quinta-feira, 14 de junho de 2018

O arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos

Os editores Anibal Bragança e Ernandes Fernandes, mediados
pelo presidente do IAB-RJ Pedro da Luz Moreira
Recentemente foi feita uma homenagem ao arquiteto Carlos Nelson Ferreira dos Santos (1943-1989), com a nomeação do Auditório do Instituto Pereira Passos (IPP), órgão de informações da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ), com seu nome. Tal iniciativa faz uma referência a um dos mais importantes arquitetos e urbanistas do Brasil, dos anos oitenta, que reuniu uma obra teórica e projetual notável sobre a arquitetura e a cidade. Professor e ideólogo da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU-UFF) em Niterói, Carlos Nelson Ferreira dos Santos era um polemista provocador, que pensou o ofício no período pós Brasília de uma forma pouco ortodoxa e essencialmente rebelde. Em sua obra a crítica a arquitetura e urbanismo modernista, que gerou uma cidade separada por funções como trabalho, laser e moradia, com clara supremacia rodoviária, e com uma distância apolínea dos seus usuários, era uma constante. Carlos Nelson foi desses profissionais que questionavam fortemente a naturalização de alguns atributos do ofício da arquitetura e urbanismo, abrindo novas frentes de atuação, removendo inércias arraigadas.

A solenidade de batismo do auditório do IPP com o nome de Carlos Nelson dos Santos transcorreu com a participação de uma série de amigos e parceiros de trabalho, que de alguma forma desfrutaram da sua convivência. A primeira atividade foi a projeção do filme sobre o bairro do Catumbi, Quando a rua vira casa, com a presença da diretora e produtora Tete Moraes, que narrou de forma emocionada a experiência de desenvolvimento do filme. A segunda mesa de debates foi composta pelos editores da Eduff e da Casa 8, Anibal Bragança e Ernandes Fernandes, que trouxeram seu depoimentos sobre a elaboração da coletânea do livro Sementes Urbanas. A terceira mesa de debates foi composta pelas Professoras da EAU-UFF Maria Laís Pereira da Silva e Maria de Lourdes Pinto Machado Costa, que foram organizadoras do livro Sementes Urbanas, além da sócia do escritório de Carlos Nelson, Sueli de Azevedo. Todos os participantes narraram experiências e vivências memoráveis, e o presidente do IAB-RJ Pedro da Luz Moreira, que coordenou e mediou as diversas mesas lembrou que o livro A cidade como um jogo de cartas, do mesmo Carlos Nelson permanece sem uma reedição programada, e que essa seria uma importante missão a ser promovida por todos aqueles que tem um apreço pelo pensamento em arquitetura, e no urbanismo.

Ao final, as organizadoras dos textos de Carlos Nelson, Maria Laís Pereira da Silva e Maria de Lourdes Pinto Machado Costa autografaram os livros no pilotis do IPP, reforçando a contemporaneidade do autor no contexto atual das cidades brasileiras, que permanecem necessitadas de maior participação e engajamento de sua população.

A prática do ofício de Carlos Nelson envolvia sempre; experiências de urbanização de favelas, ou o esforço de dar voz a usuários diferenciados da arquitetura e do urbanismo, ou ainda a superação dos limites entre linguagem erudita e vernacular na produção do espaço construído. Seu engajamento na divulgação das lutas e reinvindicações de bairros atingidos por transformações viárias, como o Catumbi no Rio de Janeiro, ou a luta pela urbanização de favelas tiveram sempre uma presença destacada na sua vida e prática profissional. Seu pensamento sempre se ancorou na constatação, de que o espaço construído pelo homem no nosso planeta, sempre envolveu uma complexa interação entre as formas socialmente compartilhadas de produção desse espaço, e essa mesma cultura erudita compartilhada nas escolas de arquitetura. Esse pensamento procurava dar um destaque todo especial a produção alternativa da espacialidade de cada indivíduo, e, também a forma de se apropriar de forma particular desse ambiente. Apesar de uma clara contaminação do seu fazer por disciplinas como a sociologia e a antropologia, Carlos Nelson possuía um desenho sofisticado e aprimorado, límpido na sua comunicação sempre sintética, que apesar disso recusava o distanciamento apolíneo, deixando ser usado de formas variadas como uma provocação.
As suas palavras no livro Cidade como um jogo de cartas, ainda ressoam sobre a realidade brasileira, que possui uma descarada espacialidade subdividida e partida entre extratos sociais ricos e pobres, separados por uma urbanidade onde o Estado está presente, e outra, onde essa presença não existe. Essa realidade foi produzida por uma prática de mandonismo exacerbado por parte de nossas elites, que não reconhecem no conjunto da nossa população a capacidade de formular seu próprio espaço com competência e beleza. No entanto, o comprometimento com a formulação e o desejo de intervir nos espaços, típicos dos arquitetos não devem ser reprimidos ou substituídos pelas cômodas neutralidades dos diagnósticos. As hipóteses de desenho devem sempre ser testadas e aprimoradas, explicitando conflitos e acordos provisórios, que acabam por desembocar em novas práticas esclarecedoras; 

"O erro, porém, não está em materializar o desejo de intervir no espaço através de estudos preliminares que viram anteprojetos e projetos se corrigindo sucessivamente. Não é pela renuncia à responsabilidade de dar formas aos lugares, caindo nas neutralidades cômodas dos diagnósticos e dos planejamentos que só cuidam de generalidades, que iremos encontrar saídas. O que está faltando é a ida-e-vinda dos fundamentos conceituais, que geram críticas alimentadoras de conceitos revisados, habilitadores, por sua vez, de novas práticas." SANTOS 1988 página17

Enfim, não podemos abdicar de nosso método particular de abordar o real através do desenho e do projeto, que lança por aproximações sucessivas a adequação entre desejo, cultura e custos para superar realidades impostas.

BIBLIOGRAFIA:

SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos - A cidade como jogo de cartas - Eduff Niterói 1988


domingo, 10 de junho de 2018

Subalternidade, planejamento, segurança e a Favela da Rocinha

A Favela da Rocinha entre São Conrado e a Gávea
Grande parte dos problemas brasileiros são fruto de uma incapacidade nacional de pensar com sua própria cabeça de forma autônoma nossa realidade, há uma certa subalternidade recorrente entre nossos pensadores mais brilhantes. A presença daquilo que nosso genial dramaturgo Nelson Rodrigues denominava, "complexo de vira lata do brasileiro" é um fato, que nos impede muitas vezes de perceber como nossa história se conecta e se vincula com movimentos mundiais. Afinal a expressão, "Somos ainda hoje uns desterrados em nossa própria terra" inaugura no ano de 1936 a primeira edição do livro Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Nossas elites sempre se encantaram com a Europa e a "América" como representações civilizatórias avançadas, contrapostas a uma realidade feia, caótica e surpreendente, que lhes fugia da compreensão. Aqui a regra foi sempre a convivência solidária entre arcaico e moderno, determinando a parcialidade de nossas transformações, que se restringem a revoluções passivas recorrentes, mantendo nos numa eterna condição periférica.

O mundo grande e terrível, que sempre maravilha nossas elites cresce em sua cabeça como algo inalcançável, da realidade agrária e atrasada dos campos as nossas imensas metrópoles modernas e arcaicas nada parece digno de menção, ou reconhecimento de originalidade e potência. Mesmo Sérgio Buarque de Holanda apresentava em suas entre linhas o "complexo de vira latas" na sua celebração do iberismo hispânico, na sua apressada comparação entre as regulares cidades da América espanhola, e o pseudo acaso das cidades coloniais portuguesas. A metáfora do ladrilheiro, que correspondia as cidades da colonização espanhola, onde a regularidade é celebrada, frente ao semeador, que lança suas sementes ao acaso, que denunciava o aleatório português. Na verdade, o rigor dos engenheiros militares portugueses era fruto de um projeto muito mais sofisticado de cidade, que a pensava a partir de seu sítio, e não a partir dos cânones homogeneadores da Lei das Índias, consolidadas com Felipe II. Cada cidade deveria ter uma implantação específica, capaz de reunir projeto e sítio numa interação mais articulada e pensada, ao invés de um projeto genérico e repetido, com a malha xadrez reguladora, uma solução para cada sítio. Apesar dessa maior sofisticação de projeto, nas cidades de colonização portuguesa, ainda permanece uma certa subalternidade com relação às nossas vizinhas cidades de gênese espanhola, mantendo-se o argumento a partir da necessidade de se contrapor ideologicamente às cidades pré-colombianas (astecas, maias e incas) com um modelo único.

É emblemático dessa atitude, o comportamento de alguns liberais nacionais, que sempre renegam a história, a composição social e os procedimentos cotidianos do povo como inadequados a modernização capitalista. Nesse sentido, o artigo do publicista, ou antecipador de marqueteiro, Roberto Campos é exemplar da eterna necessidade no pensamento conservador de predominância da ordem frente ao localismo, e até ao liberalismo:

"Busco sem êxito razões para ser otimista, mas recorrentemente recaio em depressão ao ser lembrado das tres raízes de nossa cultura;  a cultura ibérica, que é a cultura do privilégio;a cultura africana, que é a cultura da magia; e a cultura indígena, que é a cultura da indolência. Com esses ingredientes, o desenvolvimento é uma parada."* CAMPOS 1991

Mas tal atitude não se restringe aos ideólogos publicistas, como Roberto Campos, mas também atingiu o campo da ciência articulada a pesquisa, que por meio de citações eruditas mantinham nosso complexo de vira-latas. Para esses outros não tínhamos a feudalidade, nem portanto a comunidade burguesa em luta contra senhores de terra, fazendo de nossas cidades fortalezas autocráticas desconfiadas do campo que imperava, e onde dominava o coronelismo e o caudilho. A temática é sempre a mesma a necessidade de apagar nossa história, e reeducar nosso povo a partir de modelos europeus ou americanos, que refaçam nossa filiação ao ocidente. O obscurantismo, o autoritarismo e o burocratismo sempre atropelam os processos decisórios por cima, a partir de uma necessidade de urgência social.

A questão da segurança, que tanto angustia a sociedade brasileira não está a margem desse posicionamento da subalternidade e de uma certa incapacidade de pensar nossos problemas a partir da originalidade e da criatividade de sua própria gente. Por exemplo, a política de segurança pública de qualquer cidade no Brasil não pode ficar alheia a necessidade de se articular com o investimento na autoestima de comunidades sujeitas a exceção das atividades paralelas do tráfico de drogas ou outras. Essa foi, e permanece sendo a proposta implantada na cidade de Medellin na Colômbia, que teve um enfrentamento com a violência muito maior do que o vivido nas cidades brasileiras, lá, assim como aqui era claro a necessidade de investimento em auto-estima das comunidades. Apesar de problemas, havia uma virtude na política de segurança das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) no Estado do Rio de Janeiro, exatamente por essa considerar o território como um dado concreto. Afinal, a percepção de segurança nos mais diversos extratos não é a mesma quando estamos num bairro como o Leblon, ou na Favela do Morro Dona Marta. A dimensão territorial, espacial e demográfica são fundamentais também para as políticas de educação, saúde,  lazer, e outras, pois as oportunidades não estão distribuídas de forma equânime na cidade. Afinal, os níveis de urbanidade existentes são compreendidos de forma totalmente diferente entre bairros como Ipanema no Rio de Janeiro e Alcântara em São Gonçalo.

Paradoxalmente, essa mesma questão espacial também determinou o enfraquecimento da política das UPPs, pois, ao reproduzir mecanicamente a mesma solução do Morro Dona Marta, em outras favelas como na Rocinha e no Alemão revelou, que essa gestão não atentou para as diferenças de escala, demografia e tipologia entre esses assentamentos. Por outro lado, a questão da segurança é muito mais ampla do que a mera presença policial, envolvendo o controle social, que só pode ser alcançado na medida em que a urbanidade se faz presente, com serviços como coleta de lixo, distribuição de água, coleta de esgotos, iluminação, acessibilidade, mobilidade, etc... Nesse sentido, no caso específico da favela da Rocinha houve uma clara perda de oportunidade, na história recente da cidade, com o concurso de projetos para urbanização da área, promovidao pelo IAB-RJ, e vencido pelo escritório do arquiteto Luiz Carlos Toledo, em 2006. Esse concurso mobilizou dois seminários com a população da favela, organizados pelo escritório antes da proclamação do resultado, que apontava pontos positivos e negativos do morar nessa localidade. Sem dúvida, um esforço notável, uma vez que mobilizava a população da comunidade para se expressar, antes da garantia da remuneração do contrato. Após a decretação do vencedor, o escritório Luiz Carlos Toledo arquitetos associados construiu um projeto com intensa participação da população, promovendo claramente uma ampliação da sua autoestima, e apontando para uma pacificação ampla com o entorno e com a cidade. 

No entanto, ao contrário do que se esperava, e desse esforço notável, o projeto não foi integralmente implantado. Em 2013, o governo do Estado do RJ anuncia a substituição dos planos inclinados do projeto, a partir da solução pensada e negociada, por teleféricos, visualmente mais impactantes. A troca significa um expressivo aumento no orçamento da transformação, mudando o orçamento de R$70 milhões dos planos inclinados, para R$700 milhões nos teleféricos. A população da Rocinha se mobiliza numa enorme manifestação, que fecha a Avenida Niemyer e acampa em frente ao apartamento do governador no Leblon, reinvindicando saneamento básico, e o retorno ás concepções do projeto original. Mais uma vez se detecta por parte de nossas elites a incapacidade de perceber as aspirações da população favelada da cidade, e deixar que a construção de seu vir-a-ser possa ser socialmente compartilhado. Ao final, a pergunta, que hoje perpassa a cidade do Rio de Janeiro, e particularmente o bairro de São Conrado e da própria Rocinha, submetido a guerra de facções é; “Como estaríamos hoje, na área da segurança, se tivéssemos perseverado no projeto e no planejamento estruturado pelo escritório de Luiz Carlos Toledo, arquitetos associados?


NOTAS:

* A citação está em VIANNA 1997, artigo do jornal O Globo de 14 de julho de 1991 de Roberto Campos, sintomaticamente escrito no dia 14 de julho

BIBLIOGRAFIA;

ROIO, Marcos Del (org.) - Gramsci periferia e subalternidade - Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo 2017

VIANNA, Luiz Werneck - A revolução passiva, iberismo e americanismo no Brasil - Editora Revan Rio de Janeiro 1997