a promoção da salubridade geral e ao mesmo tempo preserve os esforços já empreendidos pela comunidade. Por outro lado, é importante a produção habitacional para todos em condições de urbanidade apropriada, garantindo que não haja mais moradores de rua.

O segundo, menciona; "Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável." Especialistas de diferentes tendências apontam que o incremento dos preços dos alimentos é invariavelmente decorrência direta do seu transporte em grandes distâncias. A implantação de micro-hortas urbanas a partir do associativismo de condomínios de apartamentos e nas favelas e bairros precarizados me parece ser a fórmula que garantiria proximidade entre produção e consumo no setor de alimentos, garantindo preços mais acessíveis.

O terceiro objetivo sustentável decreta; "Assegurar uma vida saudável e promover o bem estar para todos em todos os lugares." Devemos promover uma urbanidade que incite o caminhar diário em calçadas e travessias seguras, promovendo a articulação de modais de transportes ativos, como bicicletas. Estruturar áreas de lazer e de promoção de exercícios ao ar livre próximo de todas as habitações da cidade, enfatizando o convívio social nas diversas horas do dia.

O quarto; "Assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos." A escola deve possuir uma certa centralidade no ambiente urbano sendo um elemento aglutinador no bairro ou contexto que se insere, devendo estar próxima de um caminhada curta, mesmo para as crianças. A ideia dos CEUs em São Paulo, ou os CIEPs no Rio de Janeiro, ou ainda os CIACs pelo Brasil é o que o simbolismo de suas construções representavam essa centralidade, aonde se podia praticar esportes, se informar e interagir com a comunidade. 

O quinto ODS é "Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas". A cidade que tenha claro em sua espacialidade o empoderamento de todas as mulheres e a igualdade de gênero é um ambiente urbano acolhedor, de intimidade e que transmita conforto. O acolhimento deve acontecer em situações variadas, quando caminhamos, atravessamos, pedalamos, dirigimos, buscamos o transporte público, etc. São situações cotidianas nas quais nos achamos seguros e acolhidos pela ambiência e pelas outras pessoas, é o desfrute de uma gentileza urbana que se manifesta em todas nossas operações.

O sexto; "Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos." Se refere a gestão de nossos mananciais de água, como rios, praias e baías, garantindo não só sua potabilidade, mas também sua balneabilidade. Essa gestão é impulsionadora de saúde para a população e reforça todos os outros ODS. A água deve ser entendida como elemento da paisagem urbana, e mostrada, e apreciada em todo seu dinamismo, nas épocas de chuvas ou secas, e na diversidade das marés. Os rios particularmente no ambiente urbano devem ser mostrados e apreciados como elementos da paisagem, entendendo sua dinâmica variada e rica para o meio ambiente.

O sétimo; "Assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todos." As novas tecnologias de captação, como eólicas e solar devem ser franqueadas no ambiente urbano para todos impulsionando uma economia pulverizada e compartilhada, que associe diferentes agentes nos bairros e comunidades. As soluções devem ser construídas de forma associativa e colaborativa, aglutinando usuários, que a partir de um assessoramento correto optam pela solução mais adequada. Os impactos ambientais e paisagísticos devem ser avaliados de uma forma holística, demonstrando um cuidado com a paisagem construída e natural.

O oitavo; "Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos." Esse objetivo traz logo em seu início, o seguinte texto; "O desemprego global aumentou de 170 milhões em 2007 para cerca de 202 milhões em 2012, dentre eles, aproximadamente 75 milhões são mulheres ou homens jovens." O incentivo a economia criativa, ao empreendedorismo, a multiplicação dos pequenos negócios através do crédito devem ser políticas continuadas, pois são esses empreendimentos que mais geram empregos. O desdobramento disso no espaço deveria ser impulsionar os centros de bairros pulverizados no território, incentivando o comércio localizado.

O nono é; "Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação." O sistema capitalista desregulamentado vem destruindo empregos de forma predatória, desde o final da década de setenta, quando Thatcher e Reagan chegam ao poder na Inglaterra em 1979, e nos EUA em 1981. O neo liberalismo ainda dominante precisa de regulamentação, principalmente no seu braço financeiro, que bloqueia claramente o alcance desse objetivo. Do ponto de vista espacial, as infraestruturas pulverizadas e avessa a grandes concentrações parece ser a atitude que promoverá esse ODS, isto é, ao contrário dos grandes centros de geração ou tratamento de energia ou esgotos, por exemplo, devemos ter essas pulverizadas no território, atendendo pequenas comunidades. Mas, mais uma vez isso contraria uma tendência do sistema capitalista neo liberal, que sempre foi de concentrar empreendimentos, numa vertente inercial monopolista.

O décimo é; "Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles" Como já assinalado essa não é a tendência inercial do capitalismo em sua versão neo liberal, que na verdade vem concentrando renda, e gerando mais desigualdade. O fomento a micro empreendedores locais, o desenvolvimento de um cotidiano de consumo micro localizado, como propõe a permo cultura, isto é a compra de produtos dentro de um raio de proximidade menor possível.

O décimo primeiro é; "Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis". A espacialidade das cidades e dos assentamentos humanos precisam transmitir segurança, resiliência e sustentabilidade. O empoderamento das micro comunidades, bairros ou localidades precisam ser fomentados a partir do debate sobre o plano e projeto desses lugares, desenvolvendo uma consciência local. O debate sobre o vir-a-ser desses lugares precisam ter como premissa a inclusão, que me parece o maior desafio nas condições atuais do desenvolvimento capitalista neo liberal.

O décimo segundo é; "Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis" Esse objetivo é na verdade um desdobramento dos últimos quatro, que serão atendidos a partir do fomento aos pequenos e pulverizados empreendedores.

O décimo terceiro é; "Tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos". Os desequilíbrios ecológicos e seus impactos são consequência direta do individualismo empreendedor e do declínio das práticas de solidariedade tão fomentados pela ideologia do capitalismo neo liberal. A reversão dessas práticas, com o fomento do associativismo e da solidariedade parece ser uma urgência contemporânea. A arquitetura e urbanismo que fomente o encontro a interação entre pessoas e agentes, como se celebrasse a diversidade das pessoas e opiniões possui um papel relevante aqui.

O décimo quarto é; "Conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável". Os teóricos DARDOT E LACVAL 2017 destacam de forma correta, o papel dos mares e oceanos como um patrimônio comum da humanidade, que resiste a seu cercamento e privatização pelo capitalismo. A exploração racional e solidária dessa imensa espacialidade é fundamental para se atingir o objetivo anterior.

O décimo quinto é; "Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade". DARDOT e LACVAL 2017 também apontam as florestas, parques e ecossistemas como patrimônio comum da humanidade, que não pode ser cercado e privatizado. O Comum é um conceito jurídico, que emerge do juízo consuetudinário, que é a naturalização de nossa compreensão da justiça, que compreende esses espaços como pertencentes a todos.

O décimo sexto é; "Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis" Mais uma vez a espacialidade correspondente a esse objetivo deveria ser a representação da transparência e do republicanismo, fornecendo ou facilitando todas as informações aos cidadãos comuns. A paz e a reunião das diferenças humanas é claramente celebrada aqui, e possui sua correspondência espacial nos territórios adequados ao encontro e a interação.

Por último, o décimo sétimo é; "Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável". Percebe-se mais uma vez a falta de um maior poder de síntese na elaboração dos 17 ODS, uma vez que muitos deles me parecem repetidos, gerando uma certa dispersão pelo número excessivo de objetivos. A representação espacial desse último objetivo é uma repetição do anterior, aonde a união dos povos e a diversidade de opiniões devem ser adequadamente fomentadas.

NOTAS:


(1) O conceito de bem viver é uma disputa ideológica em torno de padrões de vida. ÁBALOS, Iñaki em seu livro La buena vida, visita guiada a las casas da modernidade aponta o morar moderno como constituído por retiro edílico e proximidade da natureza. Esse padrão se adapta aos novos paradigmas ambientais?

(2) O modelo de cidade, ou sua cristalização numa tipologia permanece preso ao referencial romântico moderno, aonde a habitação está próxima aos idílios naturais, gerando baixa densidade no morar e alta concentração do trabalho; a cidade estado unidense.

(3) A ideia de senso comum aqui compartilhada provém de GRAMSCI, que em geral entendia-o vinculado a ideologia mais difundida e com frequência partilhada pelo grupo social dominante. No Dicionário Gramsciano; "Em geral, trata-se da ideologia mais difundida e com frequência implícita de um grupo social de nível mínimo. Por isso, ele se relaciona dialeticamente com a filosofia, isto é com o segmento alto da ideologia..." LIGUORI  e VOZA 2017 página723

BIBLIOGRAFIA:

ÁBALOS, Iñaki - La buena vida, visita guiada a las casas da modernidade - Editorial Gustavo Gilli Barcelona 2000

DARDOT, Pierre e LACVAL, Christian - Comum, ensaio sobre a revolução no séculoXXI - Editorial Boitempo São Paulo 2017

LIGUORI, Guido e VOZA, Pasquale orgs. - Dicionário Gramsciano - Editora Boitempo Saõ Paulo 2017