"Odeio os indiferentes [...]
acredito que viver significa tomar partido. Não podem existir os apenas homens
estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e
partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso
odeio os indiferentes." GRAMSCI 1999, pág.24
AUTONOMIA E HETERONOMIA NO PLANO E NA
PROJETAÇÃO, A RECOMPOSIÇÃO UTÓPICA E A AMPLIAÇÃO DA TRANSPARÊNCIA NO PLANO E
PROJETO:
Desde a década de
setenta, com os estudos de MARTIN e MARCH 1972, sobre o espaço urbano e sua
estrutura sabe-se que, a qualidade ambiental atingida é muito maior com a
adoção da solução “implantação continua”, do que com a ”torre”. E, mais a torre não garante a maior densidade, por
trás do culto aos arranha céus há certos pressupostos ideológicos, que
influenciaram a adoção dessa tipologia nas economias capitalistas e também nas
do socialismo real.
“No mundo ocidental, a teoria econômica neoclássica tem influência
marcante ao dirigir a operacionalização dos mercados de terra urbana,
implementada por meio das políticas de planejamento e do mecanismo de “renda”
(Lamarche 1976). Nesse sistema, a arquitetura é fundamental ao articular a
estrutura do ambiente construído e ao direcionar os benefícios ambientais, bem
como reforçar as fronteiras de classe e patologias contextuais…Leslie Martin usa o
grid de Manhattan para demonstrar seu argumento de que a eficiência espacial é
inversamente proporcional à altura da construção, dados os princípios básicos
do desenho urbano (planejamento do perímetro)… Tomando o pavilhão como forma
básica, ele demosnstra que a antiforma (ou o molde invertido do pavilhão-torre)
fornece a mesma forma construída para
1/3 da altura do edifício…Ele então aplica a forma básica à grelha urbana de
Manhattan, ilustrando não só que torres de 21 andares poderiam ser substituídas
por edifícios de 8 andares, mas que cada pátio poderia conter uma área verde
central equivalente a Washington Square.” CUTHBERT 2021, págs. 181
e 184
Há muito que a
objetividade produtivista luta pela captura da projetação e do planejamento, o
gerenciamento e as metodologias de desenvolvimento de planos e projetos ficam
presas ao desenvolvimento comportado e mediocrizante, soterrando as aspirações,
desejos e promessas dos agentes envolvidos em nome do cumprimento de uma meta,
que ao final perde substância, e frustra expectativas. Em nosso tempo, há um
claro achatamento do horizonte utópico, bloqueando as possibilidades de
transformação, determinando um comportamento inercial, que apenas reproduz o
incremento do lucro, em detrimento da qualidade de vida e da urbanidade. Há uma
clara restrição às hipóteses utópicas que o plano e o projeto pode levantar,
restringindo e nos condenando a reproduzir sempre a mesma cidade. Tal situação,
re emerge no mundo das ideias, a partir do final da década de setenta e início
dos anos oitenta, com a chegada ao poder de Thatcher (1979) e Reagan (1981),
que passam a negar a possibilidade da previsibilidade, desdenhando do plano e
do projeto, absolutizando a instabilidade do mercado. Desenvolve-se uma enorme
desregulamentação do capital, 0 Wellfare State ou Estado de Bem Estar Social
desmorona, uma transformação que esvaziou o uso industrial e fez emergir um
contínuo de serviços financeiros e especulativos, que passaram a representar no
mundo anglo saxão, um terço do emprego disponível. Inicia-se uma forte
hegemonia do capital financeiro no mundo. Em 9 de novembro de 1989 cai o muro
de Berlim, que dividia a Alemanha em dois, e o mundo da Guerra Fria das duas
superpotências apresenta sinais de esgotamento. Em meados dos anos 1990 o
advento da internet e das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) lançam
para a humanidade a possibilidade de acessar um amplo acervo de informações,
que determinam uma imensa dispersão de energias, parecendo inviabilizar a
possibilidade de construção de prioridades e consensos. A política se fragmenta
numa infinidade de interesses que parecem irreconciliáveis, apontando para a
impossibilidade da construção de consensos. Em 2004, a bolsa de tecnologia de
Nova York, Nasdaq força os grandes conglomerados de informação, como o Goggle e
Amazon a monetizar suas informações sobre seus usuários, caindo o pretenso
sigilo de nossas buscas para as grandes corporações monopólicas. Emerge disso
tudo, uma sociedade claramente sub teorizada e super informada, com clara
dispersão de suas energias questionadoras e disruptivas.
E, na verdade é esta substância utópica forjada
pelo próprio processo de questionamento da espacialidade que estamos
construindo - desejos, vontades de novas práticas e aspirações de novos mundos
-, que nos interessa; o engendramento de uma outra existência que passa a ser
compartilhado, na medida em que o plano e o projeto explicitam alternativas
para serem submetidas ao crivo do interesse público. Será que a tipologia da
torre, em seu isolamento individualista não deve passar a ser questionada
exatamente pela investigação histórica, que localiza na tipologia do Edifício Aquarius a
alternativa para uma cidade mais segura e solidária, onde a esfera privada
interage com o âmbito público em mútua vigília. Mas isso significa considerar
as ações de Plano e Projeto como autônomas, ou intelectualmente críticas e
livres das determinações impostas pelo sistema produtivo geral.
Dentro dessa mesma
questão, mas igualmente complexa, está a alienação do trabalho e pelo trabalho,
que envolve os mais diversos profissionais, que seguem numa reprodução repetida
e pouco criativa de práticas, mesmo em atividades que cobram dos agentes
inovação e novos procedimentos como no campo da arquitetura e do urbanismo. A
impressão geral e compartilhada é de que se produz a novidade, para tudo
continuar igual, o questionamento importante é a quem atende essa produção
inusitada, mas que mantém tudo como está. Há uma distinção importante a ser
feita entre pensamento conservador e progressista, àqueles que querem manter
como está, e os que querem sua mudança, de um lado a manutenção do status quo,
e de outro seu revolucionamento. Na sociedade brasileira, os que clamam pela
promoção de uma exclusividade restrita, e os que lutam pela inclusão de
parcelas expressivas da população, com melhor equidade de renda. De um lado, a
absolutização do Direito de Propriedade, como um valor natural dotado de uma
racionalidade instrumental produtivista. Do outro, a relativização do Direito
de Propriedade, conferindo mais importância ao Direito à Vida, à reprodução e
manutenção da existência digna, regulando a propriedade em benefício de todos. Um princípio geral vem fazendo a
diferença no Brasil nos últimos anos, entre o campo progressista e o conservador, e
tudo indica que continuará na nossa agenda, que é a busca por uma sociedade com
maior equidade, ou melhor distribuição de renda. De uma maneira geral, o senso
comum da sociedade brasileira não identifica nas atribuições dos governos,
federal, estadual ou municipal, uma estruturação do espaço construído do
território, nas cidades e no campo, uma capacidade para promover ou induzir uma
melhor distribuição de renda. De uma maneira geral, o brasileiro considera que
a promoção de maior equidade em nossa sociedade é fruto apenas de políticas nas
áreas da habitação, da saúde, da educação, da cultura, do saneamento, da
mobilidade social, etc de forma desvinculada do território, da espacialidade
das cidades e das áreas rurais. Nossa ordenação espacial não é só fruto de uma
sociedade dividida e partida por interesses de classe, mas também mantenedora
de uma situação bloqueadora de oportunidades e benefícios para as classes menos
privilegiadas. A preferência pela tipologia da torre denota a atuação de grupos
monopolizados, que concentram a iniciativa dos empreendimentos habitacionais.
A política urbana e de ocupação territorial do país podem ser fatores de
promoção de oportunidades de geração de renda, de pulverização das
oportunidades de se apropriar do adensamento urbano e de transformação social,
pois a ordenação espacial pode superar a exclusão gerando inclusão e
pertencimento. Nosso espaço citadino denota a excepcionalidade da riqueza,
enfatizada pela descontinuidade da torre, em contraposição a continuidade e
indiferenciação do contínuo da baixa altura. A mentalidade, que parece ainda
operar em nossa macro política é a do recém falecido ex ministro da economia
Delfim Neto, na época da decretação da Ditadura Civil e Militar de 1964, de que
“era necessário primeiro fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”. Como se,
a premissa de inclusão social e da promoção de oportunidades para a população
brasileira determinasse um bloqueio do desenvolvimento econômico do país.
Trata-se de um grande equívoco, uma vez que a qualidade espacial da cidade pode
representar uma apropriação indireta de renda para parcela significativa da
população, impulsionando o desenvolvimento. Nosso desenvolvimento econômico
seguiu aquilo que muitos teóricos identificam como o “modelo prussiano” ou
autoritário, típico de países de
chegada tardia ao desenvolvimento capitalista, que pregam um acordo restrito a
suas elites, sem a participação popular. Essa gerência conservadora da
territorialidade da cidade gerou concentração de renda, e a concentração dos
monopólios nos empreendimentos imobiliários, bloqueando a participação mais
ampla. A política urbana deve ser encarada como produtora de equidade, pois o
desenvolvimento citadino invariavelmente é determinado por investimentos
públicos vultuosos, combinados com uma apropriação privada desses benefícios,
por parte dos donos da terra urbana. A cidade brasileira espelha isso em seu
território de forma emblemática.Aqui há também
necessidade de reflexão sobre o momento doutrinário e o momento manual ou
operacional de se pensar o vir-a-ser, a distinção dos dois momentos não
significa a perda de correlação, mas sua representação integral, onde decisão e
ato correspondem a uma interpretação histórica plena e consciente. A projetação
precisa voltar a ser encarada como problematizadora dos anseios de uma
sociedade, e não mais como mera resolução mecânica de demandas de grupos
sociais específicos. A humanização da previsibilidade, que as ações de plano e
projeto envolvem, só será possível quando leva-se em consideração o interesse
público geral, que demanda uma maior democratização de como estamos construindo
nossas cidades. Desde o século XV, no renascimento italiano e mesmo na Idade
Média tardia era esse o debate entre as artes liberais e mecânicas, onde a
consciência do agir se articulava com a leitura histórica do processo humano
geral. Alberti, por exemplo sempre mencionou a necessidade de vigilância social
intensa daquilo que se deveria construir, que deveria ter como premissa os
interesses da res pública, a coisa pública, os anseios das cidades-estados dos
seu tempo. Tais questões povoam, por exemplo, o Tratado de Re
Aedificatoria de Leon Battisti Alberti (1404-1472), que fustiga a
questão da auto determinação coletiva dos povos, a partir do plano e do
projeto.
"Dera-se conta de que aqueles
fatos rompiam a tradicional relação existente entre o momento doutrinal e o
momento operacional e manual da arte; não havia mais continuidade, e sim
distinção e correlação de dois níveis, o da idealização, ou da teoria, e o da
prática. Entre os dois momentos, existe a mesma relação que, no agir
"histórico", há entre a decisão e o ato, uma relação pela qual o ato
não tem valor a não ser que dependa de uma decisão da mente, assim como, a
decisão não tem valor a não ser que se cumpra no ato. Explica-se, assim o
propósito albertiano de trazer a arte de volta a mímese clássica; se a imitação
deve ser um processo intelectivo, e não apenas mecânico, é preciso que não seja
cópia, mas representação, e obedeça às leis, ao princípio teórico da
representação como modo de conhecimento." ARGAN 1992 página109
Seria isso ainda possível,
ou uma utopia delirante? Para tal, o planejamento e a projetação precisam
abandonar a indiferença e se comprometer com a política, pensada a partir do
pressuposto de que ninguém deve ser deixado a margem. Antonio Gramsci,
considerava a previsibilidade como um direito humano, uma condição que na
verdade nos humanizava a medida que se tornava acessível a todos. Na verdade,
ele considerava, àqueles que não a desfrutavam viviam sobre condições inumanas,
animalizados. Realmente, a incapacidade de pensar sobre uma nova residência, um
outro bairro, ou até uma outra cidade, ou mesmo uma viagem, um filho, um
casamento, ou uma aposentadoria bloqueia nossa humanização, nos mantendo sem o
devido desfrute da plena humanidade. O pensamento conservador tem administrado
a reprodução do mesmo e do igual, do bloqueio da imaginação criativa, a partir
do medo, disseminando a ideia de que somos indivíduos, famílias isoladas,
lutando contra todos, reduzindo nossa consciência coletiva. Recentemente, o
poeta Mia Couto escreveu um belo texto sobre o medo, em clara contraposição a
esperança, dizendo nos da fomentação pelo poder instituído da disseminação dos
riscos de se pensar outros mundos. A onda conservadora, que se estabeleceu no
mundo recentemente trabalha exatamente com o medo de outras possibilidades de
existência humana; o socialismo, o comunismo, uma sociedade mais solidária e
democrática devem ser desacreditadas, e mesmo criminalizadas, pelo medo ao
inusitado. O medo não é um bom companheiro, quando pensamos o nosso futuro,
principalmente porque o poder instituído está sempre a promover o medo em
relação aos novos poderes, sejam eles; a des hierarquização da sociedade, a
democracia radical, ou a busca por maior equidade. "Para fabricar armas
é necessário antes produzir inimigos", e não há melhor inimigo, que o
desconhecido, o outro que não conhecemos, sejam "eles"; os
chineses que comem crianças, Karl Marx e suas ideias, ou Paulo Freire e a
pedagogia do oprimido. Há no mundo contemporâneo, uma presença imensa de dados
sem sentido manipulados pelas Big Techs, que nos apresentam a eles
a partir de interesses comerciais pouco transparentes, que só ampliam essa
sensação do medo. Tal condição bloqueia o debate, caracterizando-o como fruto
de movimentos sociais insatisfeitos e anti produtivos, que devem ser
criminalizados.
"A invenção da propaganda dirigida
por parte do Google foi pioneira em termos de sucesso financeiro, mas também
assentou o alicerce de uma consequência muito maior: a descoberta e elaboração
do capitalismo de vigilância. Seus negócios se caracterizam como um modelo de
publicidade, e muito foi escrito acerca dos métodos de leilão automatizados do
Google e outros aspectos de suas invenções no campo da publicidade on-line. Com
tanta verborragia, esses desenvolvimentos são ao mesmo tempo superdescritos e
subteorizados." ZUBOFF 2020 página 83
O medo, a partir do
Atentado das Torres Gêmeas em Nova York, se generalizou e se oficializou o
acesso às nossas privacidades, colocando nosso cotidiano mais íntimo disponível
para as Big Techs, que os comercializam a nossa revelia de forma
intensa. Nos novos negócios engendrados pelas novas tecnologias há também a
presença da alienação, agora não só do trabalho, mas também de nossas buscas,
desejos e interesses, que passam a ser vendidos a nossa revelia. Nos
manuscritos econômico-filosóficos que foram escritos por Karl Marx (1818-1883)
entre março e agosto de 1844 em Paris, portanto quando tinha apenas 26 anos, e
quando o autor acabara de ser exilado da Confederação Alemã, por seus artigos
no jornal Rheinische Zeitung, a Gazeta Renana. Há nesses Manuscritos uma importante
abordagem sobre questões que partem da economia política a partir de categorias
dos mundos da vida, tais como; salário, ganho de capital (lucro) e renda
fundiária e chegam a uma visão mais genérica e absoluta de ordem filosófica. A
visão de Marx persegue a desnaturalização de práticas gerais cotidianas dos
industriais, dos trabalhadores e dos proprietários de terra, que enxergam os
processos de lucro, exploração do emprego e valorização de forma mecânica e
natural da propriedade. Mas, que na verdade, precisavam de um arcabouço
artificial de leis e normas estabelecendo as novas formas capitalistas da
subjetividade, indo contra as noções de Comum e de Solidariedade, que estavam e
ainda estão arraigadas em nosso senso compartilhado de justiça. A categoria da
alienação é confrontada com os pensamentos de Hegel e Feuerbach, e passa a ser
historicizada na sua processualidade sócio material, como trabalho onde não há
mais reconhecimento do trabalhador.
"A alienação do sujeito recebe um
novo trato: deixa de ser a objetivação universal e necessária (como em Hegel,
que identifica objetivação com alienação) e não se reduz a um produto da
consciência (como em Feuerbach). Se em Hegel a supressão da alienação equivale
a supressão da objetivação, nos Manuscritos a objetivação só é alienação em
condições históricas determinadas - nas condições próprias à existência
histórica da propriedade privada (com suas conexões com a divisão do trabalho,
a produção mercantil e o trabalho assalariado). Se em Feuerbach ela se mostra
privilegiadamente na consciência religiosa, nos Manuscritos esta é, antes, uma
dentre várias condições sócio históricas muito determinadas." NETTO 2020
página 104
Portanto, continuamos
a produzir e a reproduzir a cidade de forma mecânica, sem pensar nas
consequências do automatismo de nossas operações, que são comandadas por um
plano-projeto que se recusa a questionar o estado das coisas. E aqui, é preciso
firmar que essas condições sócio materiais não impactam apenas o trabalho
braçal e mecânico, as artes mecânicas, mas também o trabalho intelectual, ou as
artes liberais, que de certa forma, escapavam dos manchesterianos Marx e
Engels. De acordo, com Manfredo Tafuri (1935-1994), o que era necessário era
(re)historicizar os processos, formas e possibilidades do trabalho intelectual,
que sempre esteve ligado às condições impostas pela evolução do desenvolvimento
capitalista. Por isso, TAFURI (1985), viu na atividade de investigação
histórica (que as vanguardas modernas desde o Renascimento sempre rejeitaram
como uma pré-condição de seus projetos) a ferramenta mais poderosa para
interrogar os efeitos do desenvolvimento capitalista sobre a agência e a
atuação intelectual, dando precisão e concretude ao interesse comum. Para
(re)historicizar as mentalidades intelectuais significava que o local político
da luta era o pensador trabalhar a si mesmo em termos de suas qualificações,
seus modos de ser especializado, sua capacidade de conectar informações e gerar
formas sintéticas, em cada ciclo de produção, pois o sistema sempre definiu um
novo mandato para o papel social de intelectuais. Para TAFURI (1985), tal
análise deveria fornecer uma forma inevitavelmente ideológica, pois essa
presença no sistema seria insuperável, fazendo da compreensão uma possibilidade
sempre parcial para a ação (intelectual). Nesse sentido, é interessante
observar como, hoje, as reflexões de TAFURI (1985) vêm inesperadamente (e
paradoxalmente) estar muito próximas, por um lado, de slogans, como
"trabalho criativo" e a sempre parcial autonomia do plano e do
projeto. E, por outro lado, e de forma não mais paradoxal, para as discussões
dos movimentos sociais da Itália dos anos oitenta, sobre as possibilidades de
cognições do trabalho como centro dos modos de produção pós-fordistas. Mas
enquanto essas posições absorveram completamente o produtivo status de
conhecimento, o crítico italiano concentrou a atenção na pressão dos pontos
dentro do desenvolvimento capitalista na cultura intelectual, problematizando o
desenvolvimento. É impressionante as conexões levadas a cabo pelo crítico
italiano, num mundo ainda não plenamente dominado pela emergência da hegemonia
neo-liberal, de Thatcher e Reagan, que hoje vivemos e do qual, parece que não
nos desvencilhamos.
"A utopia, portanto, não é mais do
que "visão estrutural da totalidade que existe e há de existir"
(MANHEIM, Karl - O pensamento conservador), transcendência do "dado"
puro, "sistema de orientação tendente a romper os laços da ordem
existente" para reganhá-los a um nível diferente e mais elevado (a utopia,
uma vez afirmada, se transforma de novo em ideologia...). Para Weber e para
Mannheim, a crítica da ideologia é um dos fatores dinâmicos do desenvolvimento.
Para ambos - tal como para Keynes - a única realidade individualizável é a
dinâmica do desenvolvimento. A utopia de Mannheim, para além das afirmações do
seu autor, é prefiguração de modelos finais e globais, no sentido da realidade
dada. A "crítica ao pensamento conservador" torna-se portanto uma
necessidade, um instrumento destinado a libertar o funcionamento dinâmico do
sistema. A ruptura constante do equilíbrio só poderá converter-se numa
"política científica", anti-ideológica, numa solução racional dos
conflitos gerados pelo próprio desenvolvimento, depois de ter reconhecido a
inerência daqueles conflitos ao processo dialético do real." TAFURI 1985
página 43
Em 1970, Tafuri
publicou o texto "Lavoro Intellettuale e Sviluppo Capitalistico",
Trabalho Intelectual e Desenvolvimento Capitalístico, na revista Contrapiano,
esse trabalho se converterá no capítulo 3 do livro Projeto e Utopia, que
recebeu o título de Ideologia e Utopia, do qual foi tirado a citação acima. Os
anos sessenta, setenta e oitenta na Itália, nos aparecem hoje como idílios
utópicos frente aos avanços destruidores do neoliberalismo contemporâneo,
iniciados naqueles mesmos anos, com os governos de Thatcher (1979) e Reagan
(1981). O Reformismo Capitalista, na Itália daqueles anos acreditava ser
possível direcionar o desenvolvimento para uma maior sustentabilidade social do
sistema, associando racionalidade do plano com uma abordagem mais científica
das forças produtivas. Era a domesticação do conflito de classes e a reforma dos
processos produtivos do capitalismo, por exemplo no seio da Olivetti, como a fábrica que se transformava
num campus de elevada produção, reunindo artistas, designers, intelectuais e
operários, numa possibilidade de novo humanismo social. Havia um eufórico eixo
domesticador do impulso do capitalismo, que envolvia agentes e atores
diferenciados como; Umberto Eco, Raniero Panzieri, Franco Fortini, Ítalo
Calvino, Alberto Asor Rosa, Massimo Cacciari e o próprio Manfredo Tafuri. Todos
empenhados na radicalização da democracia e perpassados por diferentes
gradientes de otimismo e pessimismo, mas acreditando num novo ciclo de
articulação entre o Estado de Bem Estar Social e o Capitalismo. Essa
problematização foi tão radical que podemos concluir que o verdadeiro objetivo
da crítica de Tafuri não era tanto o de estender ao poder, na forma tradicional
da política partidária (que, no final das contas, continuou sendo o objetivo
dos editores da Revista Contropiano), mas mais um meio de compreender, uma
vontade de profundamente desemaranhar os processos históricos através dos quais
o intelecto, a subjetividade real foi feita e artificialmente construída no
cotidiano. Mas, Tafuri também usou a vontade de entender como o antídoto para o
arquiteto e o crítico narcisismo de boas intenções, não só no âmbito
arquitetônico "boudoir", mas também no ativismo social dos chamados
pró arquitetos agressivos - muitos, presentes hoje - que na luta por demandas
acabaram se espetacularizando. Daí seu recorrente refúgio no tempo do
Renascimento na Itália, um lugar onde os homens parecem desfrutar de uma ampla
visão das condições críticas de operação do trabalho intelectual, jamais
reconquistado, na história humana.
"Por meio de sua intensa atividade
de historicização do desenvolvimento do projeto de modernidade arquitetônica
desde a Renascença até neo-avantgardê dos anos 1970, Manfredo Tafuri foi o
primeiro intelectual no campo da história e crítica da arquitetura entender que
não era mais possível para os intelectuais para abordar a questão das mudanças
sociais e culturais provocadas por desenvolvimento capitalista de uma
perspectiva externa. Na verdade, para Tafuri não havia posição externa no
capitalismo, uma vez que sua a totalidade era constituída pela realidade do
"trabalho assalariado", que também incorporou o papel do intelectual.
Consequentemente, ele entendeu que uma crítica ao capitalismo só poderia ser
produzido de dentro, a partir das categorias e formas através das quais eram -
conscientes ou inconscientes - mediando culturalmente os efeitos da
continuação do programa capitalista produção ou participando de sua reificação.
Para Tafuri, e para aqueles que influenciaram sua crítica, esta nova condição
significava que qualquer discurso crítico e político precisava, antes de mais
nada, ser dirigido a intelectuais como trabalhadores em vez de
"outros" (trabalhadores), contradizendo a ideia de que o social e
político mandato dado ao intelectual pode ser dado como certo." AURELLI
2010
Essas são questões
complexas, que na verdade envolvem; alienação, objetividade, subjetividade,
construção utópica compartilhada, que povoam as ações do plano e do projeto
desde tempos imemoráveis. Esses debates povoaram minha tese de doutorado de
2007, que tinha como título; Projeto, Ideologia e Hegemonia; em busca de um
conceito operativo para a cidade brasileira, defendida no âmbito do PROURB da
FAU-UFRJ. O que me parece claro é o enorme retrocesso que sofremos nesse campo
desde a emergência do neoliberalismo, as décadas de sessenta, setenta e oitenta
do século XX apontavam novas possibilidades produtivas, mediadas por um
profundo reformismo, que hoje aparece solapado pela ética do capitalismo único
e exclusivo. Tais condições tem determinado imensos índices de concentração de
renda, e uma sensação de proximidade de um desastre de escala planetária, onde
o futuro das próximas gerações é colocado em risco por um desenvolvimento
predatório e desagregador. O campo do plano e do projeto precisa problematizar
essas questões urgentemente, do contrário estaremos caminhando para a supressão
da nossa espécie. No caso aqui abordado, na temática do tema da habitação
multi-familiar, destaca-se sua relevância para a constituição de nossas
cidades, afinal o morar é o uso predominante em todas as cidades. Atuar sobre
as hipóteses, impostas ou legitimamente eleitas, de projeto pode abrir
possibilidade de se reformar a cidade de forma substancial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
As complexas questões
colocadas pelo filme Aquarius de Kleber Mendonça nos revela a cidade
brasileira, que estamos produzindo e os efeitos dela sobre seu espaço comum,
seu uso intenso e a interação entre esferas pública e íntima. Os processos
capitalistas de urbanização demandam e ao mesmo tempo rechaçam a projetação e o
planejamento, pois as relações sociais e de propriedade do sistema precisam de
ação coletiva, mas também pretendem sempre se apropriar de forma privada de
seus benefícios. O livro de AURELLI 2013, que tem como título The Project of
Autonomy; Politics and Architecture within and against Capitalism (A Autonomia
do Projeto; Política e Arquitetura com e contra o Capitalismo) é um testemunho
sensível dessa contradição, que de certa forma comprova a necessidade de se
radicalizar e ampliar os processos de decisão do projeto. Seguindo a tradição
de Manfredo Tafuri e da crítica italiana dos anos sessenta, setenta e oitenta
localiza-se a cidade como uma categoria política, onde se digladiam as diferentes
classes e interesses para produção da “economia política do espaço”, que no
Brasil demonstra uma contínua incapacidade de geração de uma espacialidade não
exclusiva, mas incluidora de todos. Nos anos oitenta, um intelectual brasileiro
escreveu um texto ainda fundamental para as práticas sociais em curso no nosso
país, A democracia como valor universal, de Carlos Nelson Coutinho. Uma
reflexão que reafirmava a convergência entre ampliação e radicalização dos
processos democráticos e a ampliação da melhora das condições de vida de nossa
população. A espacialidade da cidade é sem dúvida um tema mobilizador de nossa
população em geral, dentro dela o tema da habitação é central e essencial para
a reprodução da vida humana no planeta. A ampliação dos processos decisórios
dentro da autonomia do plano e do projeto e da conservação de nosso patrimônio
me parecem fundamentais, para se alcançar uma cidade mais justa e inclusiva,
com consciência de si mesma.
NOTAS:
REFERÊNCIAS:
ARGAN, Giulio Carlo - História da Arte como História da Cidade -
Editora Martins Fontes São Paulo 1992
AURELLI, Pier Vittorio - Recontextualizing
Tafuri's Critique Of Ideology - Anyone Corporation, https://www.jstor.org/stable/41765325
AURELLI, Pier Vittorio - The Project of
Autonomy; Politics and Architecture within and against Capitalism- Nova York,
Columbia University Press 2013
CUTHBERT, Alexander R. Compreendendo as cidades: método em projeto
urbano, Perspectiva, São Paulo 2021
COUTINHO, Carlos Nelson Coutinho, A democracia como valor
universal, Rio de Janeiro, Livraria Ciências Humanas 1980
FISHER, Luis Augusto, A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua
consagração, São Paulo, Todavia, 2022
GRAMSCI, Antonio, Cadernos do Cárcere, Volume 1: Introdução ao
estudo da filosofia; A filosofia de Benedetto Croce, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira 1999
MARTIN, Leslie e MARCH, Leon. Urban Space and
Structure Cambridge University Press 1972
MOREIRA, Pedro da Luz, Projeto, Ideologia e
Hegemonia; em busca de um conceito operativo para a cidade brasileira, Rio de Janeiro,
Tese PROURB FAUUFRJ, 2007
NETTO, José Paulo - Karl Marx, uma biografia -
Boitempo São Paulo 2020
TAFURI, Manfredo - Projeto e Utopia, arquitetura e desenvolvimento
do capitalismo - Editora Presença Lisboa 1985
_____, Manfredo, Teorias e História da Arquitetura,
Lisboa, Editora Presença Martins Fontes 1979
VIANNA, Luiz Werneck, A revolução passiva: iberismo e americanismo
no Brasil, Rio de Janeiro, Revan, 1997
ZUBOFF, Shoshana - A era do capitalismo de vigilância, a luta
por um futuro humano na nova fronteira do poder - Editora
Intrinseca Rio de Janeiro 2020