Haddad menciona então a foto de um policial depois de uma das manifestações, no dia 13 de junho de 2013, com a cabeça ensanguentada, que foi estampada nos principais jornais do país. A partir desse momento o país explodiu, e o ex-prefeito passou a ser responsabilizado pela violência policial em São Paulo. Apesar dessa responsabilização, Haddad ainda aponta o desleixo com que a polícia paulistana tratou o patrimônio municipal da cidade - o Edifício Matarazzo, sede da Prefeitura e o Teatro Municipal - , que eram de forma recorrente vandalizados sem qualquer repressão. Mas aqui emerge o terceiro elemento, a forma, que as manifestações assumiram, uma convocação via redes sociais, uma ausência ou dissimulação de comando, e portanto uma dificuldade de interlocução.
"Nos países do núcleo orgânico do sistema, onde essa mediação era menos provável, ganhou corpo desde os eventos de Seattle, em 1999, uma certa esquerda antiestatal, neoanarquista charmosa, que mantém distância dos governos e das instâncias de representação política em geral. Os protestos nessas circunstâncias ocorrem de forma inteiramente nova. Sem vínculos partidários nem pretensões eleitorais, a partir de uma agenda bastante específica e de difícil contestação, esses movimentos começaram a fazer sucesso mundo afora. E eles foram bastante críticos em relação à política e às formas tradicionais de negociação, que viriam inspirar os movimentos mais contemporâneos que se desenvolveram no Brasil, dentre os quais o MPL Traduzida para as condições locais, porém, a novidade provocou um curto-circuito. A forma dos protestos, muito mais do que o conteúdo de suas reivindicações, oferecia uma chave de contestação que se prestava à defesa de tantas outras bandeiras. Logo ficou claro que ela, a forma, poderia ser sequestrada e servir de embalagem para uma miríade de novas demandas. E a panela de pressão de que falávamos pareceu ter encontrado a válvula para dar vazão à energia que havia se acumulado por anos. No intervalo de uma semana as ruas estavam cheias, com uma pluralidade de reivindicações desconexas e às vezes contraditórias entre si. Quando o sequestro da forma se consumou, o MPL se retirou das ruas, bem como a esquerda tradicional caudatária do movimento. E grupos de direita, apartidários, se organizaram para emparedar o governo federal, apropriando-se sintomaticamente da própria linguagem dos protestos originais, que ganhavam simpatia popular: MBL (Movimento Brasil Livre) é uma corruptela de MPL; Vem Pra Rua era um dos gritos mais ouvidos nos protestos; Revoltados On Line evoca diretamente a natureza daqueles eventos convocados via rede social."
Haddad questiona então o potencial emancipatório da internet, apontando que a ausência da hierarquia presente na dinâmica de dirigentes e de dirigidos das redes sociais, suprimia a racionalidade comunicativa de Habermas e implantava a teoria menos otimista dos sistemas fechados de Niklas Luhmann. Habermas na sua construção utópica apontou a possibilidade com o desenvolvimento da modernidade, de que diversos agentes pudessem argumentar sem qualquer distinção hierárquica para construir uma racionalidade intersubjetiva consensuada. Enquanto Luhmann, defendia a ideia do fechamento dos sistemas sociais em argumentações compartilhadas, que afastavam o contraditório. Haddad contextualiza a questão das redes sociais, onde a fonte por não estar mais identificada determina e amplia a crise de representatividade de nossa sociedade, que não se utiliza mais da validação das entidades da sociedade civil, mas se restringe ao instante. Prospera então a pós-verdade, onde uma imensa variedade de versões, abandonam os fatos e constroem sínteses imediatas, que se limitam a forjar slogans momentâneos. Há um desenvolvimento natural da intolerância e a recusa a aceitar uma argumentação contraditória, reforçando uma individualidade desmedida.
"Somos decodificados a partir das nossas manifestações digitais e convertidos numa sequência binária de curtidas/não curtidas que revela nossas preferências e gostos, com um grau acurado de precisão. São essas preciosas informações que garantem o patrocínio às megacorporações como o Facebook e o Google. E, se essas informações podem ser usadas não somente para promover a venda de mercadorias, mas também a “venda” de ideias e ideais, estamos diante de um desafio considerável para a democracia. A decorrência lógica desse processo é a formação de múltiplos nichos que exacerbam o individualismo e reforçam as “identidades digitais”. O indivíduo, nesse universo paralelo caracterizado pelo feixe de relações virtuais que estabelece, tende a adotar uma atitude francamente reativa e reacionária em relação ao contraditório.
Haddad ainda fará menção a possibilidades de direcionamento e patrocínio dessas vontades, a partir de alertas feitos por líderes como Erdogan da Turquia e Puttin da Rússia para Lula e Dilma, ou ainda a Cambridge Analytica que atuaram no Brexit e na eleição de Trump, que identificaram nós produtores de convocações e ordenamentos nas redes sociais. A questão sem dúvida precisa ser olhada de forma sistêmica para se desvendar eventuais interesses de manipulação. Mas, certamente no Brasil essa possibilidade será reforçada, pela fraqueza de nossa sociedade civil, frente a força de nossa sociedade política(1).
Ao final, Haddad fará menção a crise internacional do neoliberalismo, que se inicia em 2008 com a quebra das grandes instituições financeiras americanas, que assume proporções dramáticas exatamente pela ausência de mecanismos de regulação e governança do sistema bancário mundial. Faz-se então uma distinção entre a forma de encarar as potencialidade do Brasil, a partir das visões de Fernando Henrique Cardoso e Lula.
"Há muitas diferenças na forma como o país é visto por FHC e Lula, mas há um ponto em comum entre eles: ambos imaginaram, cada um à sua maneira, que o país poderia ter um lugar diferenciado no concerto das nações. Pressentiam que as especificidades brasileiras – o tamanho de sua população, a extensão do território, seus amplos recursos naturais, a terra agricultável e uma ciência ainda incipiente mas líder na América Latina – configuravam potencial suficiente para uma melhor inserção no mercado internacional. Para eles, o Brasil estava aquém da posição que poderia ocupar.
A diferença é que FHC e Lula definiram estratégias distintas para alcançar esse objetivo. O tucano dava mais ênfase ao capital estrangeiro e ao mercado externo. O petista priorizou o capital nacional e o mercado interno. Esses pontos de vista distintos determinaram políticas públicas muito discrepantes. Distribuir renda, por exemplo, pode representar uma ameaça, num caso, ou uma necessidade, no outro. Desnacionalizar as empresas pode ser uma exigência para o primeiro e um atentado ao desenvolvimento nacional para o segundo."
E, aqui Haddad, a partir desses dois posicionamentos de; internacionalismo da atividade econômica (FHC) e proteção nacionalista (Lula), localiza o grande risco do posicionamento dos governos do PT, o enfrentamento ou a submissão ao patrimonialismo brasileiro. Numa referência ao livro de Raimundo Faoro de 1958, Os Donos do Poder, que segundo Haddad melhor mapeia as origens culturais dessa tendência, retrocedendo às origens culturais de nosso patrimonialismo à constituição do Estado Português (dinastia de Ávis 1385-1580). Sem dúvida, a presença desse patrimonialismo possui raízes culturais nesse tempo, como apontado por Faoro, mas na modernidade a maior resistência para o rompimento com essa forma de operar no meu entendimento vem de uma certa demofobia das elites brasileiras e particularmente das paulistas, que só admitem um reformismo getulista, mesmo assim sem exageros. Conforme já assinalado aqui no blog no texto;
O judiciário brasileiro e a questão central do acesso diferenciado à oportunidades nas sociedades contemporâneas, há uma certa celebração do indivíduo branco, anglo-saxão e protestante dos EUA, na construção tanto de Faoro, como na de Haddad;
"Por outro lado, há uma construção simbólica hegemônica no mundo contemporâneo, que identifica num indivíduo anglo-saxão e protestante genérico o paradigma da eficiência e do máximo de utilitarismo do sistema capitalista. Segundo Jessé Souza, tal visão deve a sua construção a Max Weber, que já teve dois textos comentados aqui no blog, exatamente sobre o seu livro "A ética protestante e o "espírito" do capitalismo", que desenvolve exatamente esse aspecto;.
"A grande maioria das versões apologéticas do sujeito liberal nutre-se com fundamento empírico na história da pujança econômica e política norte-americana, em maior ou menor grau, na figura do pioneiro protestante weberiano." SOUZA, 2015 página19
Mas, sem dúvida há entre nós uma cultura patrimonialista, que no meu entendimento é consequência imediata da péssima divisão de renda, que irá determinar uma hipertrofia da sociedade política, frente a uma clara fraqueza da sociedade civil. A indicação já em 2003 pelo ex prefeito da necessidade de uma melhor compreensão do estado brasileiro, frente a essa vertente patrimonialista, e a indicação de que faltou uma maior reflexão do PT, quando da chegada ao poder já apontavam a precisão de seus posicionamentos. Portanto, nada tira o brilhantismo da análise de Haddad, que ao meu ver continua no acerto em suas construções.
"O PT que chegou ao poder naquele ano de 2003 podia ser dividido em três grupos internos: uma esquerda socialista, uma direita republicana e um centro social-desenvolvimentista, hegemônico no partido. No artigo, eu sugeria que poderíamos cometer um erro histórico se o centro social-desenvolvimentista, ignorando as percepções das duas outras alas, entendesse que nosso projeto era realizável sem reformar profundamente as estruturas do estado patrimonialista. A minha esperança, à época, era a inserção social do PT. Que, de fora para dentro do governo, o partido e sua militância poderiam oxigenar a máquina pública. O que de fato ocorreu, mas só até determinado ponto. Prova disso é que na administração direta, nas autarquias e fundações, o governo avançou muitíssimo, por exemplo, pela criação da Controladoria-Geral da União, pelo fortalecimento da Polícia Federal, pelo grau de autonomia do Ministério Público Federal etc. As práticas patrimonialistas se fixaram justamente onde esses órgãos tinham um espaço muito menor de atuação, o local privilegiado em que o poder político encontra o poder econômico: as estatais, federais e estaduais, as agências reguladoras, o Banco Central etc. E na Petrobras, que ocupa o imaginário brasileiro desde Getúlio Vargas e administra, de fato, um ativo estratégico para o desenvolvimento nacional. Aliás, há um equívoco ao se falar de corrupção sistêmica ou de lobby no Brasil. A corrupção no país é mais do que sistêmica, ela é o corolário de nosso patrimonialismo. Afirmar que a corrupção, aqui, é sistêmica pode passar a impressão de que seria possível um patrimonialismo incorrupto."
Por último, Haddad enfrenta a questão do judiciário brasileiro no contexto contemporâneo, e nossa atávica corrupção de forma elegante, e com uma crítica que deveria mobilizar o PT para os seus fundamentos. O judiciário é meio, incapaz de formular um fim. Senão seria político. Mas ele claramente denuncia práticas vinculadas ao patrimonialismo e pouco republicanas do seu partido, que passou a encarar a manutenção do poder, como mais importante que sua transformação.
"A pergunta que se coloca nesses tempos em que a Operação Lava Jato expõe parte do funcionamento de nosso patrimonialismo é: pode uma revolução ser conduzida pelo Poder Judiciário? Não é preciso consultar Montesquieu para saber que não. O Poder Judiciário não tem a faculdade de criar um mundo novo. Nas condições locais, entretanto, ele pode concorrer para destruir o antigo, criando ou não as condições de que algo novo surja no horizonte, ou simular a destruição do velho para que tudo permaneça exatamente como é. O debate sobre corrupção no Brasil sempre foi um faz de conta, um tema de conveniência e oportunidade, não de princípios. As instituições que deveriam garantir a imparcialidade das apurações são, regra geral, arrastadas para dentro da arena da disputa política e contaminadas pelo espírito de facção. Terminada a batalha, as condições anteriores são repostas e os negócios voltam à normalidade. Business as usual. O interesse que a Operação Lava Jato desperta deriva do fato de que ela, contra todos os prognósticos iniciais, parece fugir a esse roteiro. Quando se olha mais de perto, na verdade, é impossível não identificar a tensão no interior da operação entre uma ala facciosa tradicional, com claros interesses políticos, e uma ala republicana que quer passar o país a limpo sem aparentemente se dar conta da escala dos seus propósitos. A Lava Jato tem o mérito inquestionável de abrir a caixa-preta das relações público-privadas no Brasil – algo que Faoro intuía, mas que não havia sido exposto tão escancaradamente. Mas, se o desfecho for aquele pretendido pela ala facciosa da operação, o que teremos é uma simples troca de comando do patrimonialismo. Corremos o risco de aniquilar o velho apenas para que ele ressurja."
Há ainda fôlego para uma reflexão importante sobre o caráter do poder judiciário e sua relação com a mídia, mais um investimento corajoso de Haddad, que desvenda mais um dos nossos riscos, numa atitude que foge do comportamento confortável dos políticos em geral. O caráter anti majoritário do poder judiciário, sua resistência ao espetáculo e ao conforto do consenso fazem parte de pretensões efetivamente republicanas. Mas, que ao final fogem da sua lógica segmentada e fragmentada das sociedades capitalistas modernas, onde o espetáculo ao mesmo tempo convence e distorce as pretensões de imparcialidade.
"O que complica ainda mais a situação é a relação entre o Judiciário e a mídia. O caráter contramajoritário do Poder Judiciário é pedra angular da República. Num certo sentido ele é ademocrático, pois resiste à maioria em nome da Justiça. A espetaculosidade dos processos em andamento deixa pouca margem para o desfecho desejável de saneamento de todos os partidos políticos e gradação das penas imputadas proporcionalmente ao delito."
Por tudo isso, me parece que Fernando Haddad se qualifica como candidato gabaritado a presidência da república do Brasil. Muito além de academicismos puristas ou pragmatismos reducionistas, sua juventude parece madura para superar desafios nada simplistas, que ainda aguardam por um agrupamento partidário mais consistente. Aliás, Haddad em toda a entrevista se revela um homem fiel ao seu agrupamento partidário, revelando-nos nas entrelinhas uma crítica fundamental do nosso sistema político, que precisa superar um personalismo patrimonalista e pouco republicano.
NOTAS:
(1). A distinção entre sociedade civil e sociedade política ou Estado está em Gramsci, que identificava nos sindicatos, associações profissionais, de moradores e outras organizações formações ideológicas da sociedade civil, enquanto que o parlamento, o executivo e o judiciário compunham a sociedade política.
BIBLIOGRAFIA:
GRAMSCI, Antonio - Concepção dialética da história - Editora Civilização Brasileira Rio de Janeiro 1966
HABERMAS, Jürgen - O discurso filosófico da modernidade - Editora Martins Fontes São Paulo 2002