terça-feira, 12 de novembro de 2024

O FILME AQUARIUS E A PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO DA CIDADE NO BRASIL; A QUESTÃO DO HABITAR E SEUS PADRÕES IMPOSTOS PELO MERCADO IMOBILIÁRIO

Em 2016, o cineasta pernambucano Kleber de Mendonça Vasconcelos Filho (1968-) apresentou no Festival de Cannes, o filme Aquarius, que concorria a Palma de Ouro, tendo sido aclamado pela crítica e pelo público. O filme estrelado pela atriz Sonia Braga apresentava uma sensível crítica as formas hegemônicas do habitar na sociedade brasileira, e um potente testemunho de como as formas do “Bem Viver” vem sendo manipuladas pelas incorporadoras imobiliárias no país. O edifício, onde foram filmadas as cenas efetivamente existe, na mesma praia de Boa Viagem, onde o filme é ambientado, e o bairro dominado pelas elites endinheiradas de Recife, que invariavelmente vem elegendo, na cidade e em todo país, uma forma tipo de habitar oposta ao do Edifício Aquarius. O filme explora o contraste, em suas tomadas de forma quase obsessiva, mostrando, de um lado, o edifício Aquarius com apenas três pavimentos de altura, sem pilotis e a massa de torres com mais de trinta andares, que dominou a paisagem dos bairros litorâneos Brasil afora, desde a década de 70 e 80 do século XX. Importante destacar, que o edifício efetivamente existe, no mesmo bairro da Boa Viagem, e é fruto de um empreendimento de 1952, quando as incorporações de intensificação do solo urbano eram comandadas por pequenos investidores, longe dos grupos imobiliários monopolizados da atualidade. Portanto, o filme contrapõe a torre habitacional, com desenvolvimento em grande altura, àquilo que poderíamos chamar empreendimento linear de baixa altura, que estabelece com o espaço público uma mútua vigília, entre intimidade da unidade habitacional e rua. O filme narra o assédio das grandes incorporadoras imobiliárias para comprar a unidade no Edifício Aquarius da protagonista Sonia Braga, para promover, empreender e homogeneizar com a solução da torre, suprimindo o último testemunho de uma tipologia de baixo gabarito e de implantação contínua.

 

Figura 1:Conjunto de tomadas do Filme Aquarius, que assinalam o contraste entre a tipologia das torres e a implantação linear de baixa altura do Edifício Aquarius no bairro de Boa Viagem em Recife, na qual são mostradas a mútua vigília entre a esfera pública e privada.

O artigo aqui apresentado pretende discutir e problematizar, a partir das referências edilícias do Filme Aquarius, a ideologia hegemônica do “Bem Viver” na sociedade brasileira, as manipulações do gosto habitacional frente a interesses que operacionalizam o mercado da terra urbana no Brasil, e, aquilo que seriam os interesses comuns da sociedade civil organizada. Nessa questão, a arquitetura habitacional representa um papel fundamental ao articular o ambiente construído e os benefícios naturais, bem como reforça fronteiras de classe e distorções contextuais. Além disso, o uso habitacional se constitui como a massa construída mais expressiva de nossas cidade, e portanto capacitada a mudar a face exclusivista e ostentatória de nossas cidades elitizadas, contraposta a imnsos bolsões de pobreza e precariedade. De forma genérica, a área da preservação e conservação do nosso patrimônio construído tem se pautado por cuidar mais da monumentalidade, desdenhando do contínuo da habitação, que por ser majoritário, acaba por se constituir como a ambiência determinante de contínuos da cidade brasileira. É claro que nos parece determinante, muito mais que a mera questão cultural do morar, aqui mencionado, uma certa “economia política do espaço”[1] determinada por processos de urbanização capitalista e de maximização da renda advinda dos empreendimentos imobiliários e da operacionalização da cidade capitalista. Além da mera operacionalização da cidade capitalista, talvez fosse mais correto apontar a absolutização da lógica da cidade capitalista, onde claramente o morar não é encarado como um direito, mas como uma mera mercadoria. Considera-se importante refletir sobre as consequências para a ambiência urbana promovida pela hegemonia da tipologia da torre nas cidades brasileiras, particularmente no que se refere a segurança e a vida das ruas, onde claramente parece estar suprimida a rica interação entre esfera privada e pública tão destacada pelo filme, na tipologia de baixo gabarito com implantação linear. Inclusive, porque a materialização do empreendimento linear de baixo gabarito do Edifício Aquarius foi também fruto de operação de intensificação do uso do solo da cidade, transformando um terreno vazio ou uma habitação unifamiliar em condomínio multifamiliar. Importante também mencionar, que a mesma tipologia edilícia é encontrada em várias outras cidades brasileiras, mostrando nos que a intensificação do uso do solo urbano já gerou uma ambiência mais amistosa, conforme mostram as figuras abaixo (figura 2). Quais as determinações e condicionamentos que estavam presentes anteriormente, e que não se apresentam nos empreendimentos contemporâneos, que demonstram uma clara preferência, nas áreas mais ricas, do desenvolvimento em torre?

Figura 2: Edifícios com tipologia análoga ao Edifício Aquarius, localizados no Rio de Janeiro, que também podem ser encontrados em outras cidades brasileiras, fruto de uma intensificação do solo urbano menos predatória, que a da “Torre”

A questão envolve o âmbito da projetação, o reconhecimento de um valor de preservação e conservação de nosso patrimônio construído, bem como uma estratégia para estruturar uma política habitacional livre da pressão dos grandes grupos monopolistas, que hoje parecem dominar as iniciativas na cidade brasileira. Não se trata aqui, é claro da eleição de uma única tipologia edilícia, que deveria homogeneizar o território da cidade brasileira, mas sim preservar sua existência, entender os fatores que a geraram e entender as consequências para a ambiência do espaço urbano, celebrando a pulverização dos investimentos e não sua concentração. Uma cidade com grande vitalidade pode e deve oferecer aos seus habitantes uma variedade tipológica, que espelhe a diversidade presente em seu próprio seio, declinando de procedimentos exclusivos e investindo fortemente na ampliação inclusiva de seus membros. A tipologia da torre celebra a descontinuidade, a exceção, a diferenciação, o distanciamento do solo urbano, enquanto a tipologia do empreendimento linear de baixa altura celebra a continuidade, a indiferenciação, a proximidade com a ambiência da rua. Remete-se aqui a defesa promovida pelo Dr. Lucio Costa para a definição do gabarito das superquadras em Brasília – Pilotis, mais seis pavimentos – com o argumento de que essa escala permitia o chamamento das novas gerações para a hora do lanche, isto é; “ela se mantinha na escala do grito materno”. Importante também aqui valorar, enquanto sociedade civil organizada, o que devemos preservar e avaliar como patrimônio construído a ser preservado[2], dando visibilidade a uma opção de morar, que nos parece mais sintonizada com uma série de demandas da cidade brasileira, tais como; maior segurança, maior interação entre esfera privada e pública, busca de maior equidade.

"Odeio os indiferentes [...] acredito que viver significa tomar partido. Não podem existir os apenas homens estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes." GRAMSCI 1999, pág.24

AUTONOMIA E HETERONOMIA NO PLANO E NA PROJETAÇÃO, A RECOMPOSIÇÃO UTÓPICA E A AMPLIAÇÃO DA TRANSPARÊNCIA NO PLANO E PROJETO:

Desde a década de setenta, com os estudos de MARTIN e MARCH 1972, sobre o espaço urbano e sua estrutura sabe-se que, a qualidade ambiental atingida é muito maior com a adoção da solução “implantação continua”, do que com a ”torre”. E, mais a torre não garante a maior densidade, por trás do culto aos arranha céus há certos pressupostos ideológicos, que influenciaram a adoção dessa tipologia nas economias capitalistas e também nas do socialismo real[3].

“No mundo ocidental, a teoria econômica neoclássica tem influência marcante ao dirigir a operacionalização dos mercados de terra urbana, implementada por meio das políticas de planejamento e do mecanismo de “renda” (Lamarche 1976). Nesse sistema, a arquitetura é fundamental ao articular a estrutura do ambiente construído e ao direcionar os benefícios ambientais, bem como reforçar as fronteiras de classe e patologias contextuais…Leslie Martin usa o grid de Manhattan para demonstrar seu argumento de que a eficiência espacial é inversamente proporcional à altura da construção, dados os princípios básicos do desenho urbano (planejamento do perímetro)… Tomando o pavilhão como forma básica, ele demosnstra que a antiforma (ou o molde invertido do pavilhão-torre) fornece  a mesma forma construída para 1/3 da altura do edifício…Ele então aplica a forma básica à grelha urbana de Manhattan, ilustrando não só que torres de 21 andares poderiam ser substituídas por edifícios de 8 andares, mas que cada pátio poderia conter uma área verde central equivalente a Washington Square.” CUTHBERT 2021, págs. 181 e 184

Há muito que a objetividade produtivista luta pela captura da projetação e do planejamento, o gerenciamento e as metodologias de desenvolvimento de planos e projetos ficam presas ao desenvolvimento comportado e mediocrizante, soterrando as aspirações, desejos e promessas dos agentes envolvidos em nome do cumprimento de uma meta, que ao final perde substância, e frustra expectativas. Em nosso tempo, há um claro achatamento do horizonte utópico, bloqueando as possibilidades de transformação, determinando um comportamento inercial, que apenas reproduz o incremento do lucro, em detrimento da qualidade de vida e da urbanidade. Há uma clara restrição às hipóteses utópicas que o plano e o projeto pode levantar, restringindo e nos condenando a reproduzir sempre a mesma cidade. Tal situação, re emerge no mundo das ideias, a partir do final da década de setenta e início dos anos oitenta, com a chegada ao poder de Thatcher (1979) e Reagan (1981), que passam a negar a possibilidade da previsibilidade, desdenhando do plano e do projeto, absolutizando a instabilidade do mercado. Desenvolve-se uma enorme desregulamentação do capital, 0 Wellfare State ou Estado de Bem Estar Social desmorona, uma transformação que esvaziou o uso industrial e fez emergir um contínuo de serviços financeiros e especulativos, que passaram a representar no mundo anglo saxão, um terço do emprego disponível. Inicia-se uma forte hegemonia do capital financeiro no mundo. Em 9 de novembro de 1989 cai o muro de Berlim, que dividia a Alemanha em dois, e o mundo da Guerra Fria das duas superpotências apresenta sinais de esgotamento. Em meados dos anos 1990 o advento da internet e das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) lançam para a humanidade a possibilidade de acessar um amplo acervo de informações, que determinam uma imensa dispersão de energias, parecendo inviabilizar a possibilidade de construção de prioridades e consensos. A política se fragmenta numa infinidade de interesses que parecem irreconciliáveis, apontando para a impossibilidade da construção de consensos. Em 2004, a bolsa de tecnologia de Nova York, Nasdaq força os grandes conglomerados de informação, como o Goggle e Amazon a monetizar suas informações sobre seus usuários, caindo o pretenso sigilo de nossas buscas para as grandes corporações monopólicas. Emerge disso tudo, uma sociedade claramente sub teorizada e super informada, com clara dispersão de suas energias questionadoras e disruptivas.

E, na verdade é esta substância utópica forjada pelo próprio processo de questionamento da espacialidade que estamos construindo - desejos, vontades de novas práticas e aspirações de novos mundos -, que nos interessa; o engendramento de uma outra existência que passa a ser compartilhado, na medida em que o plano e o projeto explicitam alternativas para serem submetidas ao crivo do interesse público. Será que a tipologia da torre, em seu isolamento individualista não deve passar a ser questionada exatamente pela investigação histórica, que localiza na tipologia do Edifício Aquarius a alternativa para uma cidade mais segura e solidária, onde a esfera privada interage com o âmbito público em mútua vigília. Mas isso significa considerar as ações de Plano e Projeto como autônomas, ou intelectualmente críticas e livres das determinações impostas pelo sistema produtivo geral.

Dentro dessa mesma questão, mas igualmente complexa, está a alienação do trabalho e pelo trabalho, que envolve os mais diversos profissionais, que seguem numa reprodução repetida e pouco criativa de práticas, mesmo em atividades que cobram dos agentes inovação e novos procedimentos como no campo da arquitetura e do urbanismo. A impressão geral e compartilhada é de que se produz a novidade, para tudo continuar igual, o questionamento importante é a quem atende essa produção inusitada, mas que mantém tudo como está. Há uma distinção importante a ser feita entre pensamento conservador e progressista, àqueles que querem manter como está, e os que querem sua mudança, de um lado a manutenção do status quo, e de outro seu revolucionamento. Na sociedade brasileira, os que clamam pela promoção de uma exclusividade restrita, e os que lutam pela inclusão de parcelas expressivas da população, com melhor equidade de renda. De um lado, a absolutização do Direito de Propriedade, como um valor natural dotado de uma racionalidade instrumental produtivista. Do outro, a relativização do Direito de Propriedade, conferindo mais importância ao Direito à Vida, à reprodução e manutenção da existência digna, regulando a propriedade em benefício de todos. Um princípio geral vem fazendo a diferença no Brasil nos últimos anos,  entre o campo progressista e o conservador, e tudo indica que continuará na nossa agenda, que é a busca por uma sociedade com maior equidade, ou melhor distribuição de renda. De uma maneira geral, o senso comum da sociedade brasileira não identifica nas atribuições dos governos, federal, estadual ou municipal, uma estruturação do espaço construído do território, nas cidades e no campo, uma capacidade para promover ou induzir uma melhor distribuição de renda. De uma maneira geral, o brasileiro considera que a promoção de maior equidade em nossa sociedade é fruto apenas de políticas nas áreas da habitação, da saúde, da educação, da cultura, do saneamento, da mobilidade social, etc de forma desvinculada do território, da espacialidade das cidades e das áreas rurais. Nossa ordenação espacial não é só fruto de uma sociedade dividida e partida por interesses de classe, mas também mantenedora de uma situação bloqueadora de oportunidades e benefícios para as classes menos privilegiadas. A preferência pela tipologia da torre denota a atuação de grupos monopolizados, que concentram a iniciativa dos empreendimentos habitacionais.

A política urbana e de ocupação territorial do país podem ser fatores de promoção de oportunidades de geração de renda, de pulverização das oportunidades de se apropriar do adensamento urbano e de transformação social, pois a ordenação espacial pode superar a exclusão gerando inclusão e pertencimento. Nosso espaço citadino denota a excepcionalidade da riqueza, enfatizada pela descontinuidade da torre, em contraposição a continuidade e indiferenciação do contínuo da baixa altura. A mentalidade, que parece ainda operar em nossa macro política é a do recém falecido ex ministro da economia Delfim Neto, na época da decretação da Ditadura Civil e Militar de 1964, de que “era necessário primeiro fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”. Como se, a premissa de inclusão social e da promoção de oportunidades para a população brasileira determinasse um bloqueio do desenvolvimento econômico do país. Trata-se de um grande equívoco, uma vez que a qualidade espacial da cidade pode representar uma apropriação indireta de renda para parcela significativa da população, impulsionando o desenvolvimento. Nosso desenvolvimento econômico seguiu aquilo que muitos teóricos identificam como o “modelo prussiano” ou autoritário[4], típico de países de chegada tardia ao desenvolvimento capitalista, que pregam um acordo restrito a suas elites, sem a participação popular. Essa gerência conservadora da territorialidade da cidade gerou concentração de renda, e a concentração dos monopólios nos empreendimentos imobiliários, bloqueando a participação mais ampla. A política urbana deve ser encarada como produtora de equidade, pois o desenvolvimento citadino invariavelmente é determinado por investimentos públicos vultuosos, combinados com uma apropriação privada desses benefícios, por parte dos donos da terra urbana. A cidade brasileira espelha isso em seu território de forma emblemática.

Aqui há também necessidade de reflexão sobre o momento doutrinário e o momento manual ou operacional de se pensar o vir-a-ser, a distinção dos dois momentos não significa a perda de correlação, mas sua representação integral, onde decisão e ato correspondem a uma interpretação histórica plena e consciente. A projetação precisa voltar a ser encarada como problematizadora dos anseios de uma sociedade, e não mais como mera resolução mecânica de demandas de grupos sociais específicos. A humanização da previsibilidade, que as ações de plano e projeto envolvem, só será possível quando leva-se em consideração o interesse público geral, que demanda uma maior democratização de como estamos construindo nossas cidades. Desde o século XV, no renascimento italiano e mesmo na Idade Média tardia era esse o debate entre as artes liberais e mecânicas, onde a consciência do agir se articulava com a leitura histórica do processo humano geral. Alberti, por exemplo sempre mencionou a necessidade de vigilância social intensa daquilo que se deveria construir, que deveria ter como premissa os interesses da res pública, a coisa pública, os anseios das cidades-estados dos seu tempo. Tais questões povoam, por exemplo, o Tratado de Re Aedificatoria de Leon Battisti Alberti (1404-1472), que fustiga a questão da auto determinação coletiva dos povos, a partir do plano e do projeto.

"Dera-se conta de que aqueles fatos rompiam a tradicional relação existente entre o momento doutrinal e o momento operacional e manual da arte; não havia mais continuidade, e sim distinção e correlação de dois níveis, o da idealização, ou da teoria, e o da prática. Entre os dois momentos, existe a mesma relação que, no agir "histórico", há entre a decisão e o ato, uma relação pela qual o ato não tem valor a não ser que dependa de uma decisão da mente, assim como, a decisão não tem valor a não ser que se cumpra no ato. Explica-se, assim o propósito albertiano de trazer a arte de volta a mímese clássica; se a imitação deve ser um processo intelectivo, e não apenas mecânico, é preciso que não seja cópia, mas representação, e obedeça às leis, ao princípio teórico da representação como modo de conhecimento." ARGAN 1992 página109

Seria isso ainda possível, ou uma utopia delirante? Para tal, o planejamento e a projetação precisam abandonar a indiferença e se comprometer com a política, pensada a partir do pressuposto de que ninguém deve ser deixado a margem. Antonio Gramsci, considerava a previsibilidade como um direito humano, uma condição que na verdade nos humanizava a medida que se tornava acessível a todos. Na verdade, ele considerava, àqueles que não a desfrutavam viviam sobre condições inumanas, animalizados. Realmente, a incapacidade de pensar sobre uma nova residência, um outro bairro, ou até uma outra cidade, ou mesmo uma viagem, um filho, um casamento, ou uma aposentadoria bloqueia nossa humanização, nos mantendo sem o devido desfrute da plena humanidade. O pensamento conservador tem administrado a reprodução do mesmo e do igual, do bloqueio da imaginação criativa, a partir do medo, disseminando a ideia de que somos indivíduos, famílias isoladas, lutando contra todos, reduzindo nossa consciência coletiva. Recentemente, o poeta Mia Couto escreveu um belo texto sobre o medo, em clara contraposição a esperança, dizendo nos da fomentação pelo poder instituído da disseminação dos riscos de se pensar outros mundos. A onda conservadora, que se estabeleceu no mundo recentemente trabalha exatamente com o medo de outras possibilidades de existência humana; o socialismo, o comunismo, uma sociedade mais solidária e democrática devem ser desacreditadas, e mesmo criminalizadas, pelo medo ao inusitado. O medo não é um bom companheiro, quando pensamos o nosso futuro, principalmente porque o poder instituído está sempre a promover o medo em relação aos novos poderes, sejam eles; a des hierarquização da sociedade, a democracia radical, ou a busca por maior equidade. "Para fabricar armas é necessário antes produzir inimigos", e não há melhor inimigo, que o desconhecido, o outro que não conhecemos, sejam "eles"; os chineses que comem crianças, Karl Marx e suas ideias, ou Paulo Freire e a pedagogia do oprimido. Há no mundo contemporâneo, uma presença imensa de dados sem sentido manipulados pelas Big Techs, que nos apresentam a eles a partir de interesses comerciais pouco transparentes, que só ampliam essa sensação do medo. Tal condição bloqueia o debate, caracterizando-o como fruto de movimentos sociais insatisfeitos e anti produtivos, que devem ser criminalizados.

"A invenção da propaganda dirigida por parte do Google foi pioneira em termos de sucesso financeiro, mas também assentou o alicerce de uma consequência muito maior: a descoberta e elaboração do capitalismo de vigilância. Seus negócios se caracterizam como um modelo de publicidade, e muito foi escrito acerca dos métodos de leilão automatizados do Google e outros aspectos de suas invenções no campo da publicidade on-line. Com tanta verborragia, esses desenvolvimentos são ao mesmo tempo superdescritos e subteorizados." ZUBOFF 2020 página 83

O medo, a partir do Atentado das Torres Gêmeas em Nova York, se generalizou e se oficializou o acesso às nossas privacidades, colocando nosso cotidiano mais íntimo disponível para as Big Techs, que os comercializam a nossa revelia de forma intensa. Nos novos negócios engendrados pelas novas tecnologias há também a presença da alienação, agora não só do trabalho, mas também de nossas buscas, desejos e interesses, que passam a ser vendidos a nossa revelia. Nos manuscritos econômico-filosóficos que foram escritos por Karl Marx (1818-1883) entre março e agosto de 1844 em Paris, portanto quando tinha apenas 26 anos, e quando o autor acabara de ser exilado da Confederação Alemã, por seus artigos no jornal Rheinische Zeitung, a Gazeta Renana[5]. Há nesses Manuscritos uma importante abordagem sobre questões que partem da economia política a partir de categorias dos mundos da vida, tais como; salário, ganho de capital (lucro) e renda fundiária e chegam a uma visão mais genérica e absoluta de ordem filosófica. A visão de Marx persegue a desnaturalização de práticas gerais cotidianas dos industriais, dos trabalhadores e dos proprietários de terra, que enxergam os processos de lucro, exploração do emprego e valorização de forma mecânica e natural da propriedade. Mas, que na verdade, precisavam de um arcabouço artificial de leis e normas estabelecendo as novas formas capitalistas da subjetividade, indo contra as noções de Comum e de Solidariedade, que estavam e ainda estão arraigadas em nosso senso compartilhado de justiça. A categoria da alienação é confrontada com os pensamentos de Hegel e Feuerbach, e passa a ser historicizada na sua processualidade sócio material, como trabalho onde não há mais reconhecimento do trabalhador.

"A alienação do sujeito recebe um novo trato: deixa de ser a objetivação universal e necessária (como em Hegel, que identifica objetivação com alienação) e não se reduz a um produto da consciência (como em Feuerbach). Se em Hegel a supressão da alienação equivale a supressão da objetivação, nos Manuscritos a objetivação só é alienação em condições históricas determinadas - nas condições próprias à existência histórica da propriedade privada (com suas conexões com a divisão do trabalho, a produção mercantil e o trabalho assalariado). Se em Feuerbach ela se mostra privilegiadamente na consciência religiosa, nos Manuscritos esta é, antes, uma dentre várias condições sócio históricas muito determinadas." NETTO 2020 página 104

Portanto, continuamos a produzir e a reproduzir a cidade de forma mecânica, sem pensar nas consequências do automatismo de nossas operações, que são comandadas por um plano-projeto que se recusa a questionar o estado das coisas. E aqui, é preciso firmar que essas condições sócio materiais não impactam apenas o trabalho braçal e mecânico, as artes mecânicas, mas também o trabalho intelectual, ou as artes liberais, que de certa forma, escapavam dos manchesterianos Marx e Engels. De acordo, com Manfredo Tafuri (1935-1994), o que era necessário era (re)historicizar os processos, formas e possibilidades do trabalho intelectual, que sempre esteve ligado às condições impostas pela evolução do desenvolvimento capitalista. Por isso, TAFURI (1985), viu na atividade de investigação histórica (que as vanguardas modernas desde o Renascimento sempre rejeitaram como uma pré-condição de seus projetos) a ferramenta mais poderosa para interrogar os efeitos do desenvolvimento capitalista sobre a agência e a atuação intelectual, dando precisão e concretude ao interesse comum. Para (re)historicizar as mentalidades intelectuais significava que o local político da luta era o pensador trabalhar a si mesmo em termos de suas qualificações, seus modos de ser especializado, sua capacidade de conectar informações e gerar formas sintéticas, em cada ciclo de produção, pois o sistema sempre definiu um novo mandato para o papel social de intelectuais. Para TAFURI (1985), tal análise deveria fornecer uma forma inevitavelmente ideológica, pois essa presença no sistema seria insuperável, fazendo da compreensão uma possibilidade sempre parcial para a ação (intelectual). Nesse sentido, é interessante observar como, hoje, as reflexões de TAFURI (1985) vêm inesperadamente (e paradoxalmente) estar muito próximas, por um lado, de slogans, como "trabalho criativo" e a sempre parcial autonomia do plano e do projeto. E, por outro lado, e de forma não mais paradoxal, para as discussões dos movimentos sociais da Itália dos anos oitenta, sobre as possibilidades de cognições do trabalho como centro dos modos de produção pós-fordistas. Mas enquanto essas posições absorveram completamente o produtivo status de conhecimento, o crítico italiano concentrou a atenção na pressão dos pontos dentro do desenvolvimento capitalista na cultura intelectual, problematizando o desenvolvimento. É impressionante as conexões levadas a cabo pelo crítico italiano, num mundo ainda não plenamente dominado pela emergência da hegemonia neo-liberal, de Thatcher e Reagan, que hoje vivemos e do qual, parece que não nos desvencilhamos.

"A utopia, portanto, não é mais do que "visão estrutural da totalidade que existe e há de existir" (MANHEIM, Karl - O pensamento conservador), transcendência do "dado" puro, "sistema de orientação tendente a romper os laços da ordem existente" para reganhá-los a um nível diferente e mais elevado (a utopia, uma vez afirmada, se transforma de novo em ideologia...). Para Weber e para Mannheim, a crítica da ideologia é um dos fatores dinâmicos do desenvolvimento. Para ambos - tal como para Keynes - a única realidade individualizável é a dinâmica do desenvolvimento. A utopia de Mannheim, para além das afirmações do seu autor, é prefiguração de modelos finais e globais, no sentido da realidade dada. A "crítica ao pensamento conservador" torna-se portanto uma necessidade, um instrumento destinado a libertar o funcionamento dinâmico do sistema. A ruptura constante do equilíbrio só poderá converter-se numa "política científica", anti-ideológica, numa solução racional dos conflitos gerados pelo próprio desenvolvimento, depois de ter reconhecido a inerência daqueles conflitos ao processo dialético do real." TAFURI 1985 página 43

Em 1970, Tafuri publicou o texto "Lavoro Intellettuale e Sviluppo Capitalistico", Trabalho Intelectual e Desenvolvimento Capitalístico, na revista Contrapiano, esse trabalho se converterá no capítulo 3 do livro Projeto e Utopia, que recebeu o título de Ideologia e Utopia, do qual foi tirado a citação acima. Os anos sessenta, setenta e oitenta na Itália, nos aparecem hoje como idílios utópicos frente aos avanços destruidores do neoliberalismo contemporâneo, iniciados naqueles mesmos anos, com os governos de Thatcher (1979) e Reagan (1981). O Reformismo Capitalista, na Itália daqueles anos acreditava ser possível direcionar o desenvolvimento para uma maior sustentabilidade social do sistema, associando racionalidade do plano com uma abordagem mais científica das forças produtivas. Era a domesticação do conflito de classes e a reforma dos processos produtivos do capitalismo, por exemplo no seio da Olivetti[6], como a fábrica que se transformava num campus de elevada produção, reunindo artistas, designers, intelectuais e operários, numa possibilidade de novo humanismo social. Havia um eufórico eixo domesticador do impulso do capitalismo, que envolvia agentes e atores diferenciados como; Umberto Eco, Raniero Panzieri, Franco Fortini, Ítalo Calvino, Alberto Asor Rosa, Massimo Cacciari e o próprio Manfredo Tafuri. Todos empenhados na radicalização da democracia e perpassados por diferentes gradientes de otimismo e pessimismo, mas acreditando num novo ciclo de articulação entre o Estado de Bem Estar Social e o Capitalismo. Essa problematização foi tão radical que podemos concluir que o verdadeiro objetivo da crítica de Tafuri não era tanto o de estender ao poder, na forma tradicional da política partidária (que, no final das contas, continuou sendo o objetivo dos editores da Revista Contropiano), mas mais um meio de compreender, uma vontade de profundamente desemaranhar os processos históricos através dos quais o intelecto, a subjetividade real foi feita e artificialmente construída no cotidiano. Mas, Tafuri também usou a vontade de entender como o antídoto para o arquiteto e o crítico narcisismo de boas intenções, não só no âmbito arquitetônico "boudoir", mas também no ativismo social dos chamados pró arquitetos agressivos - muitos, presentes hoje - que na luta por demandas acabaram se espetacularizando. Daí seu recorrente refúgio no tempo do Renascimento na Itália, um lugar onde os homens parecem desfrutar de uma ampla visão das condições críticas de operação do trabalho intelectual, jamais reconquistado, na história humana.

"Por meio de sua intensa atividade de historicização do desenvolvimento do projeto de modernidade arquitetônica desde a Renascença até neo-avantgardê dos anos 1970, Manfredo Tafuri foi o primeiro intelectual no campo da história e crítica da arquitetura entender que não era mais possível para os intelectuais para abordar a questão das mudanças sociais e culturais provocadas por desenvolvimento capitalista de uma perspectiva externa. Na verdade, para Tafuri não havia posição externa no capitalismo, uma vez que sua a totalidade era constituída pela realidade do "trabalho assalariado", que também incorporou o papel do intelectual. Consequentemente, ele entendeu que uma crítica ao capitalismo só poderia ser produzido de dentro, a partir das categorias e formas através das quais eram - conscientes ou inconscientes - mediando culturalmente os efeitos da continuação do programa capitalista produção ou participando de sua reificação. Para Tafuri, e para aqueles que influenciaram sua crítica, esta nova condição significava que qualquer discurso crítico e político precisava, antes de mais nada, ser dirigido a intelectuais como trabalhadores em vez de "outros" (trabalhadores), contradizendo a ideia de que o social e político mandato dado ao intelectual pode ser dado como certo." AURELLI 2010 

Essas são questões complexas, que na verdade envolvem; alienação, objetividade, subjetividade, construção utópica compartilhada, que povoam as ações do plano e do projeto desde tempos imemoráveis. Esses debates povoaram minha tese de doutorado de 2007, que tinha como título; Projeto, Ideologia e Hegemonia; em busca de um conceito operativo para a cidade brasileira, defendida no âmbito do PROURB da FAU-UFRJ. O que me parece claro é o enorme retrocesso que sofremos nesse campo desde a emergência do neoliberalismo, as décadas de sessenta, setenta e oitenta do século XX apontavam novas possibilidades produtivas, mediadas por um profundo reformismo, que hoje aparece solapado pela ética do capitalismo único e exclusivo. Tais condições tem determinado imensos índices de concentração de renda, e uma sensação de proximidade de um desastre de escala planetária, onde o futuro das próximas gerações é colocado em risco por um desenvolvimento predatório e desagregador. O campo do plano e do projeto precisa problematizar essas questões urgentemente, do contrário estaremos caminhando para a supressão da nossa espécie. No caso aqui abordado, na temática do tema da habitação multi-familiar, destaca-se sua relevância para a constituição de nossas cidades, afinal o morar é o uso predominante em todas as cidades. Atuar sobre as hipóteses, impostas ou legitimamente eleitas, de projeto pode abrir possibilidade de se reformar a cidade de forma substancial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

As complexas questões colocadas pelo filme Aquarius de Kleber Mendonça nos revela a cidade brasileira, que estamos produzindo e os efeitos dela sobre seu espaço comum, seu uso intenso e a interação entre esferas pública e íntima. Os processos capitalistas de urbanização demandam e ao mesmo tempo rechaçam a projetação e o planejamento, pois as relações sociais e de propriedade do sistema precisam de ação coletiva, mas também pretendem sempre se apropriar de forma privada de seus benefícios. O livro de AURELLI 2013, que tem como título The Project of Autonomy; Politics and Architecture within and against Capitalism (A Autonomia do Projeto; Política e Arquitetura com e contra o Capitalismo) é um testemunho sensível dessa contradição, que de certa forma comprova a necessidade de se radicalizar e ampliar os processos de decisão do projeto. Seguindo a tradição de Manfredo Tafuri e da crítica italiana dos anos sessenta, setenta e oitenta localiza-se a cidade como uma categoria política, onde se digladiam as diferentes classes e interesses para produção da “economia política do espaço”, que no Brasil demonstra uma contínua incapacidade de geração de uma espacialidade não exclusiva, mas incluidora de todos. Nos anos oitenta, um intelectual brasileiro escreveu um texto ainda fundamental para as práticas sociais em curso no nosso país, A democracia como valor universal, de Carlos Nelson Coutinho. Uma reflexão que reafirmava a convergência entre ampliação e radicalização dos processos democráticos e a ampliação da melhora das condições de vida de nossa população. A espacialidade da cidade é sem dúvida um tema mobilizador de nossa população em geral, dentro dela o tema da habitação é central e essencial para a reprodução da vida humana no planeta. A ampliação dos processos decisórios dentro da autonomia do plano e do projeto e da conservação de nosso patrimônio me parecem fundamentais, para se alcançar uma cidade mais justa e inclusiva, com consciência de si mesma.

NOTAS:

[1] A expressão “economia política do espaço” é utilizada por CUTHBERT 2021, pág.30 e ao longo de todo livro para qualificar a produção de formas e soluções arquitetônicas e urbanas extremamente vinculada aos processos e determinações econômico e sociais.

[2] O professor de literatura da UFRGS, FISCHER 2022, pág104, aponta uma celebração desmesurada de nosso patrimônio barroco e modernista, em detrimento do ecletismo e do proto-modernismo, que representavam grande parte do patrimônio construído de nossas cidades no início do século XX; “O patinho feio era o chamado ecletismo, que era “apenas” a marca do grosso das cidades brasileiras dos séculos XIX e começo do século XX, quer dizer, a marca do Brasil, em geral, entre o tempo do Barroco e o tempo do modernismo.”

[3] Interessante destacar, que o culto a tipologia da “Torre” também esteve presente nas economias do socialismo real, particularmente no período stalinista do pós segunda guerra. Cidades, como Varsóvia se referem ao Palácio da Ciência e da Cultura em seu centro, e denominam a torre como uma das oito irmãs de Stálin, junto com o Centro Soyus (não construído) ou o Ministérios das Relações Exteriores e a edificação da Universidade de Moscou, que procuravam demonstrar que a nova economia era também capaz de realizar tecnicamente o “arranha céu” Estadunidense.

[4] COUTINHO, 1980 VIANNA 1997 apontam a tendência no Brasil de modernizações operadas pelas elites, sem inclusão de nossa população, como “modelo prussiano”. 

[5] O Rheinische Zeitung foi um jornal de um cunho reformista e liberal, que se opunha ao autoritarismo prussiano, na cidade de Colônia. O jovem Marx escreveu textos contra a censura da imprensa, o conflito entre o arcebispado de Colônia e o governo, a legislação sobre o divórcio, a miséria dos vinhateiros do Mosela e a questão do furto de madeira naturalmente caída nas florestas recém cercadas, que haviam sido criminalizados pelas leis burguesas, que já foi comentado aqui no blog. Em outubro de 1842, Marx se transforma no editor chefe da Gazeta Renana, nesse momento o número de assinantes do jornal que era de 800, em novembro sobe para 1.800, e em dezembro para 3.400 assinaturas.

[6] AURELLI 2010, num texto com o título de, Recontextualizing Tafuri's Critique Of Ideology, aponta as iniciativas da Olivetti, na busca de outro arranjo produtivo;  "O protótipo cultural desta onda do reformismo socialista foi a afirmação de Adriano Olivetti na revista da empresa "Comunità", de uma tentativa de transformar uma fábrica em um campus cultural que elevou a produção como possível habilidade de uma sociedade socialmente sustentável e culturalmente articulada na comunidade. Olivetti envolveu não apenas gerentes, mas também artistas, designers e escritores no trabalho em sua fábrica. A intenção da Olivetti era demonstrar, por um lado, a natureza intrinsecamente racional da produção e por outro a possibilidade de um novo humanismo social baseado no desenvolvimento da indústria." (tradução minha do texto original a seguir); "The cultural prototype of this wave of socialist reformism was the affirmation of Adriano Olivetti's "Comunità," an attempt to transform a factory into a cultural campus that elevated production as the possibility of a socially sustainable and culturally articulated community. Olivetti involved not only managers but also artists, designers, and writers in the work at his plant. The intent of Olivetti was to demonstrate on the one hand the intrinsically rational nature of production and on the other the possibility of a new social humanism based on industrial development.

REFERÊNCIAS:

ARGAN, Giulio Carlo - História da Arte como História da Cidade - Editora Martins Fontes São Paulo 1992

AURELLI, Pier Vittorio - Recontextualizing Tafuri's Critique Of Ideology - Anyone Corporation, https://www.jstor.org/stable/41765325

AURELLI, Pier Vittorio - The Project of Autonomy; Politics and Architecture within and against Capitalism- Nova York, Columbia University Press 2013

CUTHBERT, Alexander R. Compreendendo as cidades: método em projeto urbano, Perspectiva, São Paulo 2021

COUTINHO, Carlos Nelson Coutinho, A democracia como valor universal, Rio de Janeiro, Livraria Ciências Humanas 1980

FISHER, Luis Augusto, A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua consagração, São Paulo, Todavia, 2022

GRAMSCI, Antonio, Cadernos do Cárcere, Volume 1: Introdução ao estudo da filosofia; A filosofia de Benedetto Croce, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira 1999

MARTIN, Leslie e MARCH, Leon. Urban Space and Structure Cambridge University Press 1972

MOREIRA, Pedro da Luz, Projeto, Ideologia e Hegemonia; em busca de um conceito operativo para a cidade brasileira, Rio de Janeiro, Tese PROURB FAUUFRJ, 2007

NETTO, José Paulo - Karl Marx, uma biografia - Boitempo São Paulo 2020

TAFURI, Manfredo - Projeto e Utopia, arquitetura e desenvolvimento do capitalismo - Editora Presença Lisboa 1985

_____, Manfredo, Teorias e História da Arquitetura, Lisboa, Editora Presença Martins Fontes 1979

VIANNA, Luiz Werneck, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil, Rio de Janeiro, Revan, 1997

ZUBOFF, Shoshana - A era do capitalismo de vigilância, a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder - Editora Intrinseca Rio de Janeiro 2020





 

 

 

 

 

 


sábado, 26 de outubro de 2024

MODELOS OU PRINCÍPIOS DO BEM VIVER NAS NOSSAS CIDADES BRASILEIRAS AINDA PODEM SER DISCUTIDOS

Republico aqui no blog Arquitetura,cidade,projeto.blogspot.com o texto que publiquei na Revista Vírgula, em maio de 2024, e que já saiu do ar. Boa leitura, e aguardo críticas e comentários...

O modelo do "Bem Viver"
no Brasil envolve;
a torre em altura,
o condomínio fechado
e o rodoviarismo

Estamos às vésperas das Eleições Municipais de 2024 no Brasil e apesar disso o tema da espacialidade da cidade, sua configuração e engendramento material é continuamente recalcado pela mídia, pelos políticos e até por nossa sociedade civil organizada. Há um entorpecimento geral, uma alienação, que naturaliza determinações culturais e condicionamentos sociais como se fossem inevitáveis, ou como se não fossem escolhas de planos e projetos determinados por um pensamento conservador e retrógrado. Essas eleições serão diversas de todas as outras que ocorreram anteriormente no Brasil, por uma série de fatos que atingiram nosso meio ambiente, tais como as enchentes no Rio Grande do Sul, as chuvas torrenciais concentradas que determinaram tragédias como as do litoral norte de São Paulo, ou nas cidades serranas do Rio de Janeiro, ou no rompimento de barragens da mineração em Minas Gerais, ou ainda no imenso passivo ambiental que as cidades brasileiras carregam nos temas da emissão de carbono, saneamento básico, coleta e destinação de resíduos sólidos, impermeabilização do solo, etc. Nossa macro política será tirada de uma inércia estabelecida de longa data, que debate temas como habitação, saúde, educação, cultura, violência, sem sua espacialização correspondente no território? Afinal, essas eleições também podem ser uma oportunidade ímpar para refletir sobre que cidade temos, e qual queremos construir para as futuras gerações? O que aconteceu com nossas cidades, ou para onde estamos indo? Ou melhor, qual imagem do bem viver, da boa cidade que elegemos como modelo entre nós? Qual forma-tipo de cidade que compartilhamos como representação ideal da boa vida e do bem viver? Apesar dos modelos estarem esgotados, e, como defendem alguns teóricos, vivemos um momento pós hegemônico, onde não é mais possível a eleição de uma forma tipo sintética e representativa; será que ainda é possível compartilhar princípios norteadores da cidade que queremos ter?

Um princípio geral vem pautando a política no Brasil nos últimos anos, pelo menos no campo progressista, e tudo indica que continuará na nossa agenda, que é a busca por uma sociedade com maior equidade, ou melhor distribuição de renda. De uma maneira geral, o senso comum da sociedade brasileira não identifica nas atribuições dos governos, federal, estadual ou municipal, uma estruturação do espaço construído do território, nas cidades e no campo, uma capacidade para promover ou induzir uma melhor distribuição de renda. De uma maneira geral, o brasileiro considera que a promoção de maior equidade em nossa sociedade é fruto apenas de políticas nas áreas da habitação, da saúde, da educação, da cultura, do saneamento, da mobilidade social, etc de forma desvinculada do território, da espacialidade das cidades e das áreas rurais. Nossa ordenação espacial não é só fruto de uma sociedade dividida e partida por interesses de classe, mas também mantenedora de uma situação bloqueadora de oportunidades e benefícios para as classes menos privilegiadas. A política urbana e de ocupação territorial do país podem ser fatores de promoção de oportunidades de geração de renda e de transformação social, pois a ordenação espacial pode superar a exclusão gerando inclusão e pertencimento. A mentalidade, que parece ainda operar em nossa macro política é a do recém falecido ex ministro da economia Delfim Neto, na época da decretação da Ditadura Civil e Militar de 1964, de que “era necessário primeiro fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”. Como se, a premissa de inclusão social e da promoção de oportunidades para a população brasileira determinasse um bloqueio do desenvolvimento econômico do país. Trata-se de um grande equívoco, uma vez que a qualidade espacial da cidade pode representar uma apropriação indireta de renda para parcela significativa da população, impulsionando o desenvolvimento. Nosso desenvolvimento econômico seguiu aquilo que muitos teóricos identificam como o “modelo prussiano” ou autoritário, típico de países de chegada tardia ao desenvolvimento capitalista, que pregam um acordo restrito a suas elites, sem a participação popular. Essa gerência conservadora da territorialidade da cidade gerou concentração de renda, pois o desenvolvimento citadino muitas vezes é determinado por investimentos públicos vultuosos combinado com uma apropriação privada desses benefícios, por parte dos donos da terra urbana. A cidade brasileira espelha isso em seu território de forma emblemática. Nossas cidades se apresentam com uma mobilidade de transportes ineficiente e cara, guetos ricos e pobres segmentados e bem marcados, áreas especializadas em usos restritivos especializados, zonas dedicadas a serviços e dormitórios, antigos centros históricos abandonados, deteriorados e subutilizados e uma relação predatória com o meio ambiente, a partir de uma dispersão territorial desnecessária.

Por exemplo, se temos melhores condições de mobilidade, que garantam tempos médios pendulares menores dos deslocamentos, a população poderá se apropriar de um maior tempo livre, que pode representar incremento de renda, ou de qualidade de vida. Apesar disso, recente pesquisa da Confederação Nacional de Transportes (CNT) realizada em 319 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, segundo o censo do IBGE de 2022 indicaram que houve um forte decréscimo na utilização de meios transportes coletivos (ônibus, trens e barcas), que migraram para formas particulares de mobilidade (automóveis, motos e aplicativos), representando um acréscimo de tempo nos deslocamentos. A pesquisa aponta, que nessas cidades brasileiras apenas 31,7% da população usa o transporte coletivo, contra 68,3% que se utilizam de formas individuais. Os resultados também espelham um forte declínio das formas de transporte coletivo em nossas cidades, quando vistos a partir da série histórica entre 2017 e 2022, pois naquele ano essa mesma percentagem era de 49,2% nos meios coletivos contra 50,8% nos modos individuais. Tal condição decorre claramente de um declínio dos investimentos no transporte público, e no incentivo a indústria automobilística e a ideologia individualista e rodoviarista, que prospera no neoliberalismo contemporâneo e nas políticas das três esferas governamentais. Com sua celebração da desregulamentação interessada, onde o planejamento de Estado é endemoniado e uma suposta liberdade de escolha celebrada. Como se ela não fosse planejada e implicasse numa total ausência de alternativas, fora de uma mentalidade individualista e particularizada, que desdenha das soluções coletivas. Em outro aspecto das infraestruturas espaciais, se tivermos melhores condições de saneamento em nossos bairros pobres e favelas teremos menos poluição de mananciais e rios e menos gastos em saúde, e portanto, apropriação indireta de rendas suplementares por parte da nossa população em geral.

Por outro lado, a estruturação de uma política habitacional, de educação, de saúde, de cultura, de segurança vinculadas a questão espacial ou a política urbana de nossas cidades é um fator primordial para se alcançar maior equidade na sociedade brasileira, afinal a segmentação espacial das nossas cidades está determinada por forte clivagem entre as classes sociais, e promove constantemente a sua manutenção. Para tal, basta pensarmos no campo da representação social do bem viver ou da boa vida, quais os modelos de moradia ocupam o imaginário da população em geral. Certamente uma pesquisa indicaria; uma habitação unifamiliar isolada próxima a um idílio da natureza, num subúrbio distante, ou nas situações mais adensadas um apartamento numa torre com grande desenvolvimento em altura, com vista privilegiada e de preferência o mais distante possível do barulho urbano. Tais representações foram escolhidas pela nossa população, ou são impostas pelo mercado imobiliário, que claramente otimiza seus lucros, com ambas as opções. A superconcentração das torres de apartamentos residenciais, assim como a unidade unifamiliar isolada perto de idílios naturais representam claros interesses de uma sociabilidade individualista e isolada, que acabam potencializando problemas como o declínio da esfera pública da cidade e a violência urbana. Dois filmes brasileiros problematizam ou contrariam tais posições de forma emblemática e bastante elucidativa e didática, mostrando-nos que a opção do modelo habitacional interage com a precariedade dos sistemas de transporte coletivos e com a deterioração de nosso meio ambiente.

Em 2015, o cineasta Felipe Barbosa realizou o filme Casa Grande, onde uma família de classe média alta habita uma residência unifamiliar de alto padrão, próxima a Floresta da Tijuca, no Itanhangá na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, de forma isolada, mostrando-nos as agruras do filho para se deslocar até o Colégio São Bento no centro da cidade. No início do filme, esses deslocamentos são feitos com um motorista particular, mas a partir de seu desenvolvimento, com as dificuldades financeiras familiares, passa a se utilizar do sistema de ônibus da cidade, mostrando-nos o profundo medo de nossas elites do contínuo urbano precarizado das nossas cidades. Com a precariedade do seu sistema de transportes e a presença de favelas, como a Rocinha ou a presença na paisagem exuberante da cidade do Rio de Janeiro da obra rodoviarista repleta de malabarismos estruturais da auto estrada Lagoa Barra. E, em 2016, o cineasta pernambucano Kleber de Mendonça Vasconcelos Filho realizou o filme Aquarius, que foi mais aclamado pela crítica e pelo público. O filme estrelado pela atriz Sonia Braga apresentava uma sensível crítica as formas hegemônicas do habitar na sociedade brasileira, e um potente testemunho de como as formas do “Bem Viver” e da Boa Vida vem sendo manipuladas pelas incorporadoras imobiliárias no país. Tanto a casa isolada no Itanhangá do filme Casa Grande, quanto o edifício Aquarius na praia de Boa Viagem no filme de Kleber Mendonça, onde os filmes são ambientados existem, são materialidades concretas. E os bairros do Itanhangá e a praia de Boa Viagem ocupados de forma exclusiva pelas elites endinheiradas do Rio de Janeiro e de Recife, que elegeram, nessas cidades e em todo país, uma forma tipo de habitar em oposição e confronto à esfera pública, à vida urbana intensa e geral. A exclusividade isolada do habitar e suas conquistas com fartos recursos financeiros são tematizados e explorados mostrando-nos as cidades para poucos, que pretendemos construir.

Os filmes exploram o contraste, em suas tomadas de forma quase obsessiva, mostrando, de um lado, o exclusivo isolamento da Casa Grande e o rodoviarismo de nossas grandes cidades, quanto no edifício Aquarius, que com apenas três pavimentos de altura, sem pilotis, contrasta com a massa de torres com mais de trinta andares, que dominou a paisagem dos bairros litorâneos Brasil afora, desde a década de 70 e 80 do século XX. Importante destacar, que as edificações efetivamente existem seja, na Barra da Tijuca, quanto no bairro da Boa Viagem, e são frutos de formas de empreendimentos que otimizam o lucro imobiliário, em claro detrimento do interesse público. A casa isolada no Itanhangá na Barra da Tijuca, bairro ocupado mais intensamente a partir da construção da auto estrada Lagoa Barra, obra de realização pública, efetivada na paisagem no início da década de 1970, que viabilizou a conexão litorânea da Zona Sul com a área. E, que claramente recalcou a conexão mais natural da região com a Zona Norte, através da Avenida Cândido Benício, no vale entre a Floresta da Tijuca e o Maciço da Pedra Branca, e, portanto sem os malabarismos estruturais da auto estrada. Portanto, potencializando enormemente os lançamentos imobiliários, que assumiram nomes como Nova Ipanema e Novo Leblon, marcando as proximidades com as amenidades litorâneas. Mais uma vez na nossa história, viabilizando a apropriação privada dos donos da terra, a partir de investimentos públicos vultosos, como o da autoestrada. Não por acaso, o protagonista dono da Casa Grande no Itanhangá, vivido pelo ator Marcelo Novaes é um representante dos empreendimentos rentistas e improdutivos, que determinam sua bancarrota.

Por outro lado, o Edifício Aquarius construído em 1952 num tempo quando as incorporações de intensificação do solo urbano eram comandadas por pequenos investidores, longe dos grupos imobiliários monopolizados da atualidade. Claramente, o filme pernambucano contrapõe a torre habitacional, com desenvolvimento em grande altura, àquilo que poderíamos chamar de empreendimento linear de baixa altura, que estabelece com o espaço público da cidade uma mútua vigília. Entre intimidade da unidade habitacional da vida íntima familiar e o espaço público da cidade, a rua, mostrando a protagonista interagindo e participando da vida do bairro pela sua janela, prática inviabilizada pela grande torre de apartamentos. O filme narra o assédio das grandes incorporadoras imobiliárias para comprar a unidade no Edifício Aquarius da protagonista Sonia Braga, última moradora, para promover, empreender e homogeneizar com a solução da torre, suprimindo o último testemunho de uma tipologia de baixo gabarito e de implantação contínua. Importante destacar, que essa mesma tipologia é bastante recorrente nas cidades brasileiras até a década de 60, quando a apropriação da renda urbana, proveniente da intensificação de seu uso não era monopolizada por grandes grupos financeiros. E, gerava uma urbanidade mais plena onde a proximidade entre a esfera privada e pública ainda não havia sido rompida.

O neo liberalismo não é apenas uma forma de ordenação dos Estados Nacionais, mas também a instituição de uma forma de operar na sociedade, no seu cotidiano, um modelo de comportamento que pretende afastar a solidariedade intrassocial, impondo uma concorrência desregulada e selvagem. Há no mundo contemporâneo um modelo de atuação cotidiana hegemônica baseado nos princípios neoliberais, uma forma de operar que celebra a iniciativa particular ou mesmo coletiva, desregulamentada das formas tradicionais de controle do Estado, apesar da afirmação recorrente pelo pensamento conservador de uma realidade pós-hegemônica. As iniciativas públicas ou articuladas pelo Estado são vistas com desconfiança, e consideradas incapazes de promover processos bem sucedidos, ou virtuosos. Essa proposição começa a se desenvolver na década de setenta do século XX, que é apontada como um momento de crise e de virada da regulação internacional acertada pelo acordo de Bretton Woods, que regulava as finanças desde 1944, e que começava a apresentar sintomas de esgotamento, com as crises do petróleo. A partir desse momento com o forte declínio das taxas de lucro, os donos do capital irão se articular numa narrativa, que impõe a desregulamentação financeira e a austeridade fiscal.

Em 1973, ocorre o golpe de estado no Chile impõe-se pela primeira vez uma ideologia neoliberal no país, em 1975-76 a disciplina fiscal é implantada no Reino Unido pelo FMI, e também em 1975 a cidade de Nova York inicia a aplicação de rigorosa meta fiscal, após sua declaração de inadimplência. No final dos anos setenta, as eleições de Thatcher e Reagan marcam a conquista do poder pelo discurso neoliberal, que passa a pautar nosso cotidiano com a ideia da desregulação econômica e liberação do empreendedorismo individual. Em 1979 Margareth Thatcher assume como primeira ministra britânica, em 1980 Ronald Reagan assume a presidência dos EUA, desenvolvendo-se uma enorme desregulamentação do capital. O Wellfare State ou Estado de Bem Estar Social desmorona, uma transformação que esvaziou o uso industrial e fez emergir um contínuo de serviços financeiros e especulativos, que passaram a representar no mundo anglo saxão, um terço do emprego disponível. Inicia-se uma forte hegemonia do capital financeiro no mundo. Em 9 de novembro de 1989 cai o muro de Berlim, que dividia a Alemanha em dois, e o mundo da Guerra Fria das duas superpotências apresenta sinais de esgotamento. Em meados dos anos 1990 o advento da internet e das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) lançam para a humanidade a possibilidade de acessar um amplo acervo de informações, que determinam uma imensa dispersão de energias, parecendo inviabilizar a possibilidade de construção de prioridades e consensos. A política se fragmenta numa infinidade de interesses que parecem irreconciliáveis, apontando para a impossibilidade da construção de consensos. Em 2004, a bolsa de tecnologia de Nova York, Nasdaq força os grandes conglomerados de informação, como o Goggle e Amazon a monetizar suas informações sobre seus usuários, caindo o pretenso sigilo de nossas buscas para as grandes corporações monopólicas. Emerge disso tudo, uma sociedade claramente sub teorizada e super informada, com clara dispersão de suas energias questionadoras e disruptivas.

Muitos dos fluxos financeiros aprisionados por regulações estatais passam a circular pelo mundo de forma livre, e, sem conseguir ser sequer monitorados por qualquer tipo de regulação fiscal, afinal as iniciativas estatais continuam sendo vistas com desconfiança. Esses procedimentos rentistas ancorados em ganhos financeiros completamente autonomizados com relação a produção passam a circular pelo mundo gerando fortunas e fraudes. Aquilo que Bretton Woods pretendera regular, a partir do final da 2ª Guerra Mundial, e que se referia aos processos especulativos do Crack da Bolsa de Nova York em 1929, que haviam produzido uma imensa recessão que permitiu o acesso ao poder pelo nazi-fascismo na Europa, iniciando o conflito mundial. Agora, no final da década de setenta era esquecido, pelo menos no Reino Unido e nos EUA com a doutrina de Thatcher e Reagan, determinando o declínio do movimento sindical organizado e a celebração de um empreendedorismo particular e isolado. Frases, como “não há almoço de graça” ou “a sociedade não existe, é uma abstração, o que há são indivíduos e famílias”, ou ainda “jamais esqueçam que não existe dinheiro público, todo dinheiro arrecadado pelo governo é tirado do orçamento doméstico...” justificam uma imensa deterioração dos serviços públicos e promovem uma mentalidade concorrencial sem limites.

A cidade brasileira e em todo o mundo ocidental é fruto dessa desregulamentação financeira e do culto de uma mentalidade empreendedora, que haviam contaminado nosso cotidiano. Há uma certa especificidade na economia brasileira, apontada por alguns teóricos como Armínio Fraga e Luiz Gonzaga Belluzo, determinada por nossa Constituição Federal de 1988, que possuía uma vertente favorável ao distributivismo de renda e a configuração de um Estado de Bem Estar Social, promotor de maior equidade. Mas a vertente neoliberal também está presente entre nós, notadamente na política urbana e espacial, principalmente no que se refere a regulação do Direito de Propriedade. Comprovando tal fato, basta observar a imensa luta legislativa que envolveu a aprovação do Estatuto da Cidade, que foi aprovado apenas em 2001, treze anos após a decretação da constituição cidadã, e que permanece com instrumentos reguladores da propriedade privada, ainda sem aplicação por claras razões culturais e de costumes. A propriedade privada em nossa cultura patrimonialista é absolutizada, não podendo ser regulada de forma alguma, fato que vem sendo comprovado pelos contínuos pedidos de revisão pela bancada conservadora, dos artigos 182 e 183, que decretaram a necessidade de cumprimento do papel social da propriedade privada em nossa Constituição Federal.

Em 2008, uma crise sem precedentes se abate sobre a economia americana, novamente grandes instituições financeiras sugadas pela quebra de confiança no sistema de hipotecas e nos seguros a sua volta ameaçam grandes conglomerados rentistas, que são classificados pelo governo dos EUA como; "so big to crash". Quase de forma imediata o sistema bancário espanhol, demonstra fragilidades a partir do imenso volume de financiamento de hipotecas habitacionais nas cidades espanholas. O governo liberal do Partido Progressista injeta dinheiro do contribuinte no grupo Santander alegando o mesmo argumento dos EUA. Na sequência, o governo americano, temendo um efeito dominó em toda a atividade econômica, semelhante a crise de 1929, aporta grande quantidade de capital do contribuinte americano, socializando os prejuízos e salvando grandes grupos financeiros. Alguns economistas mesmo auto declarados liberais, como Joseph Stglitz e Thomas Pikety apontam a necessidade de retorno da regulação, que deverá ser globalizada para controlar a especulação desenfreada dos fluxos financeiros que circulam pelo mundo. Alguns insistentes marxistas, como o crítico cultural Frederich Jameson e o geógrafo David Harvey recolocam a questão da tendência preferencial do sistema capitalista pela forma líquida monetizada, que se materializa de forma mais concreta nas bolsas e investimentos rentistas, mas também no espaço, e em processos especulativos nas cidades globais. Apesar disso tudo, permanece em nosso cotidiano uma desconfiança pelas iniciativas governamentais e públicas, que ainda são vistas como esforços arrecadatórios mantenedores de aparatos burocráticos, que apenas visam sua reprodução e auto-sustentação, sem qualquer interesse público ou projeto republicano. Em 2020, com a Pandemia de Covid-19 a sociedade civil parece ter a comprovação definitiva de que as grandes corporações privadas e monopólios centradas no lucro são incapazes de promover a saúde e o Direito de reprodução da vida. Mais uma vez, a pesquisa pública e os investimentos estatais preservam uma parte da vida da humanidade, e promovem o desenvolvimento, evitando uma recessão catastrófica.

Por outro lado, as cidades passam a concentrar e expressar imensas manifestações de rebeldia e de insatisfação, explodem ocupações em várias partes do mundo, que reinvindicam melhores condições de habitar e de circular, sem no entanto, a capacidade de formular uma pré-figuração alternativa para o módus operandi do status quo neoliberal. A espacialidade das cidades é um efetivo aglutinador de movimentos sociais diversificados, que denunciam a produção e reprodução de injustas condições de vida e de ausência de oportunidades. É nas cidades que se materializa uma imensa segmentação e fragmentação de oportunidades, uma concentração desequilibrada de benefícios que atendem a uma minoria, muitas vezes com impactos ambientais e sociais aviltantes. O território de nossas cidades demonstram de forma didática a segmentação da sociedade, a cidade capitalista neoliberal é produtora de imensas áreas de exclusão, enquanto outras muito restritas se globalizam impulsionando exclusividades fetichizadoras, que promovem apenas o valor de troca, recalcando qualquer valor de uso.

As cidades no Brasil, apesar de suas especificidades regionais, invariavelmente apresentam um caráter exclusivo, que confronta áreas muito restritas de uma urbanidade plena, com amenidades de lazer, iluminação, segurança, contraposta a grandes contínuos literalmente sem infraestruturas básicas. De uma maneira geral, ela se apresenta dispersa e esgarçada ocupando um território muito maior do que seria necessário para sua população. Com um centro histórico decadente e esvaziado, dotado de um patrimônio construído importante, mas subvalorizado, desocupado e em contínua destruição pelos próprios interesses de seus proprietários, que almejam sua monetização e destruição imediata. Com áreas especializadas em usos limitados – bairros de serviços ou bairros dormitórios - com extratos sociais de renda homogêneos, sem qualquer possibilidade de diversidade social. Com uma mobilidade deficiente de transportes públicos, de tarifas caras, com um sistema de modais sem qualquer coordenação, hegemonizado pelos veículos sobre pneus e com sua malha ferroviária decadente e com capacidade diminuta de carregamento. Um rodoviarismo agressivo e incapaz de suprir suas demandas por longo período, apresentando invariavelmente imensos congestionamentos. E, uma relação predatória com contínuos ambientais em seu interior ou em suas bordas, que são continuamente impactados por suas emissões e avanços.

Portanto, acredita-se que os princípios da boa cidade e do Bem Viver precisam ser explicitados de forma a dar sentido as imensas manifestações de rebeldia e inconformismo das cidades. A cidade deve encontrar uma série de princípios gerais, que sintetizam a busca da promoção de uma maior equidade de rendas e oportunidades, um território urbano onde está universalizado o acesso às infraestruturas urbanas e as oportunidades é o objetivo maior. Por outro lado, é necessário reconhecer que precisamos enfrentar o problema urbano brasileiro reformando a cidade existente, promovendo ajustes em seus sistemas já instalados de forma a beneficiar a todos, e não apenas uma minoria privilegiada. Nesse sentido torna-se fundamental radicalizar as práticas democráticas, indo além da mera representação parlamentar, mas instituindo práticas cotidianas diretas de regulação dos orçamentos, planos e projetos. Busca-se portanto formular um conjunto de princípios norteadores para as cidades brasileiras, que precisam transformar o modo como vêm sendo construídas, para tanto, sugere-se priorizar quatro proposições objetivas:

1.     A Cidade deve ser compacta e densa, evitando-se a dispersão interminável e enfatizando-se o papel aglutinador do antigo centro histórico. Os instrumentos contidos no Estatuto das Cidades devem ser operados no sentido da preservação de seu contínuo construído, regulando o Direito de Propriedade;

2.     A Cidade deve ser lugar da convivência da diversidade de classes e de usos, evitando-se os guetos de ricos e pobres e a monofuncionalidade. A promoção da urbanização de favelas e a busca de sua integração aos tecidos dos bairros adjacentes deve reforçar o esforço de inserção social de todos seus estamentos e classes, utilizando-se inclusive dos sistemas de transportes sistêmicos para enfatizar sua reinserção;

3.     A Cidade deve ter mobilidade efetiva para todos, evitando-se a exclusão determinada pela ineficiência ou tarifação alta dos sistemas de transporte coletivo. As parcelas precarizadas da nossa população devem ter acesso ao passe livre reivindicado, permitindo o acesso amplo a diversidade de oportunidades que nossa cidades criam;

4.        A Cidade deve ampliar o reconhecimento da ecologia e dos biomas naturais locais, construindo-se melhor relação com a natureza, permitindo uma apropriação social ampla dos ecossistemas e fomentando sua expansão e convivência com o mundo artificializado do humano. Devem ser implantadas obras e transformações que promovam maior ajuste entre a vida urbana e a natureza, se adequando principalmente as chuvas tropicais de maior intensidade.