sábado, 26 de outubro de 2024

MODELOS OU PRINCÍPIOS DO BEM VIVER NAS NOSSAS CIDADES BRASILEIRAS AINDA PODEM SER DISCUTIDOS

Republico aqui no blog Arquitetura,cidade,projeto.blogspot.com o texto que publiquei na Revista Vírgula, em maio de 2024, e que já saiu do ar. Boa leitura, e aguardo críticas e comentários...

O modelo do "Bem Viver"
no Brasil envolve;
a torre em altura,
o condomínio fechado
e o rodoviarismo

Estamos às vésperas das Eleições Municipais de 2024 no Brasil e apesar disso o tema da espacialidade da cidade, sua configuração e engendramento material é continuamente recalcado pela mídia, pelos políticos e até por nossa sociedade civil organizada. Há um entorpecimento geral, uma alienação, que naturaliza determinações culturais e condicionamentos sociais como se fossem inevitáveis, ou como se não fossem escolhas de planos e projetos determinados por um pensamento conservador e retrógrado. Essas eleições serão diversas de todas as outras que ocorreram anteriormente no Brasil, por uma série de fatos que atingiram nosso meio ambiente, tais como as enchentes no Rio Grande do Sul, as chuvas torrenciais concentradas que determinaram tragédias como as do litoral norte de São Paulo, ou nas cidades serranas do Rio de Janeiro, ou no rompimento de barragens da mineração em Minas Gerais, ou ainda no imenso passivo ambiental que as cidades brasileiras carregam nos temas da emissão de carbono, saneamento básico, coleta e destinação de resíduos sólidos, impermeabilização do solo, etc. Nossa macro política será tirada de uma inércia estabelecida de longa data, que debate temas como habitação, saúde, educação, cultura, violência, sem sua espacialização correspondente no território? Afinal, essas eleições também podem ser uma oportunidade ímpar para refletir sobre que cidade temos, e qual queremos construir para as futuras gerações? O que aconteceu com nossas cidades, ou para onde estamos indo? Ou melhor, qual imagem do bem viver, da boa cidade que elegemos como modelo entre nós? Qual forma-tipo de cidade que compartilhamos como representação ideal da boa vida e do bem viver? Apesar dos modelos estarem esgotados, e, como defendem alguns teóricos, vivemos um momento pós hegemônico, onde não é mais possível a eleição de uma forma tipo sintética e representativa; será que ainda é possível compartilhar princípios norteadores da cidade que queremos ter?

Um princípio geral vem pautando a política no Brasil nos últimos anos, pelo menos no campo progressista, e tudo indica que continuará na nossa agenda, que é a busca por uma sociedade com maior equidade, ou melhor distribuição de renda. De uma maneira geral, o senso comum da sociedade brasileira não identifica nas atribuições dos governos, federal, estadual ou municipal, uma estruturação do espaço construído do território, nas cidades e no campo, uma capacidade para promover ou induzir uma melhor distribuição de renda. De uma maneira geral, o brasileiro considera que a promoção de maior equidade em nossa sociedade é fruto apenas de políticas nas áreas da habitação, da saúde, da educação, da cultura, do saneamento, da mobilidade social, etc de forma desvinculada do território, da espacialidade das cidades e das áreas rurais. Nossa ordenação espacial não é só fruto de uma sociedade dividida e partida por interesses de classe, mas também mantenedora de uma situação bloqueadora de oportunidades e benefícios para as classes menos privilegiadas. A política urbana e de ocupação territorial do país podem ser fatores de promoção de oportunidades de geração de renda e de transformação social, pois a ordenação espacial pode superar a exclusão gerando inclusão e pertencimento. A mentalidade, que parece ainda operar em nossa macro política é a do recém falecido ex ministro da economia Delfim Neto, na época da decretação da Ditadura Civil e Militar de 1964, de que “era necessário primeiro fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”. Como se, a premissa de inclusão social e da promoção de oportunidades para a população brasileira determinasse um bloqueio do desenvolvimento econômico do país. Trata-se de um grande equívoco, uma vez que a qualidade espacial da cidade pode representar uma apropriação indireta de renda para parcela significativa da população, impulsionando o desenvolvimento. Nosso desenvolvimento econômico seguiu aquilo que muitos teóricos identificam como o “modelo prussiano” ou autoritário, típico de países de chegada tardia ao desenvolvimento capitalista, que pregam um acordo restrito a suas elites, sem a participação popular. Essa gerência conservadora da territorialidade da cidade gerou concentração de renda, pois o desenvolvimento citadino muitas vezes é determinado por investimentos públicos vultuosos combinado com uma apropriação privada desses benefícios, por parte dos donos da terra urbana. A cidade brasileira espelha isso em seu território de forma emblemática. Nossas cidades se apresentam com uma mobilidade de transportes ineficiente e cara, guetos ricos e pobres segmentados e bem marcados, áreas especializadas em usos restritivos especializados, zonas dedicadas a serviços e dormitórios, antigos centros históricos abandonados, deteriorados e subutilizados e uma relação predatória com o meio ambiente, a partir de uma dispersão territorial desnecessária.

Por exemplo, se temos melhores condições de mobilidade, que garantam tempos médios pendulares menores dos deslocamentos, a população poderá se apropriar de um maior tempo livre, que pode representar incremento de renda, ou de qualidade de vida. Apesar disso, recente pesquisa da Confederação Nacional de Transportes (CNT) realizada em 319 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, segundo o censo do IBGE de 2022 indicaram que houve um forte decréscimo na utilização de meios transportes coletivos (ônibus, trens e barcas), que migraram para formas particulares de mobilidade (automóveis, motos e aplicativos), representando um acréscimo de tempo nos deslocamentos. A pesquisa aponta, que nessas cidades brasileiras apenas 31,7% da população usa o transporte coletivo, contra 68,3% que se utilizam de formas individuais. Os resultados também espelham um forte declínio das formas de transporte coletivo em nossas cidades, quando vistos a partir da série histórica entre 2017 e 2022, pois naquele ano essa mesma percentagem era de 49,2% nos meios coletivos contra 50,8% nos modos individuais. Tal condição decorre claramente de um declínio dos investimentos no transporte público, e no incentivo a indústria automobilística e a ideologia individualista e rodoviarista, que prospera no neoliberalismo contemporâneo e nas políticas das três esferas governamentais. Com sua celebração da desregulamentação interessada, onde o planejamento de Estado é endemoniado e uma suposta liberdade de escolha celebrada. Como se ela não fosse planejada e implicasse numa total ausência de alternativas, fora de uma mentalidade individualista e particularizada, que desdenha das soluções coletivas. Em outro aspecto das infraestruturas espaciais, se tivermos melhores condições de saneamento em nossos bairros pobres e favelas teremos menos poluição de mananciais e rios e menos gastos em saúde, e portanto, apropriação indireta de rendas suplementares por parte da nossa população em geral.

Por outro lado, a estruturação de uma política habitacional, de educação, de saúde, de cultura, de segurança vinculadas a questão espacial ou a política urbana de nossas cidades é um fator primordial para se alcançar maior equidade na sociedade brasileira, afinal a segmentação espacial das nossas cidades está determinada por forte clivagem entre as classes sociais, e promove constantemente a sua manutenção. Para tal, basta pensarmos no campo da representação social do bem viver ou da boa vida, quais os modelos de moradia ocupam o imaginário da população em geral. Certamente uma pesquisa indicaria; uma habitação unifamiliar isolada próxima a um idílio da natureza, num subúrbio distante, ou nas situações mais adensadas um apartamento numa torre com grande desenvolvimento em altura, com vista privilegiada e de preferência o mais distante possível do barulho urbano. Tais representações foram escolhidas pela nossa população, ou são impostas pelo mercado imobiliário, que claramente otimiza seus lucros, com ambas as opções. A superconcentração das torres de apartamentos residenciais, assim como a unidade unifamiliar isolada perto de idílios naturais representam claros interesses de uma sociabilidade individualista e isolada, que acabam potencializando problemas como o declínio da esfera pública da cidade e a violência urbana. Dois filmes brasileiros problematizam ou contrariam tais posições de forma emblemática e bastante elucidativa e didática, mostrando-nos que a opção do modelo habitacional interage com a precariedade dos sistemas de transporte coletivos e com a deterioração de nosso meio ambiente.

Em 2015, o cineasta Felipe Barbosa realizou o filme Casa Grande, onde uma família de classe média alta habita uma residência unifamiliar de alto padrão, próxima a Floresta da Tijuca, no Itanhangá na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, de forma isolada, mostrando-nos as agruras do filho para se deslocar até o Colégio São Bento no centro da cidade. No início do filme, esses deslocamentos são feitos com um motorista particular, mas a partir de seu desenvolvimento, com as dificuldades financeiras familiares, passa a se utilizar do sistema de ônibus da cidade, mostrando-nos o profundo medo de nossas elites do contínuo urbano precarizado das nossas cidades. Com a precariedade do seu sistema de transportes e a presença de favelas, como a Rocinha ou a presença na paisagem exuberante da cidade do Rio de Janeiro da obra rodoviarista repleta de malabarismos estruturais da auto estrada Lagoa Barra. E, em 2016, o cineasta pernambucano Kleber de Mendonça Vasconcelos Filho realizou o filme Aquarius, que foi mais aclamado pela crítica e pelo público. O filme estrelado pela atriz Sonia Braga apresentava uma sensível crítica as formas hegemônicas do habitar na sociedade brasileira, e um potente testemunho de como as formas do “Bem Viver” e da Boa Vida vem sendo manipuladas pelas incorporadoras imobiliárias no país. Tanto a casa isolada no Itanhangá do filme Casa Grande, quanto o edifício Aquarius na praia de Boa Viagem no filme de Kleber Mendonça, onde os filmes são ambientados existem, são materialidades concretas. E os bairros do Itanhangá e a praia de Boa Viagem ocupados de forma exclusiva pelas elites endinheiradas do Rio de Janeiro e de Recife, que elegeram, nessas cidades e em todo país, uma forma tipo de habitar em oposição e confronto à esfera pública, à vida urbana intensa e geral. A exclusividade isolada do habitar e suas conquistas com fartos recursos financeiros são tematizados e explorados mostrando-nos as cidades para poucos, que pretendemos construir.

Os filmes exploram o contraste, em suas tomadas de forma quase obsessiva, mostrando, de um lado, o exclusivo isolamento da Casa Grande e o rodoviarismo de nossas grandes cidades, quanto no edifício Aquarius, que com apenas três pavimentos de altura, sem pilotis, contrasta com a massa de torres com mais de trinta andares, que dominou a paisagem dos bairros litorâneos Brasil afora, desde a década de 70 e 80 do século XX. Importante destacar, que as edificações efetivamente existem seja, na Barra da Tijuca, quanto no bairro da Boa Viagem, e são frutos de formas de empreendimentos que otimizam o lucro imobiliário, em claro detrimento do interesse público. A casa isolada no Itanhangá na Barra da Tijuca, bairro ocupado mais intensamente a partir da construção da auto estrada Lagoa Barra, obra de realização pública, efetivada na paisagem no início da década de 1970, que viabilizou a conexão litorânea da Zona Sul com a área. E, que claramente recalcou a conexão mais natural da região com a Zona Norte, através da Avenida Cândido Benício, no vale entre a Floresta da Tijuca e o Maciço da Pedra Branca, e, portanto sem os malabarismos estruturais da auto estrada. Portanto, potencializando enormemente os lançamentos imobiliários, que assumiram nomes como Nova Ipanema e Novo Leblon, marcando as proximidades com as amenidades litorâneas. Mais uma vez na nossa história, viabilizando a apropriação privada dos donos da terra, a partir de investimentos públicos vultosos, como o da autoestrada. Não por acaso, o protagonista dono da Casa Grande no Itanhangá, vivido pelo ator Marcelo Novaes é um representante dos empreendimentos rentistas e improdutivos, que determinam sua bancarrota.

Por outro lado, o Edifício Aquarius construído em 1952 num tempo quando as incorporações de intensificação do solo urbano eram comandadas por pequenos investidores, longe dos grupos imobiliários monopolizados da atualidade. Claramente, o filme pernambucano contrapõe a torre habitacional, com desenvolvimento em grande altura, àquilo que poderíamos chamar de empreendimento linear de baixa altura, que estabelece com o espaço público da cidade uma mútua vigília. Entre intimidade da unidade habitacional da vida íntima familiar e o espaço público da cidade, a rua, mostrando a protagonista interagindo e participando da vida do bairro pela sua janela, prática inviabilizada pela grande torre de apartamentos. O filme narra o assédio das grandes incorporadoras imobiliárias para comprar a unidade no Edifício Aquarius da protagonista Sonia Braga, última moradora, para promover, empreender e homogeneizar com a solução da torre, suprimindo o último testemunho de uma tipologia de baixo gabarito e de implantação contínua. Importante destacar, que essa mesma tipologia é bastante recorrente nas cidades brasileiras até a década de 60, quando a apropriação da renda urbana, proveniente da intensificação de seu uso não era monopolizada por grandes grupos financeiros. E, gerava uma urbanidade mais plena onde a proximidade entre a esfera privada e pública ainda não havia sido rompida.

O neo liberalismo não é apenas uma forma de ordenação dos Estados Nacionais, mas também a instituição de uma forma de operar na sociedade, no seu cotidiano, um modelo de comportamento que pretende afastar a solidariedade intrassocial, impondo uma concorrência desregulada e selvagem. Há no mundo contemporâneo um modelo de atuação cotidiana hegemônica baseado nos princípios neoliberais, uma forma de operar que celebra a iniciativa particular ou mesmo coletiva, desregulamentada das formas tradicionais de controle do Estado, apesar da afirmação recorrente pelo pensamento conservador de uma realidade pós-hegemônica. As iniciativas públicas ou articuladas pelo Estado são vistas com desconfiança, e consideradas incapazes de promover processos bem sucedidos, ou virtuosos. Essa proposição começa a se desenvolver na década de setenta do século XX, que é apontada como um momento de crise e de virada da regulação internacional acertada pelo acordo de Bretton Woods, que regulava as finanças desde 1944, e que começava a apresentar sintomas de esgotamento, com as crises do petróleo. A partir desse momento com o forte declínio das taxas de lucro, os donos do capital irão se articular numa narrativa, que impõe a desregulamentação financeira e a austeridade fiscal.

Em 1973, ocorre o golpe de estado no Chile impõe-se pela primeira vez uma ideologia neoliberal no país, em 1975-76 a disciplina fiscal é implantada no Reino Unido pelo FMI, e também em 1975 a cidade de Nova York inicia a aplicação de rigorosa meta fiscal, após sua declaração de inadimplência. No final dos anos setenta, as eleições de Thatcher e Reagan marcam a conquista do poder pelo discurso neoliberal, que passa a pautar nosso cotidiano com a ideia da desregulação econômica e liberação do empreendedorismo individual. Em 1979 Margareth Thatcher assume como primeira ministra britânica, em 1980 Ronald Reagan assume a presidência dos EUA, desenvolvendo-se uma enorme desregulamentação do capital. O Wellfare State ou Estado de Bem Estar Social desmorona, uma transformação que esvaziou o uso industrial e fez emergir um contínuo de serviços financeiros e especulativos, que passaram a representar no mundo anglo saxão, um terço do emprego disponível. Inicia-se uma forte hegemonia do capital financeiro no mundo. Em 9 de novembro de 1989 cai o muro de Berlim, que dividia a Alemanha em dois, e o mundo da Guerra Fria das duas superpotências apresenta sinais de esgotamento. Em meados dos anos 1990 o advento da internet e das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) lançam para a humanidade a possibilidade de acessar um amplo acervo de informações, que determinam uma imensa dispersão de energias, parecendo inviabilizar a possibilidade de construção de prioridades e consensos. A política se fragmenta numa infinidade de interesses que parecem irreconciliáveis, apontando para a impossibilidade da construção de consensos. Em 2004, a bolsa de tecnologia de Nova York, Nasdaq força os grandes conglomerados de informação, como o Goggle e Amazon a monetizar suas informações sobre seus usuários, caindo o pretenso sigilo de nossas buscas para as grandes corporações monopólicas. Emerge disso tudo, uma sociedade claramente sub teorizada e super informada, com clara dispersão de suas energias questionadoras e disruptivas.

Muitos dos fluxos financeiros aprisionados por regulações estatais passam a circular pelo mundo de forma livre, e, sem conseguir ser sequer monitorados por qualquer tipo de regulação fiscal, afinal as iniciativas estatais continuam sendo vistas com desconfiança. Esses procedimentos rentistas ancorados em ganhos financeiros completamente autonomizados com relação a produção passam a circular pelo mundo gerando fortunas e fraudes. Aquilo que Bretton Woods pretendera regular, a partir do final da 2ª Guerra Mundial, e que se referia aos processos especulativos do Crack da Bolsa de Nova York em 1929, que haviam produzido uma imensa recessão que permitiu o acesso ao poder pelo nazi-fascismo na Europa, iniciando o conflito mundial. Agora, no final da década de setenta era esquecido, pelo menos no Reino Unido e nos EUA com a doutrina de Thatcher e Reagan, determinando o declínio do movimento sindical organizado e a celebração de um empreendedorismo particular e isolado. Frases, como “não há almoço de graça” ou “a sociedade não existe, é uma abstração, o que há são indivíduos e famílias”, ou ainda “jamais esqueçam que não existe dinheiro público, todo dinheiro arrecadado pelo governo é tirado do orçamento doméstico...” justificam uma imensa deterioração dos serviços públicos e promovem uma mentalidade concorrencial sem limites.

A cidade brasileira e em todo o mundo ocidental é fruto dessa desregulamentação financeira e do culto de uma mentalidade empreendedora, que haviam contaminado nosso cotidiano. Há uma certa especificidade na economia brasileira, apontada por alguns teóricos como Armínio Fraga e Luiz Gonzaga Belluzo, determinada por nossa Constituição Federal de 1988, que possuía uma vertente favorável ao distributivismo de renda e a configuração de um Estado de Bem Estar Social, promotor de maior equidade. Mas a vertente neoliberal também está presente entre nós, notadamente na política urbana e espacial, principalmente no que se refere a regulação do Direito de Propriedade. Comprovando tal fato, basta observar a imensa luta legislativa que envolveu a aprovação do Estatuto da Cidade, que foi aprovado apenas em 2001, treze anos após a decretação da constituição cidadã, e que permanece com instrumentos reguladores da propriedade privada, ainda sem aplicação por claras razões culturais e de costumes. A propriedade privada em nossa cultura patrimonialista é absolutizada, não podendo ser regulada de forma alguma, fato que vem sendo comprovado pelos contínuos pedidos de revisão pela bancada conservadora, dos artigos 182 e 183, que decretaram a necessidade de cumprimento do papel social da propriedade privada em nossa Constituição Federal.

Em 2008, uma crise sem precedentes se abate sobre a economia americana, novamente grandes instituições financeiras sugadas pela quebra de confiança no sistema de hipotecas e nos seguros a sua volta ameaçam grandes conglomerados rentistas, que são classificados pelo governo dos EUA como; "so big to crash". Quase de forma imediata o sistema bancário espanhol, demonstra fragilidades a partir do imenso volume de financiamento de hipotecas habitacionais nas cidades espanholas. O governo liberal do Partido Progressista injeta dinheiro do contribuinte no grupo Santander alegando o mesmo argumento dos EUA. Na sequência, o governo americano, temendo um efeito dominó em toda a atividade econômica, semelhante a crise de 1929, aporta grande quantidade de capital do contribuinte americano, socializando os prejuízos e salvando grandes grupos financeiros. Alguns economistas mesmo auto declarados liberais, como Joseph Stglitz e Thomas Pikety apontam a necessidade de retorno da regulação, que deverá ser globalizada para controlar a especulação desenfreada dos fluxos financeiros que circulam pelo mundo. Alguns insistentes marxistas, como o crítico cultural Frederich Jameson e o geógrafo David Harvey recolocam a questão da tendência preferencial do sistema capitalista pela forma líquida monetizada, que se materializa de forma mais concreta nas bolsas e investimentos rentistas, mas também no espaço, e em processos especulativos nas cidades globais. Apesar disso tudo, permanece em nosso cotidiano uma desconfiança pelas iniciativas governamentais e públicas, que ainda são vistas como esforços arrecadatórios mantenedores de aparatos burocráticos, que apenas visam sua reprodução e auto-sustentação, sem qualquer interesse público ou projeto republicano. Em 2020, com a Pandemia de Covid-19 a sociedade civil parece ter a comprovação definitiva de que as grandes corporações privadas e monopólios centradas no lucro são incapazes de promover a saúde e o Direito de reprodução da vida. Mais uma vez, a pesquisa pública e os investimentos estatais preservam uma parte da vida da humanidade, e promovem o desenvolvimento, evitando uma recessão catastrófica.

Por outro lado, as cidades passam a concentrar e expressar imensas manifestações de rebeldia e de insatisfação, explodem ocupações em várias partes do mundo, que reinvindicam melhores condições de habitar e de circular, sem no entanto, a capacidade de formular uma pré-figuração alternativa para o módus operandi do status quo neoliberal. A espacialidade das cidades é um efetivo aglutinador de movimentos sociais diversificados, que denunciam a produção e reprodução de injustas condições de vida e de ausência de oportunidades. É nas cidades que se materializa uma imensa segmentação e fragmentação de oportunidades, uma concentração desequilibrada de benefícios que atendem a uma minoria, muitas vezes com impactos ambientais e sociais aviltantes. O território de nossas cidades demonstram de forma didática a segmentação da sociedade, a cidade capitalista neoliberal é produtora de imensas áreas de exclusão, enquanto outras muito restritas se globalizam impulsionando exclusividades fetichizadoras, que promovem apenas o valor de troca, recalcando qualquer valor de uso.

As cidades no Brasil, apesar de suas especificidades regionais, invariavelmente apresentam um caráter exclusivo, que confronta áreas muito restritas de uma urbanidade plena, com amenidades de lazer, iluminação, segurança, contraposta a grandes contínuos literalmente sem infraestruturas básicas. De uma maneira geral, ela se apresenta dispersa e esgarçada ocupando um território muito maior do que seria necessário para sua população. Com um centro histórico decadente e esvaziado, dotado de um patrimônio construído importante, mas subvalorizado, desocupado e em contínua destruição pelos próprios interesses de seus proprietários, que almejam sua monetização e destruição imediata. Com áreas especializadas em usos limitados – bairros de serviços ou bairros dormitórios - com extratos sociais de renda homogêneos, sem qualquer possibilidade de diversidade social. Com uma mobilidade deficiente de transportes públicos, de tarifas caras, com um sistema de modais sem qualquer coordenação, hegemonizado pelos veículos sobre pneus e com sua malha ferroviária decadente e com capacidade diminuta de carregamento. Um rodoviarismo agressivo e incapaz de suprir suas demandas por longo período, apresentando invariavelmente imensos congestionamentos. E, uma relação predatória com contínuos ambientais em seu interior ou em suas bordas, que são continuamente impactados por suas emissões e avanços.

Portanto, acredita-se que os princípios da boa cidade e do Bem Viver precisam ser explicitados de forma a dar sentido as imensas manifestações de rebeldia e inconformismo das cidades. A cidade deve encontrar uma série de princípios gerais, que sintetizam a busca da promoção de uma maior equidade de rendas e oportunidades, um território urbano onde está universalizado o acesso às infraestruturas urbanas e as oportunidades é o objetivo maior. Por outro lado, é necessário reconhecer que precisamos enfrentar o problema urbano brasileiro reformando a cidade existente, promovendo ajustes em seus sistemas já instalados de forma a beneficiar a todos, e não apenas uma minoria privilegiada. Nesse sentido torna-se fundamental radicalizar as práticas democráticas, indo além da mera representação parlamentar, mas instituindo práticas cotidianas diretas de regulação dos orçamentos, planos e projetos. Busca-se portanto formular um conjunto de princípios norteadores para as cidades brasileiras, que precisam transformar o modo como vêm sendo construídas, para tanto, sugere-se priorizar quatro proposições objetivas:

1.     A Cidade deve ser compacta e densa, evitando-se a dispersão interminável e enfatizando-se o papel aglutinador do antigo centro histórico. Os instrumentos contidos no Estatuto das Cidades devem ser operados no sentido da preservação de seu contínuo construído, regulando o Direito de Propriedade;

2.     A Cidade deve ser lugar da convivência da diversidade de classes e de usos, evitando-se os guetos de ricos e pobres e a monofuncionalidade. A promoção da urbanização de favelas e a busca de sua integração aos tecidos dos bairros adjacentes deve reforçar o esforço de inserção social de todos seus estamentos e classes, utilizando-se inclusive dos sistemas de transportes sistêmicos para enfatizar sua reinserção;

3.     A Cidade deve ter mobilidade efetiva para todos, evitando-se a exclusão determinada pela ineficiência ou tarifação alta dos sistemas de transporte coletivo. As parcelas precarizadas da nossa população devem ter acesso ao passe livre reivindicado, permitindo o acesso amplo a diversidade de oportunidades que nossa cidades criam;

4.        A Cidade deve ampliar o reconhecimento da ecologia e dos biomas naturais locais, construindo-se melhor relação com a natureza, permitindo uma apropriação social ampla dos ecossistemas e fomentando sua expansão e convivência com o mundo artificializado do humano. Devem ser implantadas obras e transformações que promovam maior ajuste entre a vida urbana e a natureza, se adequando principalmente as chuvas tropicais de maior intensidade.