"A obra... foi escrita no período de gestação da crise financeira mundial de 2008*. Foi publicada no momento em que se podia constatar a amplidão dos estragos causados pelo neoliberalismo. A convicção de que tínhamos ao escrevê-la possuía fundamento: a crise não foi suficiente para fazer o neoliberalismo desaparecer. Muito pelo contrário, a crise apareceu para as classes dominantes, como uma oportunidade inesperada. Melhor, como um modo de governo." DARDOT e LAVAL 2016 página7
Essa é a tese central do livro, que me parece algo inusitada, de que; a aguda crise financeira internacional de 2008 reforçou o neoliberalismo no mundo, fazendo com que Estados passassem a adotar planos de austeridade de forma recorrente. Há uma distinção importante feita pelos autores entre; "representação ideológica" e "normatividade prática", que não se reflete na ideologia do laissez-faire que guiava o liberalismo histórico. Sem dúvida, o discurso dos fundamentalistas contemporâneos do mercado há muito abandonaram a concepção de que o Estado se constitui como um entrave para o mercado, passando a proclamar a necessidade de garantir as suas condições de operação. Nessa condição, o Estado é fundamental para os neoliberais não para amparar as pessoas e os cidadãos, mas para garantir o marco jurídico institucional, que estabeleça e fomente a ordem concorrencial. Nesse sentido, é inevitável a analogia com a construção do golpe do impeachment da presidente Dilma Roussef no Brasil, aonde o comandante constitucional do afastamento, o Deputado Eduardo Cunha, foi afastado do cargo pelo STF dezoito dias depois do processo, denunciando o formalismo jurídico-político da trama. Duas questões fundamentais perpassam o livro, com uma recorrente afirmação, de que o neoliberalismo não constitui uma ideologia, mas sim uma racionalidade ou uma "normatividade prática", com a qual não concordo de forma alguma.
"Este é o ponto principal da questão: como é que, apesar das consequências catastróficas a que nos conduziram as políticas neoliberais, essas políticas são cada vez mais ativas, a ponto de afundar os Estados e as sociedades em crises políticas e retrocessos sociais cada vez mais graves? Como é que, há mais de trinta anos, essas mesmas políticas vem se desenvolvendo e se aprofundando, sem encontrar resistências suficientemente substanciais para coloca-las em cheque? DARDOT e LAVAL 2016 página15
A regra de funcionamento dos indivíduos contemporâneos, sem dúvida está pautada por uma lógica concorrencial, pró mercado e avessa a solidariedade, no entanto essa continua sendo para mim uma ordenação ideológica, produzida por interesses claros. A naturalização dessa forma de operar é a própria estratégia da dominação, que não está mais interessada apenas no governo, mas sim no auto governo das pessoas. O conceito de "racionalidade política" é extraído de Foulcault, que tinha uma relação direta com a "governamentalidade", no seu curso de 1978-79 no Collège de France, que se transformou no livro o Nascimento da Biopolítica** publicado em 2008 no Brasil. No qual, se identificavam os tipos de racionalidade utilizados para os procedimentos de direção da conduta dos indivíduos pelo Estado moderno. Enfim, e pelo menos para mim e não para os autores, o velho conceito gramsciano de hegemonia. A racionalidade governamental era, para Foucault; não uma instituição, mas uma forma de agir que pretende reger a conduta dos homens, dando-lhes a impressão de ser natural, a própria subjetivação da sua própria forma de agir. Habermas a caracterizava como racionalidade instrumental, distinguido-a da racionalidade intersubjetiva, que envolvia uma construção a partir do diálogo entre agentes igualmente empoderados. Enfim Foucault, a fonte primeira dos autores, persevera na crítica ao racionalismo de forma ampla e indistinta, enquanto outros pensadores procuraram resguardar e fazer distinções dentro da razão, para proteger a última fonte da possibilidade do diálogo. O foco estaria na superestrutura jurídica-política, e não mais no regime de acumulação, ou num agente de classe interessado e dirigente;
"A sociedade neoliberal em que vivemos é fruto de um processo histórico que não foi integralmente programado por seus pioneiros; os elementos que a compõem reuniram-se pouco a pouco, interagindo uns com os outros, fortalecendo uns aos outros... Na concepção marxista o capitalismo é, antes de tudo, um modo de produção econômico que, como tal, é independente do direito e gera a ordem jurídico-política de que necessita a cada estágio de seu autodesenvolvimento... O inconsciente dos economistas, como diz Foucault, que é na verdade o inconsciente de todo economicismo, seja liberal, seja marxista, é precisamente a instituição, e é justamente a instituição que o neoliberalismo, em particular em sua versão ordoliberal***, quer reconduzir a uma posição determinante." DARDOT e LAVAL 2016 página25
"Neste aspecto, há uma frase de Marx que não envelheceu: 'Na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o assassínio para roubar, em suma, a violência'. Esse parto na violência revela, em primeiro lugar, o fato de que se trata de uma guerra que se trava por todos os meios disponíveis, inclusive o terror, e que se aproveita de todas as ocasiões possíveis para implantar o novo regime de poder e a nova forma de existência." DARDOT e LAVAL 2016 página20
Uma coerção muda, que sempre se interessou por desdemocratizar, enfraquecendo instituições e direitos, que o movimento operário parecia conquistar desde meados do século XIX, de forma contínua e progressiva, até o fim dos anos setenta do século XX. O neoliberalismo emprega técnicas de poder, que miram não apenas no mercado ou no Estado, mas no auto governo das pessoas comuns, nas suas condutas e subjetividades. O grande erro estratégico das esquerdas, aqui icluído David Harvey e outros, que tratam com desdém as posturas neoliberais é o não reconhecimento de que sua estratégia não é única e uni direcionada, por um projeto de classe, mas se conformando a partir de batalhas pontuais e específicas. Ao final é o reconhecimento de uma certa incerteza, que não convive mais com planos e projetos de alinhamento ortodoxo e uni direcionados, que não se restringem a modelar uma nova forma de acumulação, mas sim a disseminar uma prática cotidiana concorrencial, basicamente anti-solidária. A emergência dessa incerteza parece ter embaralhado de forma definitiva a própria autodefinição das classes sociais, que em nosso mundo se tornaram complexas e fragmentadas, tais como; burguesias transnacionais, industriais rentistas, profissionais do aparelho de justiça, aparato de mídia, sindicatos de tercerizados, e outras. A questão da governança assume um caráter central, dentro da ideia de operação biopolítica dos governados, impulsionados pela supremacia da ordem concorrencial, que preenche e determina todos os comportamentos. Assim, os autores as vezes parecem celebrar aquilo que criticam;
"A interpretação marxista do neoliberalismo nem sempre compreendeu que a crise dos anos 1960-1970 não era redutível a uma crise econômica no sentido clássico. Nesses termos, ela é estreita demais para captar a extensão das transformações sociais, culturais e subjetivas introduzidas pela difusão das normas neoliberais em toda a sociedade. Porque o neoliberalismo não é apenas uma resposta a uma crise de acumulação, ele é uma resposta a uma crise de governamentalidade." DARDOT e LAVAL 2016 página26
"A primeira parte desta obra mostra que, desde seu registro de nascimento, na grande crise de 1930, o neoliberalismo introduziu uma distância, ou até um claro rompimento, em relação à versão dogmática do liberalismo que se impôs no século XIX... Combater o socialismo e todas as versões do "totalitarismo" exigia um trabalho de refundação das bases intelectuais do liberalismo. É nessa conjuntura de crise econômica, política e doutrinal que se opera uma refundação "neoliberal" da doutrina que também não conduz a uma doutrina completamente unificada. Duas grandes correntes vão se esboçar a partir do Colóquio Walter Lippmann, 1938: a corrente do ordoliberalismo alemão, representada por Walter Eucken e Wilhelm Röpke, e a corrente austro-americana representada por Ludwig von Mises e Friedrich A Hayek." DARDOT e LAVAL 2016 página33
NOTAS:
*O livro apresenta uma introdução de 2014 para uma versão em inglês reduzida da obra, e, segundo essa a obra foi publicada na França em 2009, portanto após a dramática crise de 2008 do capital financeiro internacional.
** FOUCAULT, Michel - O Nascimento da biopolítica - Editora Martins Fontes São Paulo 2008
*** Ordoliberais corrente do neoliberalismo nascida na Alemanha, que sempre deu êmfase a ordem constitucional e procedural.
**** Apesar de conservadora, uma das melhores críticas a Michel Foucault foi feita por MERQUIOR, José Guilherme - Michel Foulcault, ou o Niilismo de cátedra - editora Nova Fronteira Rio de Janeiro 1985. Na qual, Foucault é caracterizado como um lítero-filósofo, que envolvia um certo abandono da rigidez analítica da filosofia, em nome de um palatável glamour literário e ensaístico.
BIBLIOGRAFIA:
*O livro apresenta uma introdução de 2014 para uma versão em inglês reduzida da obra, e, segundo essa a obra foi publicada na França em 2009, portanto após a dramática crise de 2008 do capital financeiro internacional.
** FOUCAULT, Michel - O Nascimento da biopolítica - Editora Martins Fontes São Paulo 2008
*** Ordoliberais corrente do neoliberalismo nascida na Alemanha, que sempre deu êmfase a ordem constitucional e procedural.
**** Apesar de conservadora, uma das melhores críticas a Michel Foucault foi feita por MERQUIOR, José Guilherme - Michel Foulcault, ou o Niilismo de cátedra - editora Nova Fronteira Rio de Janeiro 1985. Na qual, Foucault é caracterizado como um lítero-filósofo, que envolvia um certo abandono da rigidez analítica da filosofia, em nome de um palatável glamour literário e ensaístico.
BIBLIOGRAFIA:
DADOT, Pierre e LAVAL, Christian - A nova razão do mundo, ensaio sobre a sociedade neoliberal - Editora Boitempo São Paulo 2016
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