Republico aqui no blog Arquitetura,cidade,projeto.blogspot.com o texto que publiquei na Revista Vírgula, em maio de 2024, e que já saiu do ar. Boa leitura, e aguardo críticas e comentários...
O modelo do "Bem Viver" no Brasil envolve; a torre em altura, o condomínio fechado e o rodoviarismo |
Estamos às vésperas das Eleições Municipais de 2024 no Brasil e apesar disso o tema da espacialidade da cidade, sua configuração e engendramento material é continuamente recalcado pela mídia, pelos políticos e até por nossa sociedade civil organizada. Há um entorpecimento geral, uma alienação, que naturaliza determinações culturais e condicionamentos sociais como se fossem inevitáveis, ou como se não fossem escolhas de planos e projetos determinados por um pensamento conservador e retrógrado. Essas eleições serão diversas de todas as outras que ocorreram anteriormente no Brasil, por uma série de fatos que atingiram nosso meio ambiente, tais como as enchentes no Rio Grande do Sul, as chuvas torrenciais concentradas que determinaram tragédias como as do litoral norte de São Paulo, ou nas cidades serranas do Rio de Janeiro, ou no rompimento de barragens da mineração em Minas Gerais, ou ainda no imenso passivo ambiental que as cidades brasileiras carregam nos temas da emissão de carbono, saneamento básico, coleta e destinação de resíduos sólidos, impermeabilização do solo, etc. Nossa macro política será tirada de uma inércia estabelecida de longa data, que debate temas como habitação, saúde, educação, cultura, violência, sem sua espacialização correspondente no território? Afinal, essas eleições também podem ser uma oportunidade ímpar para refletir sobre que cidade temos, e qual queremos construir para as futuras gerações? O que aconteceu com nossas cidades, ou para onde estamos indo? Ou melhor, qual imagem do bem viver, da boa cidade que elegemos como modelo entre nós? Qual forma-tipo de cidade que compartilhamos como representação ideal da boa vida e do bem viver? Apesar dos modelos estarem esgotados, e, como defendem alguns teóricos, vivemos um momento pós hegemônico, onde não é mais possível a eleição de uma forma tipo sintética e representativa; será que ainda é possível compartilhar princípios norteadores da cidade que queremos ter?
Um princípio
geral vem pautando a política no Brasil nos últimos anos, pelo menos no campo
progressista, e tudo indica que continuará na nossa agenda, que é a busca por
uma sociedade com maior equidade, ou melhor distribuição de renda. De uma
maneira geral, o senso comum da sociedade brasileira não identifica nas
atribuições dos governos, federal, estadual ou municipal, uma estruturação do
espaço construído do território, nas cidades e no campo, uma capacidade para
promover ou induzir uma melhor distribuição de renda. De uma maneira geral, o
brasileiro considera que a promoção de maior equidade em nossa sociedade é
fruto apenas de políticas nas áreas da habitação, da saúde, da educação, da
cultura, do saneamento, da mobilidade social, etc de forma desvinculada do
território, da espacialidade das cidades e das áreas rurais. Nossa ordenação
espacial não é só fruto de uma sociedade dividida e partida por interesses de
classe, mas também mantenedora de uma situação bloqueadora de oportunidades e
benefícios para as classes menos privilegiadas. A política urbana e de ocupação
territorial do país podem ser fatores de promoção de oportunidades de geração
de renda e de transformação social, pois a ordenação espacial pode superar a
exclusão gerando inclusão e pertencimento. A mentalidade, que parece ainda
operar em nossa macro política é a do recém falecido ex ministro da economia
Delfim Neto, na época da decretação da Ditadura Civil e Militar de 1964, de que
“era necessário primeiro fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”. Como se,
a premissa de inclusão social e da promoção de oportunidades para a população
brasileira determinasse um bloqueio do desenvolvimento econômico do país.
Trata-se de um grande equívoco, uma vez que a qualidade espacial da cidade pode
representar uma apropriação indireta de renda para parcela significativa da
população, impulsionando o desenvolvimento. Nosso desenvolvimento econômico
seguiu aquilo que muitos teóricos identificam como o “modelo prussiano” ou
autoritário, típico de países de chegada tardia ao desenvolvimento capitalista,
que pregam um acordo restrito a suas elites, sem a participação popular. Essa
gerência conservadora da territorialidade da cidade gerou concentração de
renda, pois o desenvolvimento citadino muitas vezes é determinado por
investimentos públicos vultuosos combinado com uma apropriação privada desses
benefícios, por parte dos donos da terra urbana. A cidade brasileira espelha
isso em seu território de forma emblemática. Nossas cidades se apresentam com
uma mobilidade de transportes ineficiente e cara, guetos ricos e pobres
segmentados e bem marcados, áreas especializadas em usos restritivos
especializados, zonas dedicadas a serviços e dormitórios, antigos centros
históricos abandonados, deteriorados e subutilizados e uma relação predatória
com o meio ambiente, a partir de uma dispersão territorial desnecessária.
Por exemplo, se
temos melhores condições de mobilidade, que garantam tempos médios pendulares
menores dos deslocamentos, a população poderá se apropriar de um maior tempo
livre, que pode representar incremento de renda, ou de qualidade de vida.
Apesar disso, recente pesquisa da Confederação Nacional de Transportes (CNT)
realizada em 319 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, segundo
o censo do IBGE de 2022 indicaram que houve um forte decréscimo na utilização
de meios transportes coletivos (ônibus, trens e barcas), que migraram para
formas particulares de mobilidade (automóveis, motos e aplicativos), representando
um acréscimo de tempo nos deslocamentos. A pesquisa aponta, que nessas cidades
brasileiras apenas 31,7% da população usa o transporte coletivo, contra 68,3%
que se utilizam de formas individuais. Os resultados também espelham um forte
declínio das formas de transporte coletivo em nossas cidades, quando vistos a
partir da série histórica entre 2017 e 2022, pois naquele ano essa mesma
percentagem era de 49,2% nos meios coletivos contra 50,8% nos modos
individuais. Tal condição decorre claramente de um declínio dos investimentos
no transporte público, e no incentivo a indústria automobilística e a ideologia
individualista e rodoviarista, que prospera no neoliberalismo contemporâneo e
nas políticas das três esferas governamentais. Com sua celebração da
desregulamentação interessada, onde o planejamento de Estado é endemoniado e uma
suposta liberdade de escolha celebrada. Como se ela não fosse planejada e
implicasse numa total ausência de alternativas, fora de uma mentalidade
individualista e particularizada, que desdenha das soluções coletivas. Em outro
aspecto das infraestruturas espaciais, se tivermos melhores condições de
saneamento em nossos bairros pobres e favelas teremos menos poluição de
mananciais e rios e menos gastos em saúde, e portanto, apropriação indireta de
rendas suplementares por parte da nossa população em geral.
Por outro lado,
a estruturação de uma política habitacional, de educação, de saúde, de cultura,
de segurança vinculadas a questão espacial ou a política urbana de nossas
cidades é um fator primordial para se alcançar maior equidade na sociedade
brasileira, afinal a segmentação espacial das nossas cidades está determinada
por forte clivagem entre as classes sociais, e promove constantemente a sua
manutenção. Para tal, basta pensarmos no campo da representação social do bem
viver ou da boa vida, quais os modelos de moradia ocupam o imaginário da
população em geral. Certamente uma pesquisa indicaria; uma habitação
unifamiliar isolada próxima a um idílio da natureza, num subúrbio distante, ou
nas situações mais adensadas um apartamento numa torre com grande
desenvolvimento em altura, com vista privilegiada e de preferência o mais
distante possível do barulho urbano. Tais representações foram escolhidas pela
nossa população, ou são impostas pelo mercado imobiliário, que claramente
otimiza seus lucros, com ambas as opções. A superconcentração das torres de
apartamentos residenciais, assim como a unidade unifamiliar isolada perto de
idílios naturais representam claros interesses de uma sociabilidade
individualista e isolada, que acabam potencializando problemas como o declínio
da esfera pública da cidade e a violência urbana. Dois filmes brasileiros problematizam
ou contrariam tais posições de forma emblemática e bastante elucidativa e
didática, mostrando-nos que a opção do modelo habitacional interage com a
precariedade dos sistemas de transporte coletivos e com a deterioração de nosso
meio ambiente.
Em 2015, o
cineasta Felipe Barbosa realizou o filme Casa Grande, onde uma família de
classe média alta habita uma residência unifamiliar de alto padrão, próxima a
Floresta da Tijuca, no Itanhangá na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, de
forma isolada, mostrando-nos as agruras do filho para se deslocar até o Colégio
São Bento no centro da cidade. No início do filme, esses deslocamentos são
feitos com um motorista particular, mas a partir de seu desenvolvimento, com as
dificuldades financeiras familiares, passa a se utilizar do sistema de ônibus
da cidade, mostrando-nos o profundo medo de nossas elites do contínuo urbano
precarizado das nossas cidades. Com a precariedade do seu sistema de
transportes e a presença de favelas, como a Rocinha ou a presença na paisagem
exuberante da cidade do Rio de Janeiro da obra rodoviarista repleta de
malabarismos estruturais da auto estrada Lagoa Barra. E, em 2016, o cineasta pernambucano Kleber
de Mendonça Vasconcelos Filho realizou o filme Aquarius, que foi mais aclamado
pela crítica e pelo público. O filme estrelado pela atriz Sonia Braga
apresentava uma sensível crítica as formas hegemônicas do habitar na sociedade
brasileira, e um potente testemunho de como as formas do “Bem Viver” e da Boa
Vida vem sendo manipuladas pelas incorporadoras imobiliárias no país. Tanto a
casa isolada no Itanhangá do filme Casa Grande, quanto o edifício Aquarius na
praia de Boa Viagem no filme de Kleber Mendonça, onde os filmes são ambientados
existem, são materialidades concretas. E os bairros do Itanhangá e a praia de
Boa Viagem ocupados de forma exclusiva pelas elites endinheiradas do Rio de
Janeiro e de Recife, que elegeram, nessas cidades e em todo país, uma forma
tipo de habitar em oposição e confronto à esfera pública, à vida urbana intensa
e geral. A exclusividade isolada do habitar e suas conquistas com fartos
recursos financeiros são tematizados e explorados mostrando-nos as cidades para
poucos, que pretendemos construir.
Os filmes exploram o
contraste, em suas tomadas de forma quase obsessiva, mostrando, de um lado, o
exclusivo isolamento da Casa Grande e o rodoviarismo de nossas grandes cidades,
quanto no edifício Aquarius, que com apenas três pavimentos de altura, sem
pilotis, contrasta com a massa de torres com mais de trinta andares, que
dominou a paisagem dos bairros litorâneos Brasil afora, desde a década de 70 e
80 do século XX. Importante destacar, que as edificações efetivamente existem
seja, na Barra da Tijuca, quanto no bairro da Boa Viagem, e são frutos de formas
de empreendimentos que otimizam o lucro imobiliário, em claro detrimento do
interesse público. A casa isolada no Itanhangá na Barra da Tijuca, bairro
ocupado mais intensamente a partir da construção da auto estrada Lagoa Barra,
obra de realização pública, efetivada na paisagem no início da década de 1970,
que viabilizou a conexão litorânea da Zona Sul com a área. E, que claramente
recalcou a conexão mais natural da região com a Zona Norte, através da Avenida
Cândido Benício, no vale entre a Floresta da Tijuca e o Maciço da Pedra Branca,
e, portanto sem os malabarismos estruturais da auto estrada. Portanto,
potencializando enormemente os lançamentos imobiliários, que assumiram nomes
como Nova Ipanema e Novo Leblon, marcando as proximidades com as amenidades litorâneas.
Mais uma vez na nossa história, viabilizando a apropriação privada dos donos da
terra, a partir de investimentos públicos vultosos, como o da autoestrada. Não
por acaso, o protagonista dono da Casa Grande no Itanhangá, vivido pelo ator
Marcelo Novaes é um representante dos empreendimentos rentistas e improdutivos,
que determinam sua bancarrota.
Por outro lado, o
Edifício Aquarius construído em 1952 num tempo quando as incorporações de
intensificação do solo urbano eram comandadas por pequenos investidores, longe
dos grupos imobiliários monopolizados da atualidade. Claramente, o filme
pernambucano contrapõe a torre habitacional, com desenvolvimento em grande
altura, àquilo que poderíamos chamar de empreendimento linear de baixa altura,
que estabelece com o espaço público da cidade uma mútua vigília. Entre
intimidade da unidade habitacional da vida íntima familiar e o espaço público
da cidade, a rua, mostrando a protagonista interagindo e participando da vida
do bairro pela sua janela, prática inviabilizada pela grande torre de
apartamentos. O filme narra o assédio das grandes incorporadoras imobiliárias
para comprar a unidade no Edifício Aquarius da protagonista Sonia Braga, última
moradora, para promover, empreender e homogeneizar com a solução da torre,
suprimindo o último testemunho de uma tipologia de baixo gabarito e de
implantação contínua. Importante destacar, que essa mesma tipologia é bastante
recorrente nas cidades brasileiras até a década de 60, quando a apropriação da
renda urbana, proveniente da intensificação de seu uso não era monopolizada por
grandes grupos financeiros. E, gerava uma urbanidade mais plena onde a
proximidade entre a esfera privada e pública ainda não havia sido rompida.
O neo liberalismo não
é apenas uma forma de ordenação dos Estados Nacionais, mas também a instituição
de uma forma de operar na sociedade, no seu cotidiano, um modelo de
comportamento que pretende afastar a solidariedade intrassocial, impondo uma
concorrência desregulada e selvagem. Há
no mundo contemporâneo um modelo de atuação cotidiana hegemônica baseado nos
princípios neoliberais, uma forma de operar que celebra a iniciativa particular
ou mesmo coletiva, desregulamentada das formas tradicionais de controle do
Estado, apesar da afirmação recorrente pelo pensamento conservador de uma
realidade pós-hegemônica. As iniciativas públicas ou articuladas pelo Estado
são vistas com desconfiança, e consideradas incapazes de promover processos bem
sucedidos, ou virtuosos. Essa proposição começa a se desenvolver na década de
setenta do século XX, que é apontada como um momento de crise e de virada da
regulação internacional acertada pelo acordo de Bretton Woods, que regulava as
finanças desde 1944, e que começava a apresentar sintomas de esgotamento, com
as crises do petróleo. A partir desse momento com o forte declínio das taxas de
lucro, os donos do capital irão se articular numa narrativa, que impõe a
desregulamentação financeira e a austeridade fiscal.
Em 1973, ocorre
o golpe de estado no Chile impõe-se pela primeira vez uma ideologia neoliberal
no país, em 1975-76 a disciplina fiscal é implantada no Reino Unido pelo FMI, e
também em 1975 a cidade de Nova York inicia a aplicação de rigorosa meta
fiscal, após sua declaração de inadimplência. No final dos anos setenta, as
eleições de Thatcher e Reagan marcam a conquista do poder pelo discurso neoliberal,
que passa a pautar nosso cotidiano com a ideia da desregulação econômica e
liberação do empreendedorismo individual. Em 1979 Margareth Thatcher assume
como primeira ministra britânica, em 1980 Ronald Reagan assume a presidência
dos EUA, desenvolvendo-se uma enorme desregulamentação do capital. O Wellfare State
ou Estado de Bem Estar Social desmorona, uma transformação que esvaziou o uso
industrial e fez emergir um contínuo de serviços financeiros e especulativos,
que passaram a representar no mundo anglo saxão, um terço do emprego
disponível. Inicia-se uma forte hegemonia do capital financeiro no mundo. Em 9
de novembro de 1989 cai o muro de Berlim, que dividia a Alemanha em dois, e o
mundo da Guerra Fria das duas superpotências apresenta sinais de esgotamento. Em
meados dos anos 1990 o advento da internet e das Tecnologias de Informação e
Comunicação (TICs) lançam para a humanidade a possibilidade de acessar um amplo
acervo de informações, que determinam uma imensa dispersão de energias,
parecendo inviabilizar a possibilidade de construção de prioridades e
consensos. A política se fragmenta numa infinidade de interesses que parecem
irreconciliáveis, apontando para a impossibilidade da construção de consensos.
Em 2004, a bolsa de tecnologia de Nova York, Nasdaq força os grandes
conglomerados de informação, como o Goggle e Amazon a monetizar suas
informações sobre seus usuários, caindo o pretenso sigilo de nossas buscas para
as grandes corporações monopólicas. Emerge disso tudo, uma sociedade claramente
sub teorizada e super informada, com clara dispersão de suas energias
questionadoras e disruptivas.
Muitos dos
fluxos financeiros aprisionados por regulações estatais passam a circular pelo
mundo de forma livre, e, sem conseguir ser sequer monitorados por qualquer tipo
de regulação fiscal, afinal as iniciativas estatais continuam sendo vistas com
desconfiança. Esses procedimentos rentistas ancorados em ganhos financeiros
completamente autonomizados com relação a produção passam a circular pelo mundo
gerando fortunas e fraudes. Aquilo que Bretton Woods pretendera regular, a
partir do final da 2ª Guerra Mundial, e que se referia aos processos
especulativos do Crack da Bolsa de Nova York em 1929, que haviam produzido uma
imensa recessão que permitiu o acesso ao poder pelo nazi-fascismo na Europa,
iniciando o conflito mundial. Agora, no final da década de setenta era
esquecido, pelo menos no Reino Unido e nos EUA com a doutrina de Thatcher e
Reagan, determinando o declínio do movimento sindical organizado e a celebração
de um empreendedorismo particular e isolado. Frases, como “não há almoço de
graça” ou “a sociedade não existe, é uma abstração, o que há são indivíduos e
famílias”, ou ainda “jamais esqueçam que não existe dinheiro público, todo
dinheiro arrecadado pelo governo é tirado do orçamento doméstico...” justificam
uma imensa deterioração dos serviços públicos e promovem uma mentalidade
concorrencial sem limites.
A cidade
brasileira e em todo o mundo ocidental é fruto dessa desregulamentação
financeira e do culto de uma mentalidade empreendedora, que haviam contaminado
nosso cotidiano. Há uma certa especificidade na economia brasileira, apontada
por alguns teóricos como Armínio Fraga e Luiz Gonzaga Belluzo, determinada por
nossa Constituição Federal de 1988, que possuía uma vertente favorável ao
distributivismo de renda e a configuração de um Estado de Bem Estar Social,
promotor de maior equidade. Mas a vertente neoliberal também está presente
entre nós, notadamente na política urbana e espacial, principalmente no que se
refere a regulação do Direito de Propriedade. Comprovando tal fato, basta
observar a imensa luta legislativa que envolveu a aprovação do Estatuto da
Cidade, que foi aprovado apenas em 2001, treze anos após a decretação da
constituição cidadã, e que permanece com instrumentos reguladores da
propriedade privada, ainda sem aplicação por claras razões culturais e de
costumes. A propriedade privada em nossa cultura patrimonialista é
absolutizada, não podendo ser regulada de forma alguma, fato que vem sendo
comprovado pelos contínuos pedidos de revisão pela bancada conservadora, dos
artigos 182 e 183, que decretaram a necessidade de cumprimento do papel social
da propriedade privada em nossa Constituição Federal.
Em 2008, uma
crise sem precedentes se abate sobre a economia americana, novamente grandes
instituições financeiras sugadas pela quebra de confiança no sistema de
hipotecas e nos seguros a sua volta ameaçam grandes conglomerados rentistas,
que são classificados pelo governo dos EUA como; "so big to crash".
Quase de forma imediata o sistema bancário espanhol, demonstra fragilidades a
partir do imenso volume de financiamento de hipotecas habitacionais nas cidades
espanholas. O governo liberal do Partido Progressista injeta dinheiro do
contribuinte no grupo Santander alegando o mesmo argumento dos EUA. Na
sequência, o governo americano, temendo um efeito dominó em toda a atividade
econômica, semelhante a crise de 1929, aporta grande quantidade de capital do
contribuinte americano, socializando os prejuízos e salvando grandes grupos
financeiros. Alguns economistas mesmo auto declarados liberais, como Joseph Stglitz
e Thomas Pikety apontam a necessidade de retorno da regulação, que deverá ser
globalizada para controlar a especulação desenfreada dos fluxos financeiros que
circulam pelo mundo. Alguns insistentes marxistas, como o crítico cultural Frederich
Jameson e o geógrafo David Harvey recolocam a questão da tendência preferencial
do sistema capitalista pela forma líquida monetizada, que se materializa de
forma mais concreta nas bolsas e investimentos rentistas, mas também no espaço,
e em processos especulativos nas cidades globais. Apesar disso tudo, permanece
em nosso cotidiano uma desconfiança pelas iniciativas governamentais e
públicas, que ainda são vistas como esforços arrecadatórios mantenedores de
aparatos burocráticos, que apenas visam sua reprodução e auto-sustentação, sem
qualquer interesse público ou projeto republicano. Em 2020, com a Pandemia de
Covid-19 a sociedade civil parece ter a comprovação definitiva de que as
grandes corporações privadas e monopólios centradas no lucro são incapazes de
promover a saúde e o Direito de reprodução da vida. Mais uma vez, a pesquisa
pública e os investimentos estatais preservam uma parte da vida da humanidade,
e promovem o desenvolvimento, evitando uma recessão catastrófica.
Por outro lado,
as cidades passam a concentrar e expressar imensas manifestações de rebeldia e
de insatisfação, explodem ocupações em várias partes do mundo, que reinvindicam
melhores condições de habitar e de circular, sem no entanto, a capacidade de
formular uma pré-figuração alternativa para o módus operandi do status quo neoliberal.
A espacialidade das cidades é um efetivo aglutinador de movimentos sociais
diversificados, que denunciam a produção e reprodução de injustas condições de vida
e de ausência de oportunidades. É nas cidades que se materializa uma imensa
segmentação e fragmentação de oportunidades, uma concentração desequilibrada de
benefícios que atendem a uma minoria, muitas vezes com impactos ambientais e
sociais aviltantes. O território de nossas cidades demonstram de forma didática
a segmentação da sociedade, a cidade capitalista neoliberal é produtora de
imensas áreas de exclusão, enquanto outras muito restritas se globalizam
impulsionando exclusividades fetichizadoras, que promovem apenas o valor de
troca, recalcando qualquer valor de uso.
As cidades no
Brasil, apesar de suas especificidades regionais, invariavelmente apresentam um
caráter exclusivo, que confronta áreas muito restritas de uma urbanidade plena,
com amenidades de lazer, iluminação, segurança, contraposta a grandes contínuos
literalmente sem infraestruturas básicas. De uma maneira geral, ela se
apresenta dispersa e esgarçada ocupando um território muito maior do que seria
necessário para sua população. Com um centro histórico decadente e esvaziado,
dotado de um patrimônio construído importante, mas subvalorizado, desocupado e
em contínua destruição pelos próprios interesses de seus proprietários, que
almejam sua monetização e destruição imediata. Com áreas especializadas em usos
limitados – bairros de serviços ou bairros dormitórios - com extratos sociais
de renda homogêneos, sem qualquer possibilidade de diversidade social. Com uma
mobilidade deficiente de transportes públicos, de tarifas caras, com um sistema
de modais sem qualquer coordenação, hegemonizado pelos veículos sobre pneus e
com sua malha ferroviária decadente e com capacidade diminuta de carregamento. Um
rodoviarismo agressivo e incapaz de suprir suas demandas por longo período,
apresentando invariavelmente imensos congestionamentos. E, uma relação
predatória com contínuos ambientais em seu interior ou em suas bordas, que são
continuamente impactados por suas emissões e avanços.
Portanto, acredita-se
que os princípios da boa cidade e do Bem Viver precisam ser explicitados de
forma a dar sentido as imensas manifestações de rebeldia e inconformismo das
cidades. A cidade deve encontrar uma série de princípios gerais, que sintetizam
a busca da promoção de uma maior equidade de rendas e oportunidades, um
território urbano onde está universalizado o acesso às infraestruturas urbanas
e as oportunidades é o objetivo maior. Por outro lado, é necessário reconhecer
que precisamos enfrentar o problema urbano brasileiro reformando a cidade
existente, promovendo ajustes em seus sistemas já instalados de forma a
beneficiar a todos, e não apenas uma minoria privilegiada. Nesse sentido
torna-se fundamental radicalizar as práticas democráticas, indo além da mera
representação parlamentar, mas instituindo práticas cotidianas diretas de
regulação dos orçamentos, planos e projetos. Busca-se portanto formular um
conjunto de princípios norteadores para as cidades brasileiras, que precisam
transformar o modo como vêm sendo construídas, para tanto, sugere-se priorizar
quatro proposições objetivas:
1.
A
Cidade deve ser compacta e densa, evitando-se a dispersão interminável e
enfatizando-se o papel aglutinador do antigo centro histórico. Os instrumentos
contidos no Estatuto das Cidades devem ser operados no sentido da preservação
de seu contínuo construído, regulando o Direito de Propriedade;
2.
A
Cidade deve ser lugar da convivência da diversidade de classes e de usos,
evitando-se os guetos de ricos e pobres e a monofuncionalidade. A promoção da
urbanização de favelas e a busca de sua integração aos tecidos dos bairros
adjacentes deve reforçar o esforço de inserção social de todos seus estamentos
e classes, utilizando-se inclusive dos sistemas de transportes sistêmicos para
enfatizar sua reinserção;
3.
A
Cidade deve ter mobilidade efetiva para todos, evitando-se a exclusão
determinada pela ineficiência ou tarifação alta dos sistemas de transporte
coletivo. As parcelas precarizadas da nossa população devem ter acesso ao passe
livre reivindicado, permitindo o acesso amplo a diversidade de oportunidades
que nossa cidades criam;
4.
A
Cidade deve ampliar o reconhecimento da ecologia e dos biomas naturais locais,
construindo-se melhor relação com a natureza, permitindo uma apropriação social
ampla dos ecossistemas e fomentando sua expansão e convivência com o mundo
artificializado do humano. Devem ser implantadas obras e transformações que
promovam maior ajuste entre a vida urbana e a natureza, se adequando
principalmente as chuvas tropicais de maior intensidade.